RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS
O meu avô espião

Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma nota sobre o passado misterioso de António Araújo, avô paterno do jornalista Rui Araújo, que foi publicada no livro ‘O Império dos espiões‘.

Novembro de 2008.
Eram umas dez da noite. Estava a atiçar o azinho na lareira quando o telefone começou a tocar.
— ‘Tás bom? Comprei o teu livro e resolvi ligar-te. É por causa dele… — lançou-me a voz rouca do outro lado da linha.
Era a minha prima. O primeiro volume de O Diário Secreto que Salazar não leu sobre espionagem em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial tinha sido publicado semanas antes.
— Ele o quê… — retorqui, a pensar que estava a referir-se ao seu pai, o meu tio, capitão de mar-e-guerra, que tinha trabalhado na DINFO .
— Ele era misterioso…
— Pois era, mas o pior é o resto… — acrescentei.
— Encontrei duas cartas escondidas no forro da cómoda dele, que mandei restaurar.
— E?
— Foram-lhe enviadas em 1946.
— Mas estás a falar de quem? — indaguei.
— Do nosso avô.
— Do António Araújo?
— Sim. Quem mais podia ser? — exclamou a minha prima em voz dolente.
Fiquei a matutar naquelas palavras, que soavam a desaire.
— Ele era…
Eu não morria de amores pelo meu avô paterno. Não podia nem queria. Era apenas um estrangeiro para mim.
— Podes arranjar-me cópias?
Passados uns dias, a Rita entregou-me duas folhas amarelecidas. Duas cartas enigmáticas escritas em Inglês e Português.
A primeira missiva era do adido de Imprensa. G.M.F. Stow homenageia, a pedido do embaixador, o meu avô pelos “valiosos serviços prestados” à Secção de Imprensa “durante toda a guerra” e aproveita a oportunidade para lhe testemunhar o seu “profundo reconhecimento pessoal pela sua leal cooperação e pela confiança indefectível na nossa causa [sic] de que deu provas durante os longos e amargos dias de luta” que juntos tiveram de enfrentar.
O meu avô paterno era bancário. É possível que tenha cedido aos britânicos informação privilegiada sobre os clientes e as operações do banco. Era informador? Espião? É inútil especular. Tanto mais que a afável conclusão de G.M.F. Stow adiciona uma peça ao puzzle: “Creia V. Ex.ª que o seu apoio e amizade perdurarão na memória de quantos de entre nós tiveram o privilégio de trabalhar com V. Ex.ª”.
O anuário do Foreign Office contém apenas duas referências a G. M. F. Stow, o Adido de Imprensa.

Em Abril de 1942, o Tenente Geoffrey Montagu Fenwick Stow é nomeado Assistente do Adido da Força Aérea (Assistant Air Attaché) na representação diplomática britânica, em Lisboa.

(Fonte: National Archives – Kew, Inglaterra.)
O Adido de Imprensa é um homem dos serviços secretos: recolhe informações sobre a aviação, oriundas sobretudo de outros países que não Portugal.
Stow também colabora em Lisboa com o Special Operations Executive (SOE — Serviço de Operações Especiais).

O SOE chega a propor, por exemplo, ao Ministério do Ar um contacto com Stow através do canal reservado das Operações Especiais de forma a impedir que o Adido da Força Aérea, seu responsável hierárquico directo, tenha conhecimento da sua colaboração.
No final da guerra, Stow permanece em Lisboa. O almanaque diplomático britânico de 1946 indica que o militar assume um “appointment” do “M of I” [Ministério da Informação]. É com o estatuto de Adido de Imprensa que escreve ao meu avô.
A segunda missiva (mais formal), assinada pelo embaixador Owen O’Malley, é praticamente idêntica à primeira.
O meu avô preservou o segredo até à hora da morte, embora tenha estado do lado dos vencedores. É absurdo, para não dizer imoral, humanizar as guerras e os seus actores com ou sem mistificação, idolatria ou obra de sarcasmo.

Ironicamente, passei 19 longos meses a vasculhar as existências de dezenas de desconhecidos nos arquivos nacionais e estrangeiros quando havia na minha própria família um homem secreto e uma história secreta.
Rui Araújo
in O IMPÉRIO DOS ESPIÕES, Oficina do livro – Lisboa.