CORREIO MERCANTIL
Sondagens, ou a cartomancia laica, seguida de prospecção necropolítica

Há um certo prazer mórbido — e como extinto cavalheiro posso atestá-lo — em observar os vivos a debater o futuro com ferramentas de carpinteiro sociológico: réguas enviesadas, esquadros partidos e martelos que só pregam onde lhes convém. Refiro-me, pois claro, às sondagens — essas cartomancias laicas, aritméticas de feitiçaria travestidas de ciência estatística, que se oferecem ao povo como bússolas de opinião, mas funcionam, na verdade, como cajados de pastorícia manipulada. Não orientam, conduzem; não revelam, sugerem; não informam, insinuam — e fazem-no com a mesma seriedade de uma beata a lançar búzios num comício.
Em Portugal, a sondagem política já não serve para compreender o eleitor: serve para o modelar. O lusitano cidadão, qual Narciso sociológico, olha-se na poça dos números sorteados e diz: se calhar também voto neles. E assim, entre percentagens e margens de erro, os partidos sobem ou descem não por mérito ou demérito, mas por acasos metodológicos, telefonemas ao jantar e ajustes de quotas feitos por estagiários com pressa de fechar o ficheiro Excel antes do fim da tarde.

Não digo isto com acrimónia — mas com a placidez de quem repousa fora do nível de significância. Afinal, não me podem sondar — estou morto. E ainda bem, pois nesta condição sou poupado a interrogações meteorológicas do género: Em quem pensa votar se as eleições fossem hoje?, como se o acto eleitoral fosse uma trovoada súbita e o eleitor um barómetro com telemóvel.
Mais ainda: os vivos, incautos enredados em empresários de sondagens, são hoje vítimas de uma superstição quantitativa, uma fé neopositivista que venera, em geral, apenas seiscentos inquiridos como se fossem todo o povo, ou os trezentos espartanos das Termópilas a dobrar, escolhidos por Leônidas com base em quotas demográficas — embora armados apenas com opinião e a hesitação de quem foi interrompido a meio do jantar.
Vem depois a imprensa, essa Hermes ruidosa da era algorítmica, cúmplice do barulho dos gráficos, que converte flutuações estatisticamente irrelevantes em oráculos editoriais, com setas vermelhas e verdes como os olhos de Argos — atentos a tudo, a opinar sobre o absoluto, a comentar sobre o trivial, mas a compreender nada.

E assim, o destino da Lusitana Nação parece pender do voto distraído de um senhor de Matosinhos que atendeu o telefone fixo julgando tratar-se do canalizador ou de uma matrafona de Linda-a-Velha a pensar que lhe ofereceriam no fim um cupão do Lidl.
Que me perdoem os estatísticos e os pitonisos do voto, mas sondagem eleitoral é como os chapéus do Vasco Santana: há muitas e nem todas servem para cobrir a cabeça da razão. Ora, como defunto experiente, e sobretudo vacinado contra ilusões de urna — que sufrágios foi coisa que jamais usei —, decidi promover um inquérito mais fidedigno: uma prospecção necropolítica, onde a abstenção se mede apenas pela ausência de ectoplasma e a opinião é tanto mais lúcida quanto mais esquecida está a corrupção dos sentidos.
Não convoquei assim quaisquer eleitores registados nos cadernos das juntas de freguesia, nem tão-pouco o Sérgio Sousa Pinto, até porque o encontrei a “pôr a roupa na máquina“, e não o quis incomodar. Convidei sim defuntos consagrados, aqueles que, embora inabilitados para votar, me pareceram estar intelectualmente mais aptos do que os vivos para avaliar a moral pública desta vossa vetusta Nação. Portanto, prescindi de ficha técnica, e conveniente depósito na ERC, mas não deixa de ser sessão de brilhante lucidez — sem percentagens flutuantes, sem margem de erro e sem spin doctors.

