EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

Contratos Públicos: quando o conluio começa a ser a regra e a decência é a excepção

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Pedro Almeida Vieira|04/04/2025

A Operação Pactum, conduzida pela Polícia Judiciária e que envolve suspeitas de conluio e cartelização na aquisição de material informático por várias entidades públicas, revela — mais uma vez — que a bandalheira na contratação pública em Portugal não é um acidente, é um sistema. Em causa estarão, neste processo, vícios procedimentais com um valor acumulado “não inferior a 17 milhões de euros”, mas o que realmente interessa vai muito além de uma cifra avultada: está em causa o próprio sentido da legalidade e do interesse público.

Ao longo dos últimos anos, o PÁGINA UM tem destacado, com persistência jornalística e rigor documental, largas dezenas de contratos públicos em que o abuso, a opacidade, a promiscuidade e, por vezes, a ilegalidade são práticas aparentemente correntes, dir-se-ia corriqueiras. Não se trata de meros erros administrativos ou de desatenções burocráticas.

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Estamos a falar de estratégias recorrentes para contornar a lei e favorecer determinadas empresas, das pequenas aos grupos económicos — muitas vezes os mesmos, sobretudo em sectores sensíveis e de negócios apetecíveis como as tecnologias de informação, a alimentação (escolar e hospitalar), a segurança privada, a limpeza ou os transportes escolares e de doentes. E sempre com o mesmo pano de fundo: o assalto ao erário público com a conivência dos decisores políticos e administrativos, e a passividade de reguladores e fiscalizadores, com o Tribunal de Contas à cabeça.

Vejamos alguns dos esquemas que se tornaram rotineiros e que o PÁGINA UM tem vindo a denunciar:

a) Ajustes directos por “urgência imperiosa”, invocada a pretexto de atrasos provocados pelas próprias entidades adjudicantes, ou em prazos que de urgentes nada têm. A “urgência” é frequentemente fabricada para contornar os concursos públicos.

b) Concursos públicos vazios ou com exclusão total dos concorrentes, seguidos de ajustes directos previamente combinados. Um clássico da concertação: quem ganha o ajuste directo raramente concorre — sabe de antemão que a concorrência será anulada.

c) Adjudicações sucessivas à mesma empresa, por ajuste directo, sem que haja qualquer reacção da concorrência ou do mercado. Uma evidência de cartelização consentida. Em muitos casos, os ajustes directos ocorrem após terminar a vigência de um contrato após concurso público, não sendo sequer sensato que não se tenha lançado novo concurso público para evitar ajustes directos.

d) Empresas que impugnam concursos que não venceram, mas que, enquanto aguardam decisão judicial, continuam a prestar o serviço por ajuste directo, mantendo de facto o monopólio.
e) Consultoras e sociedades de advogados contratadas por ajuste directo, com a desculpa de que é “impossível definir critérios objectivos” para concurso, quando os serviços são perfeitamente quantificáveis. Escolhas pessoais travestidas de necessidade técnica.

f) Contratações durante pandemia, muitas feitas sem cadernos de encargos, sem contratos escritos e muitas vezes com registo tardio no Portal Base — como no caso do Hospital de Braga, que demorou mais de dois anos a registar contratos de centenas de milhares de euros. Estou ainda aguardar que o Ministério Público fala buscas ao Hospital de Braga, cuja gestão durante a pandemia foi um verdadeiro ‘caso de polícia’, mas longe de ser o único.

Perante este panorama, a única coisa verdadeiramente surpreendente é a escassez de buscas policiais, detenções e condenações. Os sinais de prevaricação e conluio são tantos e, por vezes, tão descarados que se justificaria, aqui sim, uma task-force permanente da Justiça só para a contratação pública. Há cerca de ano e meio, encaminhei uma participação com mais de duas dezenas de casos suspeitos para o Tribunal de Contas. Foi um teste. Não houve qualquer consequência visível. Não é só o sistema que está capturado: é também a fiscalização que parece paralisada.

Torna-se assim imperioso adoptar uma política de mão-de-ferro na contratação pública, desde os ajustes directos de 19.999,99 euros (um ‘número mágico’ para entregar uns cobres aos ‘amigos do café’ sem concorrência) até aos contratos de milhões com cadernos de encargos a preceito ou a possibilidade de reajustes de preço. Isso significa, por exemplo:

Transparência absoluta: contratos e cadernos de encargos publicados atempadamente, com prazos escrupulosamente cumpridos.

Cumprimento rigoroso da lei: aplicação inflexível do Código dos Contratos Públicos e sanções reais para quem o violar.

Responsabilização efectiva: penalizações monetárias a gestores públicos que façam adjudicações irregulares e demissões de responsáveis políticos sempre que se detetem práticas sistemáticas de atropelo à legalidade.

Punição dissuasora de conluios e cartelizações: multas pesadas e, acima de tudo, exclusão temporária ou definitiva de empresas prevaricadoras da contratação pública.

Mas o combate à corrupção não se faz apenas pela punição: faz-se também pela correcção das falhas de mercado. Quando sectores inteiros se viciam em práticas de cartelização e de ajustezinhos directos combinados, cabe ao Estado intervir com soluções públicas.

Se, por exemplo, os concursos para fornecimento de alimentação escolar, de limpeza, de segurança privada ou de transportes continuam sistematicamente vazios — para depois surgir uma confortável adjudicação directa ao mesmo do costume —, talvez seja altura de o Estado ameaçar assumir directamente esses serviços, com empresas públicas dimensionadas e fiscalizadas. Não por ideologia, mas por defesa do interesse público e da concorrência verdadeira. Só o simples anúncio levaria a uma moralização de muitos sectores que vivem de esquemas em contratos públicos.

É tempo de dizer basta. A Operação Pactum está muito longe de ser um caso isolado: é apenas a prova de que há muito tempo a excepção deixou de ser a corrupção — ela é, hoje, a norma. A decência, essa, é que se tornou rara.

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