CORREIO MERCANTIL
Perde-se a electricidade, perde-se a alma, perde-se o juízo

Pois sim, senhoras minhas e senhores meus, pois sim. Eis o que sucedeu: apagou-se a luz e apagastes vós todos com ela. Ah, que maravilha! Que regalo sublime para mim, que nunca conheci a electricidade em vida, senão por escassos rumores e vãs promessas dos sábios do meu tempo, mas que, já falecido e bem acomodado no Além, tive notícia, com certa estupefacção zombeteira, de que afinal a dita cuja servia mesmo para alumiar casas!
Foi em 1883 — dois anos depois da minha morte, vede só que pontualidade irónica! — que a Rua do Ouvidor, essa mesma que tantas vezes percorri sem pressa e sem nexo, se viu iluminada não mais pelas tremeluzentes lâmpadas a gás, mas por luz eléctrica, faísca domesticada por engenheiros atrevidos, com o aplauso do nosso mui progressista D. Pedro II. Eu, cá do meu canto de defunto, ri-me. E ri-me porque, na minha vida inteira, sempre me bastou a penumbra das velas e a luz duvidosa das ideias, sem jamais suspeitar que um dia os homens viriam a tornar-se escravos de um fio e de uma tensão, como bestas presas a um cabresto invisível.

No meu tempo — oh, esse tempo tão escuro e afinal tão claro! —, não se usava electricidade, e livrei-me, tanto quanto pude, de outra novidade esotérica: o telefone! Sim, o telefone, essa maquineta que, diziam-me, transportava vozes também pelos fios como se fossem almas penadas em visita. No meu tempo, ouvi rumores dessa prodigiosa engenhoca concebida por um tal de Alexander Graham Bell, que teve a ousadia de querer abolir as distâncias com metal de Chipre e um bocal.
Soube que o nosso imperador D. Pedro II, homem dado a essas extravagâncias, até se deleitou com o engenho em 1877, apressando-se a trazê-lo para o Brasil como se fora coisa de utilidade pública. Mas dizei-me: que prazer haveria em falar com alguém sem o ver? Que confiança poderia haver numa conversa sem rosto, sem gestos, sem cheiros? Para mim, em vida, o telefone sempre pareceu um convite à mentira, um artifício para os tímidos, um substituto melancólico das cartas perfumadas e dos encontros marcados com hora e chá.
Enfim, bem sei que a electricidade e outras engenhocas de similar inquietude fabricaram carros sem cavalos, transmitiram vozes por entre os ares ou, ainda mais fantástico, projectaram imagens animadas em caixinhas que falam e mandam.

Nada disso me maravilha. Havia as cartas — essas, sim, perfumadas, com caligrafia pensada e lacre de bom tom —, que se esperavam com saudade. Havia convites entregues em mão para horas certas, e esperava-se o outro sem a ansiedade de notificações. Os encontros marcavam-se e cumpriam-se. No seu tempo, não se ligava a ninguém, não se estava ligado a ninguém, porque não havia o que ligar. E assim se vivia, donzelas e cavalheiros, com menos luz, é certo, mas com menos tremores de alma. Povos atrasados? Talvez. Povos mais sábios? Talvez também.
Pois vede o que vos sucedeu hoje nesta era de prodígios! Um apagão, um trambolhão da vossa deusa Electricidade — bastou isto para vos lançar na mais ridícula aflição. Em Portugal, esse reino que outrora desafiava oceanos e Adamastores, bastou que se quebrasse o fio vindo de Espanha — e vede só, vós que outrora lutastes contra Castela, agora vos pendurais e dependeis dos seus cabos! — para que tudo parasse. E não falo só das máquinas, senhoras e senhores, mas de vós mesmos, que, sem luz, vos perdeis como baratas desorientadas em salão de baile. Bastou esse estertor eléctrico pela manhãzinha, e desatastes em teorias da conspiração, metendo Putin e os extraterrestres, para em seguida aparecer um tropel aos hipermercados, como se o fim do mundo estivesse anunciado pelos querubins…
E que buscastes vós, donzelas e cavalheiros? Água, enlatados, e claro, o sagrado papel higiénico, esse símbolo dos vossos temores modernos, mais precioso que o ouro dos tempos antigos. Carrinhos cheios, e não de cultura, mas de conserva. A luz faltou-vos nas casas, mas também nos juízos. E vi-vos, eu, que nunca precisei de electricidade para existir, correrdes por entre prateleiras como se fosse preciso abastecer a arca para o Dilúvio. E que pena, senhoras e senhores! Que pena que as vossas baterias e os vossos geradores, esses pequenos Prometeus de ocasião, só bastassem para as caixas registadoras e não para os livros, que ficaram às escuras, como que a zombar da vossa pressa.

No meu tempo, faltava luz, porque era noite? Acendia-se a vela. Faltava notícia? Escrevia-se uma carta e aguardava-se pela resposta. Faltava o pão? Falava-se com o vizinho. Hoje, falta-vos luz, e faltam-vos as pernas, os braços, a alma. A electricidade tornou-se o vosso espírito, e, quando se vos apaga, sois mortos-vivos, mas sem a elegância de um defunto.
E assim, confesso: gozei, gozei muito, ao ver-vos entregues ao terror de um mundo sem luz. Porque não é a treva que vos mete medo, mas a vossa incapacidade de viver sem luz. Eu, que morri iluminado apenas pelas ideias vagas de um século sem fios, digo-vos: aprendei com o escuro. Ele vos ensina que a luz não está na parede, mas na alma. E que mais vale uma noite de sombras com espírito do que um dia claro numa cabeça vazia.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.