Ora, quem mais poderia ser o primeiro do que D. Afonso Henriques. Ao questioná-lo sobre a actual oferta partidária, ergueu-se do túmulo com a mão no punho da espada e murmurou entre dentes, com os poucos que tinha e lhe restam: Não fundei o Reino à custa de mouros e aço para vê-lo entregue a contabilistas de sorriso plastificado e a bardos de rima fraca que mal sabem declinar a pátria. Desconfio, em todo o caso, da autenticidade da personagem, porque no seu tempo não havia plástico — nem no meu.
Ao seu lado, porém, e confirmo, estava mesmo a Rainha Santa Isabel, sempre entre rosas e espantos, sempre envolta num aroma piedoso do hissopo, sempre a distribuir votos simbólicos pelos pobres, um a um, como esmolas de urna. Lá opinou, com brandura fatigada, num quase murmúrio: Se é para transformar Abril numa quermesse, ao menos que dêem ao povo um caldo verde, algum silêncio e uns cravos sem terem sido importados da China.
Mais à frente, abeirou-se o Infante D. Henrique, que julgava er já avistado todos os horrores do mundo desde o Cabo Bojador. Pedi-lhe e fitou perplexo a actual cartografia eleitoral; pegou um astrolábio na mão e um boletim de voto na outra, e suspirou em desalento atlântico: Navegar é preciso, sim — mas este país tornou-se numa terra de nevoeiro tão espesso que nem com uma Super Bock consigo agora sair de Sagres, disse. E, depois de consultar as estrelas e os cabeçalhos do Correio da Manhã, acrescentou com pesar lusitano: Nos meus tempos, ao menos sabíamos para onde íamos: África, Índia ou para o desconhecido. Agora, nem os partidos sabem se seguem para bombordo ou para o precipício.

Pouco depois, surgiu-me D. Sebastião, ainda a sacudir areia do norte de África, franzindo o sobrolho perante as promessas eleitorais do Montenegro, do Santos, do Ventura e dos demais que pouco contam. Com olhar perdido algures entre o futuro e o abismo, exclamou, melancólico: Voltar, queria voltar — mas se isto é o país do Quinto Império, prefiro regressar ao nevoeiro.
E foi nesse nevoeiro que se começou a erguer, com compostura régia e o Tratado de Haia debaixo do braço, D. João IV, o Restaurador, com o ar de quem reconquistou aos castelhanos um país e agora o vê hipotecado ao Sacro Império Europeu. Passou os olhos pelo espectáculo partidário e chorou: Restituí-vos a soberania, e em troca oferecem-me este condomínio ideológico, onde todos falam grosso mas se encolhem ao primeiro parecer de Bruxelas? O Reino custou-me caro, senhores, e não foi para isto. A Inquisição tratou-me com menos indignidade. E voltou a fechar-se na tumba com estrondo.
Entretanto, impôs-se em passo pausado o Padre António Vieira, envolto em fumo de incenso, benzendo-se. Subiu à cornija do jazigo e dali começou a proferir o que titulou Sermão da Multiplicação das Promessas e Escassez dos Milagres:
Meus irmãos, prometem muito os varões que aspiram aos altos ofícios da terra. Prometem caminhos onde não há chão, prometem justiça onde não há balança, prometem futuro onde não há presente — e quanto mais vazio trazem na alma, mais cheio está o alforge das promessas. São como os magos do Egipto que, vendo o cajado de Moisés converter-se em serpente, procuraram imitá-lo com feitiçarias. Também estes, vendo as palavras fazerem efeito entre os incautos, multiplicam-nas, não por fé, mas por cálculo; não por verdade, mas por vantagem.

