CORREIO MERCANTIL
Da jerricanocracia, ou a gloriosa arte de governar com um bidão

É nos momentos de treva que se iluminam, paradoxalmente, as grandes verdades de uma nação — tal como as constelações só se revelam quando o céu fecha os olhos ao sol. Pois, pela tarde do mais recente Die Lunae, esse dia lunar que vos chegou não com claridade celeste, mas sempre sob a sombra terrena da incompetência, quando, por ironia e despeito, a nova luna dominava os céus, cá em baixo, na Hispania — essa província antiga que Roma quis disciplinada, e nunca verdadeiramente conseguiu domar — eclipsou-se a luz artificial num apagão digno de tragédia sem corifeus, sem coro e sem poesia. Ficou-se sem lâmpadas, sem semáforos, sem elevadores, sem terminais multibanco, sem café expresso, sem ar condicionado, sem semelhança com um país civilizado, sem linha para o INEM, sem paciência para mais explicações, e — suprema miséria! — sem Wi-Fi. Foi um colapso não apenas energético, mas simbólico: como se a civilização tivesse tropeçado num fio solto e mergulhado, não em trevas místicas, mas no mais literal e humilhante breu de terceiro escalão.
Não terá sido por castigo dos deuses, que já não se ocupam de gente que não lhes ergue templos, mas por um fenómeno moderno e muito vosso: a indolência com gravata, a incompetência com cartão de acesso ao Parlamento, a leviandade com estatuto de governante. E logo assim, o pânico — esse combustível psicológico das nações inseguras, onde a administração é sempre provisória e a lucidez um artigo de contrabando — ardeu mais vivo do que as velas pascais e revelou o que já todos sabiam, mas fingiam não ver: o simulacro de um Estado feito de papel higiénico. E assim se foi a electricidade, e assim ficaram a estupidez e a estultícia — incandescentes, persistentes, institucionalizadas.

Portugal, esse vosso solar centenário de paredes esfareladas e bandeira esfarrapada ao vento da nostalgia, que já dobrou o Cabo das Tormentas com a audácia de quem levava mundos ao Mundo, e o metia ao bolso, acagaça-se agora e dobra os joelhos ao primeiro curto-circuito. Não houve meteoros, sabotagens, bombardeamentos nem revoluções — apenas o silêncio da rede eléctrica, que se apagou como um velho candeeiro de tecto que ninguém quis substituir. E eis que o país, tão dado a actos de heroísmo, se revelou herói apenas do improviso. Um apagão bastou para que o aparelho de Estado se quedasse como um boneco de feira sem corda — imóvel, grotesco, com olhos pintados e boca de mola.
De todos os ecos que me chegaram ao vale de sombras onde agora repouso — com maus fígados, sim, mas também com boa escuta — nenhum me trouxe tanto gáudio espectral como o caso da Maternidade Alfredo da Costa, esse lugar sagrado onde nascem filhos e dívidas, parturientes e futuros reformados, quiçá um novo Sebastião que vos resgate a cavalo de um orçamento suplementar.
Contou-se, sussurrou-se, que ali só havia gasóleo para mais uma hora de respiração institucional. Uma hora! Um sopro de diesel entre a vida uterina e o blackout total. A civilização pendurada. E foi então que, em plena capital da república e no seio da era do hidrogénio verde, da inteligência artificial e dos planos para Marte, se desceu à mais prosaica das angústias: quem acudiria? A Protecção Civil? Os bombeiros? O vizinho com um Opel Corsa? Não: o Conselho de Ministros. Porque, na liturgia republicana do improviso, cada ministro é um apóstolo e cada jerricãs um sacramento.

