A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…
… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira
61 – Eu só acredito em heróis loiros de olhos azuis
Antes que Aroeira me pedisse o nome do suspeito seguinte, uma figura pequena, entalada num terno preto, levantou-se do outro lado da mesa.
– Palavras servem mais pra enganar do que pra apontar a verdade – começou Foo a filosofar. – No Oriente também é assim, mas nós, pelo menos, botamos um pouco de poesia no meio: flores, pássaros e luares. Todos nós nos perdemos na escura floresta das palavras, manos. Mas o que diferencia um escritor de um homem comum é que o escritor sabe escapar do intrincado labirinto das frases sinuosas. Ele segue a exata e reta rota das palavras e acha a saída, mesmo que ela esteja próxima da porta da cadeia. Sacou, meu? Delegado, o senhor está tentando agarrar com a mão um peixe ensaboado.
– Belo discurso – constatou o policial, seco. – Pelo visto, o senhor também pretende irar o corpo fora. É isso mesmo?
– Brasil e China são países amigos – disse o risonho escritor. – Por isso, vou auxiliar já o senhor a desvendar o caso. Quando eu entrei no apartamento 1313, notei que a mantilha de dona Miguela estava abaixada num ponto. Pensei: ôrra, mano, essa velha levou uma cacetada na cabeça! O assassino mais frio sempre ataca na cabeça.
Adensou-se o silêncio. Os escritores não estavam gostando daquela conversa porque o chinês parecia disposto a falar a verdade, o que, para todos, seria algo inaceitável.
– Orientais são mais pacientes. Temos mais saco, mano, entende? Calmamente, com muita atenção, examinei o tapete. Encontrei estranhas marcas de sapato, sapato de senhora, com salto alto e ponta fina. Percebi que as marcas desses sapatos quando avançavam pra dona Miguela eram diferentes das marcas desses mesmos sapatos quando eles deixavam o apartamento. Entendi então, mano, que ao se aproximar de dona Miguela, a dona do tal sapato fazia mais pressão sobre o pé direito. Depois, ao sair dali depois, apressada, essa mesma pessoa deixou marcas que se inclinavam para esquerda. Que puta mistério, meu! Aí a verdade apareceu inteira diante de mim: uma senhora tinha entrado no apartamento carregando um troço pesado na mão direita e saído depois, às pressas, levando esse mesmo objeto na mão esquerda…
Nesse ponto a narrativa foi cortada por um espirro nervoso de Batota.
– Passei então a examinar a cabeça de dona Miguela – continuou Foo Lee Shi Man. – Logo percebi que a idosa senhora havia sido ferida por algo arredondado como… halteres! Pensei: puta, mano, usaram o meu próprio halter pra matar a espanhola!
Aroeira lançou-me um olhar esperançoso, um olhar que falava: agora vai!
Eu, porém, gato escaldado, tinha dúvidas. Preconceito meu, reconheço. Desde que me conheço por gente vejo filmes em que os orientais são sempre os bandidos. Quero dizer, nos filmes americanos os bandidos são sempre asiáticos, russos, alemães, índios, africanos e latinos. Reconheço que o cinema americano fez mal à minha cabeça: eu só acredito em heróis loiros de olhos azuis, preferencialmente protestantes. Aliás, não creio que heróis possam nascer na América Latina. O que mais nos aparece por aqui é bandido sanguinário. Do México ao Brasil temos metade dos assassinatos do mundo. Ou quase.

62 – Silenciosos como gatos de pantufas
Aroeira me pareceu estar cada vez mais confuso. Era como se fosse um detetive inglês que investigava um crime cometido em uma mansão servida por meia dúzia de mordomos.
– Halter? – perguntou o delegado. – Que bicho é esse?
– É um treco de fazer ginástica – explicou Foo. – É uma haste com bolas de ferro nas pontas.
– Sei. Mas por que o senhor trouxe um bagulho desses pra cá?
– Nas minhas viagens, sempre carrego um halter pra me exercitar…
– Volte então à sua investigação – ordenou Aroeira, impaciente.
– Aí, mano, quando cheguei à conclusão de que o meu halter havia sido usado no crime, levei um puta susto. Tremi na base, meu. Lembrei então de um negócio estranho que tinha acontecido pouco antes. Eu havia esquecido meu halter no restaurante durante o almoço, mas ele, misteriosamente, reapareceu depois no meu apartamento…
O delegado Aroeira sacudiu-se como se tomado por calafrios e disse:
– Vamos por partes, seu China, que estou ficando zonzo. Voltemos aos sapatos. De quem seriam os tais sapatos de salto alto?
