EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA
Spinumviva: o jornalismo da esponja e a nódoa que persiste

Em democracia, há momentos em que a história se repete, não como farsa, mas como ensaio da decadência. A queda do Governo de Luís Montenegro, provocada por um escândalo ético (pelo menos) envolvendo a sua empresa familiar Spinumviva -cujo único activo era ele próprio, não pelo conhecimento jurídico mas influência política –, parecia inaugurar um momento de depuração cívica.
Mas bastaram poucos dias para que se reinstalasse o mecanismo rotineiro da absolvição mediática, essa máquina bem oleada que, em vez de investigar, serve para enxaguar a nódoa. Luís Rosa, jornalista do Observador, que se apresenta como repórter de investigação, apresentou uma suposta investigação jornalística que serviu para uma narrativa muito conveniente para uma ‘limpeza ética’ de Luís Montenegro e preparar um nível de vitimização para ‘desaconselhar’ um enfoque no caso Spinumviva.

A peça assinada por Luís Rosa e João Paulo Godinho, publicada em tom triunfal no dia 19 de Março, garantia ter sido baseada na consulta de mais de mil documentos sobre a actividade da Spinumviva — documentos que alegadamente comprovavam, de forma irrefutável, que os serviços prestados tinham sido reais, substanciais, legítimos. Porém, o leitor mais atento — e qualquer jornalista com um mínimo de exigência — deparou-se com uma ausência total de provas visíveis: na peça não surgia nenhum fac-símile, nenhum relatório, nenhum contrato, nenhum e-mail, nenhuma factura, nada. Apenas o anúncio da existência dos documentos, talvez por fé, talvez por conveniência. Em vez de jornalismo de investigação, tivemos jornalismo de proclamação.
Não há desculpa plausível para um jornal digital, que opera sem os constrangimentos de espaço do papel, não apresentar aos seus leitores, nem que fosse em anexo, uma pequena amostra dos tais documentos. E as imagens publicadas, com dossiês e folhas amontoadas, pareciam mais uma produção estética do ChatGPT do que uma prova documental genuína. Não se vislumbrava sequer uma citação, nada.
A operação foi tudo menos inocente: serviu para projectar a ideia de que o caso estava encerrado, de que Montenegro era uma vítima da má-língua e do “clima de suspeição”, e de que tudo não passava de uma cabala. A imprensa convencional não perdeu tempo: replicou a narrativa sem pestanejar, sem escrutinar, sem perguntar.

E assim se passou, durante algum tempo, uma esponja sobre a razão primordial da queda do Governo: a promiscuidade entre funções públicas e interesses privados, a opacidade das avenças, o potencial conflito de interesses, e a recusa em afastar-se de uma empresa familiar com ligações activas a entidades com relações com o Estado. E mais:percebeu-se também que, por coincidência, um cliente da Spinumviva é pai de um candidato do PSD à Câmara de Braga.
Nestas eleições, mais do que confirmar ou não um sistema político de governos minoritários – o que, numa democracia, até deveria ser saudável e saudado –, está em causa se o eleitorado sanciona ou não aquilo que representa o caso Spinumviva. Não foi a oposição que forçou a queda do Governo: foi o próprio Luís Montenegro que apresentou uma moção de confiança. Caiu não por perseguição política, mas porque perdeu a legitimidade ética.
Agora, já em vésperas da campanha eleitoral, surgiu afinal uma nova lista de empresas que constam como clientes da Spinumviva, com destaque para a ITAU e a Sogenave – ambas do ramo alimentar e que têm contratos volumosos com entidades estatais que, por exemplo, fornecem cantinas de escolas e hospitais em ajustes directos – e ainda a Portugalenses Transportes, a metalomecânica bracarense Beetsteel, a consultora espanhola INETUM Portugal, e a Grupel, que actua no sector da energia.

Estranhamente, ou talvez não, esta informação surgiu através de uma declaração do próprio Luís Montenegro à Entidade para a Transparência – que supostamente o primeiro-ministro pensaria que viesse a ser confidencial – não veio pela mão de Luís Rosa. Nem do Observador. Nem de qualquer outro órgão que tenha ecoado, sem filtro, a narrativa de reabilitação.
Recordemos para memória futura; Luís Rosa garantiu em Março passado ter lido acesso a mais de mil páginas de documentos sobre a Spinumviva. E então, não recebeu a informação sobre esta (novas) empresas. Ou não a quis mostrar? O que é pior? Ter sido ingénuo e manipulado por fontes próximas de Luís Montenegro – ou pelo próprio –, acreditando que tinha toda a verdade? Ou ter recebido apenas parte da informação e, mesmo assim, ter decidido avançar, consciente de que servia uma operação de maquilhagem? Em qualquer dos casos, fica manchada a integridade jornalística.
A função do jornalismo de investigação não é salvar políticos caídos em desgraça, nem reescrever as razões das suas quedas, nem participar em operações de cosmética eleitoral. É perguntar, duvidar, incomodar. Não há investigação jornalística sem provas, mas estas têm de ser apresentadas como critério e seriedade. E não há jornalismo sério quando se confunde o acesso exclusivo com a fidelidade à fonte. Luís Rosa, neste episódio, não foi jornalista; foi transmissor.

Se Montenegro ganhar as próximas eleições, não será por ter explicado de forma clara os contornos da ligação da Spinumviva aos seus clientes e sobre as razões da sua contratação. Será porque a imprensa — a começar pelo Observador — contribuiu para apagar, na consciência colectiva, o escândalo que levou à dissolução da Assembleia. Será porque uma parte do jornalismo português continua a ver os políticos como aliados ou como clientes, não como sujeitos a escrutínio. Será porque a exigência democrática se diluiu no espectáculo da vitimização e da propaganda.
É neste exacto ponto que a nossa democracia desce mais uns graus na escala da decência. Não porque o cidadão vota mal, mas porque lhe mentem; porque lhe ocultam; porque lhe vendem moral em troca de prestígio editorial. E porque, no final de contas, quem escreve não responde pelos actos de quem governa, mas deveria, no mínimo, prestar contas pelo silêncio conveniente e pelas investigações de papel.
Neste caso da Spinumviva, a esponja (do jornalismo) está gasta; e aquilo que resta é a nódoa.