Assim se ergueu, na República dos Bidões, em conclave emergente, o Governo para decidir, com gravidade operática, sobre o fluxo de diesel — como outrora o Santo Ofício debatia heresias e astros. Propôs-se, em tom messiânico, que os motoristas ministeriais conduzissem gasóleo, não por estrada, mas pela História adentro, como cavaleiros do pós-modernismo. Jerricãs! Ah, jerricãs — unidade de medida do desespero, ícone portátil do colapso administrativo, agora alçados ao altar do ex-palacete bancário na Avenida do Pedro Hispano. Maravilha: o mesmo país que outrora construiu caravelas para atravessar o Atlântico e dar mundos ao Mundo, debateu recipientes de plástico.
A mente — que o cérebro se me finou — naturalmente dada a paralelos históricos, conduz-me à fatídica primeira manhã de Novembro de 1755, quando Lisboa ardia e se afundava em escombros, cheiros a enxofre e lamentos. Nessa aurora de catástrofe, a prioridade régia foi dar ordem ao Marquês Estribeiro-Mor para tirar das ruínas o embaixador de Espanha — não para salvar os feridos, nem cuidar dos órfãos, nem sequer proteger os arquivos da Torre do Tombo. Quase três séculos depois, sob os escombros de um blackout digital, a prioridade foi alimentar um gerador. Progresso? Não sei. Mas persistência no disparate, disso ninguém vos acusarão em vão.
Eis, pois, o retrato vívido, ainda que pintado a carvão de sarcasmo, da vossa República: uma administração de improviso com fachada de eficiência, um Estado que se desfaz ao primeiro estalido e responde com encenações que visam parecer planos — mesmo que só planeiem parecer. Enquanto isso, o povo — esse ente que paga impostos e aguenta com solenidade de santo — assiste aos seus governantes confundirem governar com abastecer. A política, esse nobre tabuleiro de xadrez, é agora um jogo de damas — e cavalheiros — com tampas de garrafão, ou de jerricãs.

A política, esse nobre jogo de xadrez, tornou-se um torneio de damas jogado com tampas de garrafão. O Governo nem sequer confiou na Protecção Civil — que deveria ser civilizada —, nem nos bombeiros voluntários, financiados com subsídios dos contribuintes para não parecerem, nem serem, profissionais; nem nos planos de contingência. Preferiu entregar-se ao desespero dos improvisos, como quem procura espetar azeitonas com um garfo de plástico. Não houve plano B, nem plano XPTO; houve uma fé quase sebastianista na sorte e, se esta falhasse, na argúcia do motorista do ministro adjunto que sabe onde ficava a bomba mais próxima.
A administração da Unidade Local de Saúde de São José, que supervisiona a Maternidade, lá veio, com paninhos quentes e contas de aritmética hospitalar, garantir que afinal o gerador tinha 400 litros e que a autonomia era de cinco horas. O problema, minhas senhoras e senhores meus, não foi a realidade, mas a percepção. Um clássico do vosso tempo: a verdade já não se mede em litros, mas em “narrativas”. A aflição governamental foi, afinal, uma reacção desmesurada, como quem se atira para o chão perante um estalido, julgando-o trovão. Um cão que ladra ao som do disjuntor.
E, no entanto, se um só recém-nascido tivesse exalado o último suspiro em pleno blackout, teria sido suficiente para enterrar este Governo até ao último resquício de memória institucional. O medo da morte — não biológica, mas mediática — esse novo Santo Ofício do século XXI, move ministros como outrora movia os inquisidores.
A encenação tomou conta da acção — e da Nação — e, por isso, não me admiraria que, em breve, se anunciasse com pompa um Plano Nacional de Distribuição de Jerricâs, com fases, eixos, metas, PowerPoints e consultores internacionais de combustíveis portáteis. Prevejo que, no futuro, os jerricãs se tornem amuletos da lusitana Nação: ao lado das latas de atum e salsichas, do papel higiénico, da garrafinha de água, do rádio a pilhas, dos isqueiros com licença, das máscaras, do panfleto da DGS e do chip do cartão de cidadão — que não localiza ambulâncias, mas dá pontos no Continente.

Num país onde tudo ora arde, ora escurece, ora rebenta, o improviso já é política de Estado. O Conselho de Ministros converteu-se em quartel de voluntários, onde se decide a logística de combustíveis como quem escolhe o hino de uma colectividade, ou se decide se se contrata o Toy ou o Tony Carreira para a festa do emigrante. E falta apenas, para que a ópera bufa esteja completa, um Ministro da Energia Imediata ou um Secretário de Estado das Soluções Patéticas. Nada que um despacho em Diário da República não possa decretar com solenidade — a bem da Nação!
Governar, neste vosso reino do quase, já não é planear, prever ou pensar — é apagar fogos com copos de água, abastecer geradores com jerricãs e pedir a Deus que o motorista chegue antes da última contracção. Os mais sagazes — que já fugiram, ou se fizeram suecos — sabem que o segredo da governação nacional já é só o improviso com ar grave, a pose sem substância, a pressa como doutrina, o plano de emergência com a única urgência de parecer um plano.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.