WHITE BLACK MIRROR

O raspanete

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Ruy Otero|03/03/2025

Passaram umas horas depois do incidente que toda a gente viu, e Volodymyr Zelensky continua abatido. Entra no SUV ainda com o fantasma bem presente da impressionante conversa que tivera, horas antes, com Trump e J. D. Vance, com o mundo todo a assistir.

Está apenas com o seu chaffeur na viatura.

Passado uns minutos de silêncio, e depois de se aperceber da postura melancólica e cansada do político-actor, diz-lhe o chauffeur:

— Não leve a mal, senhor presidente, mas numa coisa concordei com o que vi.

Bem… Tu também?

Se me permite senhor presidente…

O que é que foi? — pergunta sem convicção o ucraniano, pusilânime e com alguma condescendência, consequência do cansaço acumulado. — Já não me bastou ter de levar com aqueles dois atrasados…

Zel comendo um Chupa-Chups.

— Sim, mas… — pigarreia para aclarar a voz.  — Senhor presidente, eu, se mandasse num país, e graças a Deus que não… — pigarreia novamente. — Não me vestia assim para uma cimeira, ou lá o que é que foi aquilo.

Zelensky abana a cabeça e, com um olhar vago, fita a paisagem sem se fixar nela.

O chaffeur continua:

— Nisso a minha mãe tem razão: devemos ir sempre bem vestidos para os encontros importantes. Desculpe a arrogância.

Mas tu achas que eu gosto de andar assim vestido? — responde Zelensky com uma nova e súbita energia. — Achas que eu ando assim porque quero?

— Bem…

— Achas que já não tenho problemas suficientes lá na Ucrânia para ainda ter de estar aqui a levar contigo?

Eu não qu… — o motorista tenta interromper sem sucesso enquanto Zelensky continua no mesmo tom:

— Achas que isto tudo é escolha minha? Já viste o que é que eu tenho de ouvir? Já percebeste que levei o maior raspanete da História da televisão? Achas que estou para isto? Também tenho honra, ou não?

Zel ouvindo ‘Karma Police’ dos Radiohead.

— Bem, senhor Zelensky, eu não queria estar na sua posição. Isso é verdade. Uma vez na escola levei cá um raspanete na aula, à frente de toda a gente, que ainda hoje me lembro. Foi cá uma vergonhaça!

Zelensky recompõe-se.

Agora multiplica essa aula por triliões. — diz, novamente, o politico, mas já com a voz normalizada.

— Fogo! Eu nunca mais dormia. —responde o motorista, levantando os olhos.

— Estás a falar das minhas roupas… Mas nem sequer sabes de que marca são!

Isso é verdade. Lacoste não são, senão tinham aí o lagartinho. —diz o chaffeur, enquanto faz uma cara ameaçadora para um outro condutor que o acabou de ultrapassar.

Zelensky continua:

— Esta t-shirt custa para aí uns 500 dólares. Devias estar calado e guiar com atenção. E não penses que o Trump e o barbichas country vestem assim tão bem. A gravata do Trump estava suja de gordura.

— Bem, senhor presidente… Desejo-lhe sorte agora, quando tiver de dormir sem comprimidos. A alma até dói depois de um raspanete destes. E o senhor já não é propriamente um adolescente.

O motorista está ainda fixado naquele seu pequeno trauma.

— Eu, só com aquele raspanete que levei na escola, demorei anos a conseguir dormir bem outra vez. E eram só uns 20 na sala. Mas foi cá uma vergonha. — reforça o homem.

Zelensky, no entanto, aproveita a boleia da conversa para não pensar no seu assunto e diz:

O que é que tinhas feito?

— Tinha posto pimenta nas hóstias na capela do colégio, senhor Zelensky.

O ucraniano por segundos esquece-se de Trump e ri-se.

— E depois ?

— Depois, durante a missa, as velhas, sobretudo, tossiram e espirraram muito e foi de morrer a rir vê-las.

Zelensky tem um novo assomo de energia e parece divertir-se com a historieta do motorista.

— Mas depois, lá no colégio interno, descobriram que fui eu. Fui delatado por um puto que me odiava. Olhe, presidente, imagine que era o Putin, tá a ver?

— Sim, mas não é preciso fazer comparações.

— Desculpe.

Faz-se um silêncio e depois, de repente, o chaffeur atira:

— Isto era mais fácil quando o Zelensky era actor, não?

— Estás a brincar? Prefiro, ainda assim, ser presidente na vida real.

— Mas lá não levava raspanetes destes…

— Não, que não levava… Do realizador da série, era quase todos os dias. Eu sempre levei raspanetes na vida. Não como o de hoje, claro. Isto não foi um raspanete. Isto foi um ataque de um porta-aviões. 

— Não foi um; foram dois.

— Isso. Ainda pior.

— Mas, se me permite, Zel… posso tratá-lo por Zel?

Sim, estás à vontade. Até prefiro. Mete-me no meu verdadeiro lugar. 

Zel chora.

— Bom… O Zel também foi para lá com duas pedras na mão. — arrisca o homem. E continua:

— É preciso muita coragem para chegar à Casa Branca e dizer o que o Zel disse. Ainda por cima àqueles dois. Bolas, eu não tinha essa coragem. No outro dia, na reunião do condomínio, quis também ter assim um pouco a sua postura, mas não tive coragem. E depois não sei se estava preparado para o raspanete certo da minha mulher.

— Pois. Percebo isso.

— Ainda tentei armar-me em duro, mas…

Faz-se de novo um silêncio e Zelensky suspira como uma criança.