Diz o Evangelho que Cristo, vendo a multidão faminta, tomou cinco pães e dois peixes, ergueu os olhos ao Céu e multiplicou-os até que todos se saciaram. Mas os políticos do vosso tempo, vendo o povo esfomeado de justiça, de trabalho e de esperança, tomam as palavras — e só as palavras — e multiplicam-nas até que todos fiquem mais vazios. Onde Cristo fez milagre com pouco, estes fazem miséria com muito. Onde Cristo saciou com verdade, estes entretêm com aparência. São mestres do verbo, mas discípulos da omissão.
Não se vêem milagres nas repúblicas modernas, porque a fé cedeu o púlpito ao marketing, a penitência deu lugar à desculpa e os actos foram substituídos por cálculos em folhas. E assim caminha o povo de prometeres em prometeres, como outrora os hebreus no deserto, mas sem coluna de fogo, sem maná, sem Moisés — apenas guiado por um telejornal ao serão e uma sondagem ao domingo. E, como o Diabo no monte alto, mostram-lhe todos os reinos do mundo… mas nada lhe dão, senão um buraco.
E continuou…
Terminado o sermão — a que só eu e algumas espinhas de peixes assistimos —, se deu a apresentar D. João V, o Magnânimo, ladeado por anjos barrocos, trombetas e ministros genuflectidos. Solicitou uma observação dos debates e, por fim, entre um suspiro e um bocejo, exclamou, com desdém litúrgico: Ainda se queixam do que não fiz e do que fiz com o ouro e os diamantes do Brasil — e pôs-se depois a falar da Madre Paula, chamou o confessor, e depois o físico para lhe preparar uns pós de cantárida com vinho do Porto.
Com passos decididos e sem esperar cerimónias, entrou-me neste interim o Marquês de Pombal, empunhando um compasso, um decreto e uma lista de culpados. Dispensou salamaleques e, com voz de terramoto reformista, ordenou apenas: Mandem-me os ficheiros da Administração Central, os regulamentos da CNE e os estatutos partidários — dou-vos um país novo em seis meses. Mas aviso já: os comentadores e analistas políticos vão todos degredados para a Fortaleza de Pungo-Andongo.

As palavras ainda pairavam no ar quando, vindos da galeria da Cultura, começaram a surgir os vultos dos letrados. Como se directo de uma taberna de Alfama viesse, exalando ainda absinto, irrompeu-me Bocage, com as calças desapertadas, a língua solta e a rima no gatilho. Abriu passagem no cortejo póstumo e bradou com a voz rouca:
Por entre tanta lista e tanto embuste,
tanta promessa vã, tanto canalha,
voto, se voto, é n’algum que me ajuste
a reforma ao vinho e à mortalha.
Vejo agora um país que fala mas não pensa,
que trocou o verbo pela aparência —
e entre o roubo e a fé da conveniência
já só governa o ordinário que se dispensa.
E antes que alguém o pusesse fora por decoro, cuspiu no chão das urnas e resmoneou: Se um rabo se sentar, outro levanta — eis a dança desta democracia, meus senhores. Depois piscou o olho ao fodaz Ribeiro, o negro que arrombava as paredes quando mijava, e foi perder-se num beco onde ainda ecoam decassílabos com cheiro sulfuroso e sabor obsceno.

Entrou-me depois Alexandre Herculano, semblante escandalizado — não sei se pelas palavras do Poeta do Sado —, mas saiu-se com verbo firme: Ninguém que escreva “cidadania activa” ou “resiliência democrática” merece governar uma taberna, quanto mais um povo. E saiu, como quem fecha um tomo de História e recusa a nova ortografia da mediocridade.
Logo a seguir, soergueu-se Camilo Castelo Branco, com a expressão de quem, mesmo já cego em vida, continua a surpreender-se com o que agora vê. Mas isto é o quê?, perguntou, folheando os programas eleitorais como se fossem cartas de suicidas. Um país onde todos querem governar, mas ninguém quer escrever a primeira linha com sentido? Trágico, sim — mas nem para romance serve. Falta estilo, falta culpa, falta até o crime. E retirou-se.
Mal se lhe esvaía este vulto e já surgia, impecável e de bigode hirto, Eça de Queirós, saído da nova morada no Panteão de Santa Engrácia, com a pena em riste, pronto a registar asneiras, dislates e abencerragens. Passou com empáfia — não da superciliosa, mas da que se julga clarividente — os olhos pelas campanhas, nada alegres, desoladas sob verniz citadino, vendo a província mascarada de metrópole. E abanou a caveira: O país, meus senhores, continua uma caricatura de si mesmo — com a diferença de que agora se desenha a si próprio nas redes sociais. O Dâmaso Salcede multiplicou-se, o Conselheiro Acácio já tem canal no YouTube, e o Jacinto de Tormes é coordenador de uma empresa de sondagens e estudos de mercado. A decadência já se transmite pelos ares. E foi-se até ao Egipto, dizendo querer saber se o Trump também já se apoderara do canal do Suez.

