EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA
A nova corrupção: nem malas nem envelopes; apenas avenças

A corrupção política, tal como a conhecíamos, tornou-se anacrónica. Já não se faz através de malas recheadas de notas, como nos tempos do antigo deputado António Preto – acusado de corrupção por causa de 40 mil euros em notas mas que acabou ilibado, quase quinze anos depois. Também não é mais uma questão de gabinetes ministeriais convertidos em cofres privados, pois nenhum espaço é seguro, nem mesmo o do próprio chefe de gabinete do primeiro-ministro, como bem aprendeu Vítor Escária.
Os novos tempos exigiram novas formas de assegurar o tráfico de influências, a retribuição de favores e a manutenção de uma rede de lealdades. E estas formas são agora mais sofisticadas, legalmente blindadas e de difícil rastreio. Há três métodos principais para esta nova corrupção, que não precisam da tradicional troca de envelopes ou de contas bancárias na Suíça.

O primeiro método é o pagamento diferido, ou seja, o político exerce o seu cargo e, depois, é premiado com um lugar de gestão bem remunerado. Esta é uma prática antiga, mas altamente volátil, pois depende da continuidade da administração que corrompeu. Além disso, não há garantia de que a empresa que beneficiou se lembrará da “dívida” quando chegar o momento de pagar, excepto se o visado mantiver influência política.
O segundo método é mais directo e eficaz: a criação de empresas por políticos ou testas-de-ferro, para as quais são canalizados pagamentos disfarçados sob a forma de contratos de consultoria, assessoria ou prestação de serviços. Esta estratégia tem várias vantagens. Primeira, o político não precisa de declarar os rendimentos da empresa como sendo seus, desde que não haja distribuição de lucros. Segunda, pode usar essa empresa para cobrir despesas do quotidiano sem levantar suspeitas. Terceira, os clientes que pagam pelos supostos serviços podem ser facilmente ocultados, tornando praticamente impossível provar que um determinado pagamento se trata, na realidade, de um suborno. Por fim, quarta, o corruptor ainda consegue uma factura para abater nos lucros, pelo que, de forma indirecta, o Estado contribui, sem saber, para esse acto de corrupção porque recebe menos impostos por causa dessa ‘despesa’.
O terceiro método, muito apreciado por advogados, é o uso do sigilo profissional para ocultar clientes e transacções suspeitas. Em Portugal, a confidencialidade das relações entre advogados e clientes impede que se saiba quem paga a quem e porquê. Se um político se envolve na advocacia, qualquer pagamento pode ser justificado como honorários, sem que ninguém possa escrutinar a natureza do serviço prestado – ou sequer se esse serviço existiu. Aliás, aquilo que mais se destaca nas declarações de rendimentos dos políticos na Entidade para a Transparência é essa justificação. Basta ver a do presidente do Parlamento, José Pedro Aguiar-Branco.

Seja qual for a via escolhida, a verdade é que a nova corrupção tornou-se tecnicamente quase indetectável, mas não menos óbvia. E os sinais que emanam da Spinumvira são mais do que um mero problema político – são um problema judicial. A forma como a empresa de Luís Montenegro aceitou uma avença da Solverde, ainda mais a um valor quatro vezes superior ao praticado no mercado (avenças do género custam pouco mais de mil euros por mês), sem que se perceba quais os trabalhos efectivamente realizados, não pode ser vista como um detalhe irrelevante.
Pior ainda, isto acontece num momento em que se aproxima um concurso público para a concessão de casinos. Mesmo que já nada tivesse a ver com a sua empresa familiar, há clientes que não podem ser aceites, porque, em certas situações, são sempre ‘tóxicos’. E se uma empresa for boa, pode dar-se ao luxo de prescindir de algumas propostas, aceitando outras.
Ora, se António Costa se demitiu (e bem) pelas suspeitas que recaíam sobre o seu governo, o que justifica que Montenegro continue a brincar com moções de censura e de confiança, como se fosse apenas uma questão de gestão política?

Entre o medo do PS de ir a eleições e os jogos estratégicos dos partidos e do Presidente da República, o problema essencial permanecerá: Montenegro não tem apenas uma questão política para resolver – tem uma questão judicial.
Se há algo a discutir nas próximas semanas, não é se o primeiro-ministro tem condições políticas para continuar, mas sim se o país aceita reescrever a semântica da palavra “corrupção” para acomodar esta nova realidade. Se sim, então passemos a chamar-lhe outra coisa – avenças, consultorias, parcerias.