O motorista olha pelo retrovisor e atira com ar amistoso de quem está a falar com alguém nitidamente fragilizado:

— Se calhar, agora, o melhor era o Zel ir para o hotel descansar, porque nestes dias de raspanetes há sempre tendência de tudo piorar a seguir.

— Sim, eu conheço a sensação.

— Mas, bolas, eu nem quero acreditar que estou no mesmo carro com o homem que levou o maior raspanete da História dos raspanetes, em directo.

— Já chega, está bem!

— Sim mas mesmo assim, e se me permite Zel, você até teve muita coragem.

— Obrigado.

— O J. D. Vance fez-me mesmo lembrar o contínuo chefe da minha escola numa das muitas rabecadas que levei, em que percebeu que o director lhe estava a dar espaço e acabou por, através de mim que não tinha culpa nenhuma, mostrar o seu poder. Nessas situações estamos sempre lixados, sobretudo quando são dois ou mais a darem-nos cabo da cabeça. Mesmo que tenhamos razão. Tendemos sempre a fazer como o Zel fez, assim com os ombros em posição defensiva — imita —, e com a cabeça para a frente.

— Olha para a estrada!

Revi-me muito em si. — voltando a olhar para a frente — Provavelmente, eu e muitos milhões de injustiçados do mundo vitimas de reprimendas das antigas. É muito humilhante.

— Já chega. Tudo o que estás a dizer é verdade. Mas se queres saber, já levei muito piores. Olha para a minha cara. Não se vê logo que tenho ar de quem levou muitas na vida?

— Sim, por acaso, agora que penso nisso, tem sim. Mas ainda assim chegou a presidente.

— Isso é outra historia que não interessa para aqui e é melhor não quereres saber.

— Sim… BlackRock e não sei quê… A União Europeia a parecer uma equipa de natação sincronizado no que respeita à guerra é esquisito… Sim, sim. Percebo.

— Então… Olha lá a confiança. Não vás por aí.

Zel, já agora, queria dizer-lhe uma coisa… chata. — interrompe o motorista.

— O que é que foi agora?

— O Zel, quando se filma a si próprio e aparece na televisão…

-Sim. E então?..

O motorista pigarreia novamente para aclarar a voz.

— … Bem… Não é muito bom a filmar-se. Não me leve a mal. Mas primeiro, não devia filmar-se na vertical, e depois devia de ter maior distância entre si e a lente. Não me leve a mal novamente, mas fica sempre com o nariz muito grande. Não é nada contra si. Mas eu estudei cinema.

— Quando um homem está em baixo, toda a gente lhe dá pontapés. Tens razão. Vou pedir ao Spielberg para andar sempre comigo nessas situações. Deve levar barato.

Não queria ofender. — responde o chaffeur.

E Zelensky, visivelmente chateado insiste:

Se calhar, também não gostas da minha maneira de falar!

— Por acaso, não. Mas não me leve a mal. São gostos. O seu inglês é esquisito.

Zelensky vai para responder, mas o seu telefone toca. Olha para o nome e atende. É Olena, a sua mulher.

— Sim…

— É só isso que tens para dizer? Sim. Sim o quê?..

— O que é é que eu fiz agora?

Com Olena quase aos gritos, a conversa torna-se perceptível para o motorista.

— Tu nunca fazes nada! —ataca Olena. 

— Estiveste a ver? —pergunta Zelensky, a medo.

— Eu e mais três biliões de pessoas. Não tens vergonha? Olha para mim agora. Vai ser tudo a gozar comigo. 

— Mas o que é que eu fiz? Estás mais preocupada contigo do que comigo?

— Olha Linskinho, a tua sorte é eu estar aqui. Devias agradecer eu ainda estar aqui a falar contigo e não te virar as costas.

— Mas eu não fiz nada de mal!

— Vocês nunca fazem nada de mal!

— Está bem. Entrei um bocado à bruta…

— À bruta? Então tu vais para a Sala Oval armado em Stallone!

— Não exageres.

— Eles têm alguma razão. Sobretudo o barbichas country. Devias era estar agradecido por estares lá com eles. Já viste que, a esta hora, podias estar na televisão a fazer sketches estúpidos e a apresentar programas de merda tipo Big Brother?

— Mas…

— Não há aqui mas, nem meio mas… É mesmo assim. O que há é o que é.

Zel faz balão com pastilha elástica.

— O que é que isso quer dizer?

— Não é o que isso quer dizer. Não fujas da conversa.

— Mas eu não estou a fugir.

— Já viste a sorte que tens de ainda estar aqui a falar comigo e eu estar a dar-te bola?

— Olena, não sejas assim…

— E, já agora… Anteontem deixaste a roupa toda no chão e saíste do quarto sem arrumar.

— Desculpa mas isso não fui eu. Foi a Olga. Tu sabes bem.

— Ai não? Ok. Sim…

— Precis…

— Não foste tu, mas podias ter sido. Vocês são sempre a mesma coisa.

— Mas vocês quem? Estás a falar comigo.

— Vocês todos. Tu não tinhas necessidade disto…

O motorista interrompe com uma voz nervosa, no momento em que o ucraniano vai a responder:

— Não leve a mal, senhor presidente, mas, se calhar, devíamos sair do carro.

— O que é que foi? — pergunta o presidente, meio atordoado.

— Já fiz asneira. O motor parece estar a arder, mas a culpa não foi minha. —diz o motorista, saindo apressadamente do SUV.

— Foda-se!!! —grita Zelensky, enquanto tosse e bate com a cabeça no vidro.

Ruy Otero é artista media

Ilustrações de Manuel Silva

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