8.524 MWH ENVIADOS ESTA NOITE PERMITEM ABASTECEER 676 MIL PESSOAS DURANTE UM DIA
Portugal continua a exportar grandes quantidades de electricidade apesar das garantias da REN

Apesar das declarações da REN, transmitioas ontem ao jornal Público, de que foram suspensas as trocas comerciais de electricidade com Espanha “até ao final da semana”, Portugal continuou esta madrugada a exportar energia de forma significativa, numa operação que põe em causa a clareza e transparência da comunicação da empresa responsável pela gestão do sistema eléctrico nacional e a rede de transporte.
Ontem, a REN afirmou ter “limitado para amanhã [hoje] e dias seguintes a capacidade de trocas no sentido importador a zero MW”, sustentando que a decisão visava assegurar a estabilidade do sistema ibérico e que as interligações com Espanha estariam “a ser utilizadas nos fluxos normais em tempo real”, apenas para efeitos de equilíbrio técnico.

No entanto, dados de exportação de energia eléctrica recolhidos entre as 00h00 e as 8h00 (hora espanhola), consultados pelo PÁGINA UM, permitem concluir, com base em cálculos, que Portugal exportou durante esse período um total de 8.524 MWh de electricidade. Esta quantidade seria suficiente para abastecer durante um dia inteiro cerca de 676 mil pessoas, com base no consumo médio diário de 12,6 kWh.
A exportação praticamente contínua desde a meia-noite e crescente ao longo da madrugada, com potências instantâneas superiores a 1.800 MW a partir das 6h00 da manhã, contrariando a imagem de suspensão de trocas dada pela REN. Com a chegada do dia, a exportação de Portugal para Espanha está a diminuir.
A aparente contradição entre a posição da REN e a realidade reside na distinção – técnica mas ambígua – entre “trocas comerciais” e “fluxos técnicos”.

As trocas comerciais referem-se às operações registadas nos mercados organizados de electricidade, com contratos definidos, enquanto os fluxos técnicos referem-se a ajustes automáticos e operacionais executados pelos operadores de rede, de modo a garantir o equilíbrio entre geração e consumo. No entanto, nada impede que um fluxo técnico possa, na prática, equivaler a uma transferência económica disfarçada, especialmente se for contínuo e previsível.
A electricidade, recorde-se, não transporta ‘etiquetas’, ou seja, não é possível distinguir fisicamente se um determinado KWh ‘trocado’ é oriundo de uma transacção comercial ou ser por equilíbrio de rede. Assim, a distinção invocada pela REN baseia-se mais em critérios administrativos e operacionais, e não físicos, permitindo que a interligação continue a funcionar como canal de exportação, mesmo quando publicamente se declara o oposto.
Esta prática pode configurar, assim, uma mera operação semântica de desresponsabilização, permitindo à REN afirmar que não há importações nem exportações comerciais, embora mantenha o funcionamento efectivo das interligações com Espanha em larga escala. O risco mostra-se evidente, pois sem uma auditoria pública dos fluxos e das justificações técnicas em tempo real, é impossível saber se estas transferências não estão a servir, afinal, apenas o habitual interesses de mercado.

Acresce ainda que a necessidade de electricidade espanhola oriunda de Portugal durante a madrugada não aparenta ter sido imprescindível. Analisando os registos da Red Eléctrica, registou-se durante a recente noite uma redução voluntária da produção hidroeléctrica em Espanha, com parte das turbinas das barragens a serem desligadas, o que fez baixar a potência hidráulica de cerca de 7.000 MW às 21h00 de ontem para cerca de 5.000 MW ao longo da madrugada de hoje. Ao mesmo tempo, Espanha manteve exportações activas para Marrocos, o que mostra que não se encontrava em situação de défice urgente de energia.
Por outro lado, a reactivação das centrais nucleares espanholas também se tornou visível, com os níveis de produção nuclear a situarem-se já em cerca de 40% do valor anterior ao apagão da passada segunda-feira, reforçando a ideia de que a procura espanhola por electricidade portuguesa foi motivada por razões comerciais ou estratégicas, e não por necessidade técnica imperiosa.