– De lady Águeda Christine – respondeu o sempre sorridente escrevinhador. – Aliás, ela está com eles neste exato momento.
Todos os que se encontravam à mesa voltaram-se, num só movimento, para a escritora inglesa, que permaneceu impassível.
– O senhor está querendo me dizer que essa velhinha de cabelo azul matou a centenária com um halter? – questionou o policial.
O chinês não pode responder porque a escritora inglesa se intrometeu na conversa:
– Esse senhor oriental tem razão. Por incrível que pareça, ele chegou à verdade. Sim, entrei no apartamento de Miguela com um halter na mão direita e de lá saí com ele na esquerda. Mas não fui lá com a intenção de matar Miguela, não! Tratava-se apenas de uma aposta…
– Mais uma aposta, meu Deus do céu? – lamentou-se Aroeira e ergueu os olhos para o teto, como que esperando uma ajuda vinda do alto.
O delegado já estava lutando bravamente contra o choro. Seu desespero era visível, genuíno e comovente.
– Uai, foi isso mesmo! – prosseguiu a autora nascida no Reino Unido. – Nós, anglo saxões, adoramos apostar. Neste nosso caso, foi uma aposta inocente…
– Inocente? – espantou-se o delegado. – Como foi essa aposta?
– A gente vinha de camionete do aeroporto pra este hotel. De repente, Miguela se virou pra mim e debochou: “Admiro seus assassinos, Águeda, porque eles todos são silenciosos como gatos de pantufas”. Eu virei pra ela e retruquei: “Bobinha, meus assassinos são como eu, que não faço ruído ao caminhar”. Ela virou pra mim, riu e disse: “Se você é a pessoa mais silenciosa, eu sou a que tem o melhor ouvido, pois escuto até a grama crescendo”. Então, eu me virei pra ela e disse: “Aposto que me aproximo d´ocê sem qu´ocê perceba”. Aí ela virou pra mim e disse: “Ninguém se aproxima de mim sem que eu perceba”. Eu virei pra ela e falei: “Quand´ocê notar minha presença vai ser tarde demais da conta, ocê já estará morta”. Ela riu muito e estendeu a mão pra mim: “Vamos fazer uma posta: tente se aproximar de mim sem que eu perceba. Mas não seja burra. Se me matar, ocê ganha a aposta, mas não leva a grana”.
A ficcionista inglesa colocou a mão diante dos olhos e contemplou um bocado seus muitos anéis antes de continuar.
– Hoje, depois do almoço, quando vi aberta a porta do apartamento de Miguela, lembrei da aposta. Parei no corredor. Ela estava lendo bem quietinha. Resolvi me aproximar dela levando na mão um cortador de unhas, que representaria uma arma. Mas, ao abrir a bolsa, minha mão bateu em algo duro. Era um halter de três quilos que eu havia achado debaixo da mesa enquanto almoçava. Decidi empunhar aquele trem pra dar mais realismo à cena. Aí, pé por pé, entrei no apartamento dela. Mas eu estava com as mãos molhadas de suor. De nervosismo. Bem rapidinho me aproximei-me dela, por trás. Levantei o peso sobre a cabeça dela. Quando fui chamar, pra que ela visse que tinha perdido a aposta, o halter resvalou da minha mão úmida. O trem acabou batendo na cabeça de Miguela, que não reagiu. Achei que ela tinha desmaiado. Saí dali imediatamente, triste por ter sido desastrada. Saí sem cobrar os dez mil dólares da aposta.
– A senhora assume a autoria da morte? – perguntou um vacilante Aroeira.
A resposta foi imediata:
– Não! Na verdade, quando soubemos que Miguela estava morta, cheguei a pensar que tinha matado a pobre mulher… Mas agora tenho certeza de que não a matei. Quando aquele troço de ferro bateu na cabeça dela, a bichinha já estava morta. Duas vezes morta, pra ser exata. Já tinha sido envenenada por Fedorova e pelo dardo de Sim Et Non.
Aroeira sentou-se e levou suas patas dianteira à cara. Pensei que ia escorregar para o pranto.

63 – Breves considerações em torno da palavra bofetada
O delegado esteve assim, sentado, durante longos segundos, e depois soltou um suspiro que consumiu um minuto e meio entre o seu começo, sibilante, e o seu final, gutural. O mais tocante suspiro de desalento que presenciei até hoje. Depois, lentamente, voltou-se para o escritor chinês:
– O que fazia a bosta do seu halter debaixo da merda da mesa do restaurante?