De entre os bastidores da realeza, já quase republicana, assomou-se-me D. Carlos I, naturalista por vocação e mártir por azar. Contemplou a fauna política com binóculo de precisão científica e saiu-lhe uma tristeza resignada: Passei anos a catalogar espécies raras, mas nunca me ocorreu que a mais daninha pudesse ser o político do século XXI. E levei eu dois tiros — e por muito menos.
Do lado dos mais exaltados, irrompeu Sidónio Pais, farda reluzente e verbo messiânico. Olhou a sala, cerrou os dentes e declarou com nostalgia autoritária: Se vivesse agora, dissolveria o Parlamento à moda antiga: com decreto presidencial e charuto. Depois ergueu o braço em saudação firme, ao estilo de um Elon Musk, como quem já escuta a marcha da revolução entre aplausos regimentais e folhas de despacho.
Salazar, por seu turno, não irrompeu. Apareceu. Silencioso, preciso, pálido como a sua própria política. Sentou-se sem pedir licença e, com voz gasta mas firme, murmurou: Chamam liberdade ao ruído e progresso à dispersão. No meu tempo, admitio que se controlava demais; agora não se controla nada. Tenho pena que me tenham compreendido mal quando disse: “Para Angola e em força” — era para sairmos deste buraco. E ficou por aqui ainda uns tempos, a olhar fixamente para um gráfico do SNS, como quem decifra um país pela frequência cardíaca da propaganda.

A seu lado, esteve o inevitável Óscar Carmona, sem dizer palavra. Sentou-se, acenou vagamente e, quando lhe perguntei o que pensava, respondeu com a sua única frase conhecida: O que disser o Professor. E voltou ao mutismo da eternidade com a dignidade burocrática de quem viveu calado e morreu sem se dar por isso.
Do lado da democracia, apareceu Sá Carneiro, irrompendo como um falcão, que sabe para onde vai. Deu uma vista de olhos ao panorama político, ao ruído dos corredores, às alianças que se fazem por necessidade e desfazem por conveniência, e declarou com firmeza: Fiz política com verdade. Hoje fazem-na com protocolo. E antes de sair, ainda lançou: A liberdade, meus amigos, se não for perigosa, não é liberdade.
Foi então que, com passo lento mas firme, entrou Álvaro Cunhal, trazendo consigo o peso de todas as revoluções que não chegaram ao fim. Já não há luta de classes, há luta de hashtags. Os trabalhadores foram trocados por engagement. E a revolução? Essa foi arquivada por falta de likes. E retirou-se para o silêncio — não o da resignação, mas o da teimosa.

Olhe que não! Olhe que não! — ripostou Mário Soares, entrando de sorriso largo, irreverente como sempre: O problema é fazer-se agora política com respeitinho. Eu fui insultado de todos os lados — e, convenhamos, foi isso que me deu credibilidade. Sem os sopapos na Marinha Grande, teria sido apenas mais um primeiro-ministro a apertar o cinto. Agora são todos honrados, honradíssimos, enquanto metem a democracia na gaveta… Ah, gavetas! Que atire a primeira pedra quem nunca fechou uma. — E saiu a rir, antes de perguntar se alguém vira o Sócrates — o grego, claro.
E eis que, por fim, inopinadamente, acudiu-me também o Zé das Iscas, ceifado na Estrada da Beira em 2018 por um camião transportando golas antifumo do projecto Aldeias Seguras. Trazia boné na cabeça, uma cerveja morna na mão e o olhar desconfiado de quem nunca votou por convicção, mas só por teimosia. E disse-me apenas: Não percebo nada disto — mas se calhar fechava-se esta chafarrica e começava-se tudo de novo. Como nas obras: vai tudo abaixo e depois logo se vê. E foi-se embora, sem pressa, como quem nada espera de um país que nunca teve. Nem terá.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.