WHITE BLACK MIRROR
O raspanete

Passaram umas horas depois do incidente que toda a gente viu, e Volodymyr Zelensky continua abatido. Entra no SUV ainda com o fantasma bem presente da impressionante conversa que tivera, horas antes, com Trump e J. D. Vance, com o mundo todo a assistir.
Está apenas com o seu chaffeur na viatura.
Passado uns minutos de silêncio, e depois de se aperceber da postura melancólica e cansada do político-actor, diz-lhe o chauffeur:
— Não leve a mal, senhor presidente, mas numa coisa concordei com o que vi.
— Bem… Tu também?
— Se me permite senhor presidente…
— O que é que foi? — pergunta sem convicção o ucraniano, pusilânime e com alguma condescendência, consequência do cansaço acumulado. — Já não me bastou ter de levar com aqueles dois atrasados…

— Sim, mas… — pigarreia para aclarar a voz. — Senhor presidente, eu, se mandasse num país, e graças a Deus que não… — pigarreia novamente. — Não me vestia assim para uma cimeira, ou lá o que é que foi aquilo.
Zelensky abana a cabeça e, com um olhar vago, fita a paisagem sem se fixar nela.
O chaffeur continua:
— Nisso a minha mãe tem razão: devemos ir sempre bem vestidos para os encontros importantes. Desculpe a arrogância.
— Mas tu achas que eu gosto de andar assim vestido? — responde Zelensky com uma nova e súbita energia. — Achas que eu ando assim porque quero?
— Bem…
— Achas que já não tenho problemas suficientes lá na Ucrânia para ainda ter de estar aqui a levar contigo?
— Eu não qu… — o motorista tenta interromper sem sucesso enquanto Zelensky continua no mesmo tom:
— Achas que isto tudo é escolha minha? Já viste o que é que eu tenho de ouvir? Já percebeste que levei o maior raspanete da História da televisão? Achas que estou para isto? Também tenho honra, ou não?

— Bem, senhor Zelensky, eu não queria estar na sua posição. Isso é verdade. Uma vez na escola levei cá um raspanete na aula, à frente de toda a gente, que ainda hoje me lembro. Foi cá uma vergonhaça!
Zelensky recompõe-se.
— Agora multiplica essa aula por triliões. — diz, novamente, o politico, mas já com a voz normalizada.
— Fogo! Eu nunca mais dormia. —responde o motorista, levantando os olhos.
— Estás a falar das minhas roupas… Mas nem sequer sabes de que marca são!
— Isso é verdade. Lacoste não são, senão tinham aí o lagartinho. —diz o chaffeur, enquanto faz uma cara ameaçadora para um outro condutor que o acabou de ultrapassar.
Zelensky continua:
— Esta t-shirt custa para aí uns 500 dólares. Devias estar calado e guiar com atenção. E não penses que o Trump e o barbichas country vestem assim tão bem. A gravata do Trump estava suja de gordura.
— Bem, senhor presidente… Desejo-lhe sorte agora, quando tiver de dormir sem comprimidos. A alma até dói depois de um raspanete destes. E o senhor já não é propriamente um adolescente.
O motorista está ainda fixado naquele seu pequeno trauma.
— Eu, só com aquele raspanete que levei na escola, demorei anos a conseguir dormir bem outra vez. E eram só uns 20 na sala. Mas foi cá uma vergonha. — reforça o homem.
Zelensky, no entanto, aproveita a boleia da conversa para não pensar no seu assunto e diz:
— O que é que tinhas feito?
— Tinha posto pimenta nas hóstias na capela do colégio, senhor Zelensky.
O ucraniano por segundos esquece-se de Trump e ri-se.
— E depois ?
— Depois, durante a missa, as velhas, sobretudo, tossiram e espirraram muito e foi de morrer a rir vê-las.
Zelensky tem um novo assomo de energia e parece divertir-se com a historieta do motorista.
— Mas depois, lá no colégio interno, descobriram que fui eu. Fui delatado por um puto que me odiava. Olhe, presidente, imagine que era o Putin, tá a ver?
— Sim, mas não é preciso fazer comparações.
— Desculpe.
Faz-se um silêncio e depois, de repente, o chaffeur atira:
— Isto era mais fácil quando o Zelensky era actor, não?
— Estás a brincar? Prefiro, ainda assim, ser presidente na vida real.
— Mas lá não levava raspanetes destes…
— Não, que não levava… Do realizador da série, era quase todos os dias. Eu sempre levei raspanetes na vida. Não como o de hoje, claro. Isto não foi um raspanete. Isto foi um ataque de um porta-aviões.
— Não foi um; foram dois.
— Isso. Ainda pior.
— Mas, se me permite, Zel… posso tratá-lo por Zel?
— Sim, estás à vontade. Até prefiro. Mete-me no meu verdadeiro lugar.