– Aproveito o almoço pra fazer exercícios, mano. Boto o halter no peito do pé e fico levantando. Fortalece a panturrilha.
Um tique nervoso repuxou com violência o rosto de Aroeira. Acostumado a enfrentar bandidos chinelões, sentia que pela primeira vez na sua vida profissional estava encarando suspeitos muito mais espertos que ele.
Batota resolveu solidarizar-se com o delegado:
– Todos aqui estão a tirar o cavalinho da chuva, como dizemos em Portugal. Estão a tirar o corpo fora, senhor doutor Aroeira. Sugiro-lhe que aperte o chinês! Seja duro, que ele certamente confessará. O senhor doutor delegado precisa de um culpado pra encerrar este caso. Sem culpado, os jornalistas vão escrever reportagens exigindo a vossa demissão.
A mensagem do lusitano chegou rapidamente ao cérebro de Aroeira, que se aprumou. Levantou o queixo, ajeitou os ombros e encheu o peito de ar. As palavras de Batota tinham injetado nele a adrenalina de que necessitava para fechar o interrogatório.
Então o delegado estendeu o braço direito na direção do chinês e falou com uma voz que era um verdadeiro trovão:
– Até agora o interrogatório foi público, mas eu posso transformá-lo em reservado, o que é sempre ruim pra saúde dos depoentes. Em geral, só costumo começar as perguntas após o que chamo de bofetada inaugural. O senhor chinês conhece o significado pleno da palavra bofetada?
– Seria o mesmo que tabefe? – indagou Foo Lee Shi Man. – Lá em Macau, quando eu era menino, usávamos também outros sinônimos: bofete, bolacha, lapada, chapuletada ou tapa de mão aberta…
– É exatamente isso! – entusiasmou-se Aroeira. – A bofetada não visa ferir o interrogado, não. Serve apenas pra desmoralizá-lo. Porque pior que a bofetada propriamente dita é o estalo da mão espalmada na bochecha. Esse forte estalido nas proximidades do ouvido incomoda bastante o interrogado. Agora, falando em termos gramaticais, eu, pessoalmente, não gosto da palavra bofetada. Minha preferência vais para formas mais concisas, como tapona ou bifa…
– Prefiro confessar em público – apressou-se o chinês a dizer. – A verdade, mano, é que eu também contribuí pra morte de Miguela de Alcazar.
– Foi por causa de uma aposta maluca também? – perguntou Aroeira, ressabiado.
– Infelizmente, foi. No aeroporto do Rio de Janeiro, lady Águeda me disse: “Foo, pra mim, um dos maiores mistérios do mundo é a mediocridade chinesa. Vocês são o povo mais numeroso da terra, mas contribuíram pouco pra história da humanidade”. Eu respondi que o mundo de hoje só é como é por causa dos chineses. Lembrei a ela que inventamos a pólvora e que, sem ela, e sem as guerras, a terra estaria superpovoada. Falei ainda do macarrão, do papel e da bússola. Então dona Miguela comentou: “Por que um povo que criou quatro coisas importantes no passado vive hoje só copiando o que fazem os outros povos?”
– Escutando isso, você ficou com raiva e decidiu matá-la? – concluiu Aroeira.
– Não. Eu retruquei dizendo que as grandes invenções chinesas eram cinco. Pólvora, papel, macarrão e bússola e mais uma, nova, bem recente. E lancei um desafio: “A senhora deveria conhecer essa quinta invenção porque se trata de uma maravilhosa técnica de assassinato”. Dona Miguela me respondeu com arrogância: “É claro que sei do que se trata. Use essa tal técnica contra mim. Se eu não o desmascarar no momento em que estiver me atacando, não me chamo Miguela de Alcazar”.
– Qual é a quinta invenção chinesa, afinal? – o delegado mostrou-se interessado.
– O gás paralisante inodoro. Por acaso, eu trazia comigo uma grande ampola com esse gás. Então hoje, por volta da uma hora, enfiei pelo buraco da fechadura do apartamento de dona Miguela uma agulha de seringa hipodérmica e injetei o gás, como ela havia pedido…
– Mas esse gás é mortal?
– Quase sempre, mano. Dependendo da umidade relativa do ar e da temperatura.
– Mortal ou não, o que importa é que o senhor tentou matar dona Miguela!

(cont.)
Sobre os autores (actividade literária)
Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.
Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).