CÂMARA DE CANTANHEDE CONTRATA 'ESCULTOR DA CASA' PARA CELEBRAR 25 DE ABRIL
19 hastes curvas encimadas por um ‘anel de rubi’ custam 406 mil euros

Escultores da casa podem não fazer milagres, mas podem fazer ‘desaparecer’ cerca de 406 mil euros do erário público para celebrar os 51 anos de um acontecimento histórico português que, ironicamente, para além da liberdade, concedeu igualdade de oportunidades.
Na pequena cidade de Cantanhede, no distrito de Coimbra, a autarquia local decidiu escolher, sem qualquer pré-selecção, por ajuste directo, um escultor da terra, Celestino Alves André, para executar um ‘monumento de celebração’ ao 25 de Abril, que passou a estar exposto no parque urbano local.

Nascido em 1959, Alves André destaca-se sobretudo como medalhista e como ‘criador’ de bustos e estátuas em tamanho natural ou monumental, frequentemente fundidas em bronze. No entanto, esta encomenda da autarquia de Cantanhede, liderada pela social-democrata Helena Teodósio, foge completamente ao estilo do artista: trata-se de uma estrutura ascensional de metal composta por 19 hastes curvas e verticais, encimada por um ‘anel de rubi’ representando o brasão de Cantanhede, simbolizando as freguesias do concelho à data da Revolução dos Cravos. Para os mais incautos, parecerá uma estrutura para um ninho de cegonhas.
Mas o mais surpreendente nesta obra colocada no Parque Urbano de São Mateus é o custo e também o seu faseamento. De acordo com o contrato publicado no Portal Base, que nem sequer contém o caderno de encargos – impossibilitando perceber se o ‘anel de rubi’ é de vidro ou de resina –, a obra teve um custo total de 405.900 euros, ou seja, 330 mil euros acrescidos de IVA. Este é um valor extraordinariamente elevado para obras de arte desta natureza, sobretudo quando se está perante um município de menos de 35 mil habitantes com escassos recursos finaceiros. A título de exemplo, os dois conjuntos escultórios de autoria de Francisco Tropa no terminal intermodal da Campanhã – “Penélope”, composta por quatro figuras em bronze, e “Dánae”, duas fontes em bronze –, também por ajuste directo, tiveram este custo total, pago pela empresa municipal Gestão e Obras do Porto.
A escolha por ajuste directo, por um valor tão elevado, mesmo que seja invocado o carácter artístico, levanta questões sobre a transparência e os critérios de atribuição deste tipo de contratos, sobretudo tendo em conta o envolvimento de um artista com ligação ao município.

Com efeito, Alves André tem estabelecido diversas parcerias com a edilidade de Cantanhede, realizando mesmo visitas guiadas promovidas pela autarquia ao seu ateliê na aldeia de Portunhos. Naquele município encontram-se também já várias esculturas da sua autoria, designadamente o Monumento ao Ourives Ambulante, inaugurado em 1990, em Febres; o Monumento ao bandeirante Pedro Teixeira, inaugurado em 1993, no centro da cidade; e a imponente estátua equestre do Marquês de Marialva, inaugurada em 1999, na praça que lhe é dedicada.
No restante distrito de Coimbra, Alves André também tem ‘muita saída’. Na cidade do Mondego, o escultor assinou diversas obras de relevo, com destaque para o busto do pintor José Maria Cabral Antunes, inaugurado em 1987; a Tricana de Coimbra, estátua em bronze, colocada na Rua de Quebra Costas em 2008; a Guitarra de Coimbra, no Largo da Almedina, e a estátua da Irmã Lúcia, ambas inauguradas em 2013. No concelho de Mira estão mais duas: uma evocando o Infante D. Pedro, primeiro duque de Coimbra, erguida em 1996 na sede do município; e outra dedicada aos pescadores da Praia de Mira, inaugurada em 1998. Fora do ‘seu’ distrito, Alves André tem o busto de Francisco Stromp, junto ao Estádio de Alvalade, uma estátua em memória do Papa João Paulo II em Cascais e outra ao mesmo pontífice em Timor-Leste.
Além do processo por ajuste directo, o contrato – que previa a “concepção, execução e instalação de obra de arte para espaço público evocativa do 50.º aniversário do 25 de Abril” – foi assinado apenas no passado dia 17 de Março, o que, considerando a complexidade do seu fabrico, mostra que, antes da adjudicação, já o escultor estava a trabalhar na peça.

Antes da escultura ao 25 de Abril com um custo de 405 mil euros, segundo dados consultados no Portal Base – que compila informação desde 2008 –, o artista tinha apenas dois contratos: o busto em bronze do Visconde da Corujeira, encomendado em 2021 pelo Município de Mira por ajuste directo, no valor de 17.500 euros, e uma obra escultórica de homenagem a Idalécio Cação, também por ajuste directo, pelo Município da Figueira da Foz, pelo montante de 8.500 euros.
Apesar de a presidente da autarquia de Cantanhede não ter respondido às questões colocadas pelo PÁGINA UM, durante a cerimónia de inauguração, Helena Teodósio destacou que a obra “teve o envolvimento de todas as forças políticas com assento na Assembleia Municipal” e que visa “perpetuar o carácter emblemático da efeméride”, reforçando os valores do 25 de Abril junto das novas gerações. Na mesma cerimónia, de acordo com o transmitido pelo site do município, Alves André afirmou que a escultura “celebra os valores de Abril” e também “o desenvolvimento das freguesias do concelho”, destacando que se trata de “uma peça agradável, elegante e concebida a partir de elementos identitários locais”.
Pese embora o contexto comemorativo e a intenção simbólica da obra, o investimento elevado e a forma desta contratação directa motivam interrogações quanto à gestão dos dinheiros públicos, sobretudo num momento em que muitas autarquias enfrentam constrangimentos orçamentais.

O Código dos Contratos Públicos impõe os princípios da concorrência e da igualdade de tratamento, não existindo qualquer norma no articulado legal que permita beneficiar expressamente os artistas locais em procedimentos de contratação. A legislação portuguesa, alinhada com o direito europeu, proíbe qualquer discriminação com base na origem geográfica do concorrente, mesmo que essa preferência pudesse traduzir-se numa valorização do património cultural de uma comunidade.
Ainda assim, os responsáveis políticos ou autárquicos dispõem de algumas margens de manobra. Nos contratos de menor valor, adjudicados por ajuste directo ou por consulta prévia, a escolha de artistas locais torna-se mais viável, desde que fundamentada com critérios objectivos e devidamente publicitada. Mas tal não se aplica a uma das obras de arte de valor mais elevado dos últimos anos encomendada por um município português.
Em todo o caso, nos concursos públicos convencionais, a introdução de critérios de adjudicação que valorizem a ligação da obra à identidade local — desde que expressos com clareza e aplicados a todos os concorrentes — pode permitir a selecção de propostas oriundas da comunidade artística da região sem violar a lei. Mas a opção da autarquia de Cantanhede foi pelo contrato de ‘mão-beijada’.