— Bom… O Zel também foi para lá com duas pedras na mão. — arrisca o homem. E continua:
— É preciso muita coragem para chegar à Casa Branca e dizer o que o Zel disse. Ainda por cima àqueles dois. Bolas, eu não tinha essa coragem. No outro dia, na reunião do condomínio, quis também ter assim um pouco a sua postura, mas não tive coragem. E depois não sei se estava preparado para o raspanete certo da minha mulher.
— Pois. Percebo isso.
— Ainda tentei armar-me em duro, mas…
Faz-se de novo um silêncio e Zelensky suspira como uma criança.
O motorista olha pelo retrovisor e atira com ar amistoso de quem está a falar com alguém nitidamente fragilizado:
— Se calhar, agora, o melhor era o Zel ir para o hotel descansar, porque nestes dias de raspanetes há sempre tendência de tudo piorar a seguir.
— Sim, eu conheço a sensação.
— Mas, bolas, eu nem quero acreditar que estou no mesmo carro com o homem que levou o maior raspanete da História dos raspanetes, em directo.
— Já chega, está bem!
— Sim mas mesmo assim, e se me permite Zel, você até teve muita coragem.
— Obrigado.
— O J. D. Vance fez-me mesmo lembrar o contínuo chefe da minha escola numa das muitas rabecadas que levei, em que percebeu que o director lhe estava a dar espaço e acabou por, através de mim que não tinha culpa nenhuma, mostrar o seu poder. Nessas situações estamos sempre lixados, sobretudo quando são dois ou mais a darem-nos cabo da cabeça. Mesmo que tenhamos razão. Tendemos sempre a fazer como o Zel fez, assim com os ombros em posição defensiva — imita —, e com a cabeça para a frente.
— Olha para a estrada!
— Revi-me muito em si. — voltando a olhar para a frente — Provavelmente, eu e muitos milhões de injustiçados do mundo vitimas de reprimendas das antigas. É muito humilhante.
— Já chega. Tudo o que estás a dizer é verdade. Mas se queres saber, já levei muito piores. Olha para a minha cara. Não se vê logo que tenho ar de quem levou muitas na vida?
— Sim, por acaso, agora que penso nisso, tem sim. Mas ainda assim chegou a presidente.
— Isso é outra historia que não interessa para aqui e é melhor não quereres saber.
— Sim… BlackRock e não sei quê… A União Europeia a parecer uma equipa de natação sincronizado no que respeita à guerra é esquisito… Sim, sim. Percebo.
— Então… Olha lá a confiança. Não vás por aí.
— Zel, já agora, queria dizer-lhe uma coisa… chata. — interrompe o motorista.
— O que é que foi agora?
— O Zel, quando se filma a si próprio e aparece na televisão…
-Sim. E então?..
O motorista pigarreia novamente para aclarar a voz.
— … Bem… Não é muito bom a filmar-se. Não me leve a mal. Mas primeiro, não devia filmar-se na vertical, e depois devia de ter maior distância entre si e a lente. Não me leve a mal novamente, mas fica sempre com o nariz muito grande. Não é nada contra si. Mas eu estudei cinema.
— Quando um homem está em baixo, toda a gente lhe dá pontapés. Tens razão. Vou pedir ao Spielberg para andar sempre comigo nessas situações. Deve levar barato.
— Não queria ofender. — responde o chaffeur.
E Zelensky, visivelmente chateado insiste:
— Se calhar, também não gostas da minha maneira de falar!
— Por acaso, não. Mas não me leve a mal. São gostos. O seu inglês é esquisito.
Zelensky vai para responder, mas o seu telefone toca. Olha para o nome e atende. É Olena, a sua mulher.
— Sim…
— É só isso que tens para dizer? Sim. Sim o quê?..
— O que é é que eu fiz agora?
Com Olena quase aos gritos, a conversa torna-se perceptível para o motorista.
— Tu nunca fazes nada! —ataca Olena.
— Estiveste a ver? —pergunta Zelensky, a medo.
— Eu e mais três biliões de pessoas. Não tens vergonha? Olha para mim agora. Vai ser tudo a gozar comigo.
— Mas o que é que eu fiz? Estás mais preocupada contigo do que comigo?
— Olha Linskinho, a tua sorte é eu estar aqui. Devias agradecer eu ainda estar aqui a falar contigo e não te virar as costas.
— Mas eu não fiz nada de mal!
— Vocês nunca fazem nada de mal!
— Está bem. Entrei um bocado à bruta…
— À bruta? Então tu vais para a Sala Oval armado em Stallone!
— Não exageres.
— Eles têm alguma razão. Sobretudo o barbichas country. Devias era estar agradecido por estares lá com eles. Já viste que, a esta hora, podias estar na televisão a fazer sketches estúpidos e a apresentar programas de merda tipo Big Brother?
— Mas…
— Não há aqui mas, nem meio mas… É mesmo assim. O que há é o que é.

— O que é que isso quer dizer?
— Não é o que isso quer dizer. Não fujas da conversa.
— Mas eu não estou a fugir.
— Já viste a sorte que tens de ainda estar aqui a falar comigo e eu estar a dar-te bola?
— Olena, não sejas assim…
— E, já agora… Anteontem deixaste a roupa toda no chão e saíste do quarto sem arrumar.
— Desculpa mas isso não fui eu. Foi a Olga. Tu sabes bem.
— Ai não? Ok. Sim…
— Precis…
— Não foste tu, mas podias ter sido. Vocês são sempre a mesma coisa.
— Mas vocês quem? Estás a falar comigo.
— Vocês todos. Tu não tinhas necessidade disto…
O motorista interrompe com uma voz nervosa, no momento em que o ucraniano vai a responder:
— Não leve a mal, senhor presidente, mas, se calhar, devíamos sair do carro.
— O que é que foi? — pergunta o presidente, meio atordoado.
— Já fiz asneira. O motor parece estar a arder, mas a culpa não foi minha. —diz o motorista, saindo apressadamente do SUV.
— Foda-se!!! —grita Zelensky, enquanto tosse e bate com a cabeça no vidro.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Manuel Silva