Pena suspensa: A última ceia

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Rui Araújo|12/12/2024

Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 2 de Julho de 1988, sobre João Carlos, 25 anos, solteiro, serralheiro desempregado.


Foto: Rui Araújo

A ÚLTIMA CEIA

— Os problemas que tenho tido é coisas simples: um sozinho abalar sem pagar. Uma vez até foram dois, mas era uma conta relativa. Fora disso, nunca tive problemas nem com isso nem com aquilo. Tenho sido uma pessoa feliz… — justifica-se o dono do restaurante.

Eram cinco. Foi um fartar vilanagem. Comeram, beberam… E deram à sola. Só que o mais lento ou o mais ingénuo — João Carlos, 25 anos, solteiro, serralheiro desempregado — permaneceu no restaurante e meteu-se numa alhada. Ficou a contas com a Justiça.

O senhor Joaquim José, patrão do restaurante, conta a ementa da malandragem. É um homem sem papas na língua…

A ementa

— Entraram cinco indivíduos. Mandaram vir logo pão, queijo, manteiga e cinco vermutes. Estudaram a lista e mandaram vir duas amêijoas — uma à Bulhão Pato e outra à Espanhola. Paparam tudo. Atiraram-se à lista outra vez e mandaram vir mais cinco escalopes aos champinhons. Comeram os escalopes — ainda foi mais um bocadinho de arroz porque um gostava muito de arroz —, regados com duas garrafitas de vinho verde. E mais duas garrafas. E outras duas. Acabaram de comer os escalopes e atiraram-se a umas mousses e ao arroz-doce. Repetiram. Pediram cinco cafés e cinco uísques.

Escuto o dono do restaurante, algo intrigado.

rice in bowl
Foto: D.R.

— Eu, aí, comecei a desconfiar um bocado mas já que ia embalado, continuei. Gelo e duas colas. Mais cinco uísques. Daí a mais um bocadito, mais cinco uísques. E mais duas Colas. Aí, um deles abalou, não sei onde foi. E outros três começaram a ir para a porta. Eu abeirei-me deste que está aqui preso e perguntei-lhe se ficava responsável por aquilo. «O senhor não tenha problemas. Fique descansado que eles vão ali e não demoram nada…» Pois, só que eu comecei a ver aquilo —  a conta já ia nos 13.520 escudos [67,43 euros] — e chamei o guarda. E foi aí que fomos todos parar à esquadra de Arroios. O homem não tinha um «chavo». Não tinha carteira nem maço de cigarros, uma carteirita de fósforos, nada. Tinha mas era um cordel a atar as calças… Começou a chorar muito. Pediu-me desculpa. Se soubesse que era assim não tinha aceite o convite deles. Quanto a mim ele serviu de cobaia daqueles grandes gabirus…

E a sentença

Não chegou a haver julgamento. João Carlos não possui qualquer documento de identificação. A história vai continuar nos juízos correccionais de Lisboa.


Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 2 de Julho de 1988.


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