CORREIO MERCANTIL

O Espírito Santo, esse ‘spin doctor’ da desinformação

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Brás Cubas|11/05/2025

Há na alma dos homens uma tendência antiga — talvez eterna — para aspirar aos domínios do invisível, do teúrgico, do sublime, como se assim pudessem escrutinar o futuro com a ilusão de que o tempo se molda ao toque da vontade. Não bastando aos viventes terem olhos para saber de antemão onde pisam — atitude ainda mais prudente em Lisboa, onde se adivinha sempre o risco de uma fractura provocada pela deslizante e traiçoeira calçada de calhaus patrióticos —, há quem almeja, porém, ver para além da névoa dos dias, como se a vida fosse uma ciência exacta e não uma tragicomédia oscilante entre o acaso e a morte.

Ora, esta soberba dos homens que se metem em previsões, julgando conhecer os meandros do futuro— vestida por muitos e travestida de saber —, talha-se hoje mais em estatísticas lustrosas, borda-se de modelos preditivos e enfeita-se com véus respeitáveis de estudos de cenários, como outrora se trajava de oráculos de Delfos ou de visões apocalípticas com cheiro a enxofre e incenso. Mudam-se os atavios, mas não se muda a vaidade: continua ela a desfilar, altiva, entre gráficos e percentagens, como se a incerteza fosse apenas um erro de cálculo e não o fundamento da existência.

E quando a vaidade se insinua nos corredores da Ciência Social, transmuta-se então, não em profecia, mas em presunção. É nesse espírito que se inscreve a aventura tragicómica do MediaLab do ISCTE — essa moderna pitonisa institucional — que, em nome da racionalidade, pretendeu revelar aos mortais o nome do novo Papa. Usando, presume-se, não mirra, incenso ou ouro, mas análise inferencial, cruzamentos de variáveis e alinhamentos estratégicos de cardeais.

Assim, com a certeza própria de uma encíclica revelada por algoritmo, veio o MediaLab anunciar, no início desta semana, que, aplicando “critérios qualitativos e dados simulados do conclave para identificar caminhos plausíveis para os resultados da eleição papal”, havia já um eleito infalível: o cardeal de Marselha, Jean-Marc Aveline. Deu tal oráculo azo a uma vitoriosa página no Público e do Diário de Notícias.

Quando Lúcifer, por excesso de luz, caiu do Céu, fê-lo porque quis saber mais do que lhe convinha. Ora, os investigadores Gustavo Cardoso e Carlos Picassinos, que não se devem considerar anjos mas se presumem arcanjos do saber moderno, decidiram, com o seu séquito do MediaLab, usurpar o lugar do Espírito Santo e antecipar o futuro do trono de Pedro com as armas de uma matriz e da vã ciência da sociologia de dados. E vai daí, quiseram “captar a complexidade de um processo moldado por expectativas ideológicas, dinâmicas globais da Igreja e realinhamentos de facções dentro do Colégio dos Cardeais”, ainda por cima traçando três cenários.

Notícia na edição em papel do Público, com um título diferente daquele que agora surge na edição online.

Terão Cardoso & Picassinos lido São Tomás? Conhecerão, ao menos, Balaão e os seus asininos presságios? Pouco importa. Preferiram o oráculo do SPSS, ou quejando programa informático, ao murmúrio do Altíssimo. E assim anunciaram, com fé messiânica, a eleição do cardeal Aveline como novo Papa. Atenção: não era uma previsão, não senhor — era uma revelação! Um Sinai sem Moisés, um Apocalipse com parangonas no Público e no Diário de Notícias.

Atentem: entre parágrafos e reverências, disseram os investigadores do ISCTE que usaram “critérios qualitativos e dados simulados de alinhamentos” para prever a eleição. Foi a aritmética ao conclave; foi o algoritmo à Capela Sistina. E, como não podia deixar de ser, falharam. Com estrondo. Um falhanço retumbante. Com a majestade trágica de quem tropeça numa sandália apostólica. O Espírito Santo, caprichoso como sempre, escolheu outro. E o MediaLab? Ficou com os figos de Israel apodrecidos nas mãos. Ou, como terá dito Cícero — e se não disse, deveria ter dito —, “quando a razão adormece, os dados sonham”.

Talvez — conceda-se essa hipótese teológica —, o falhanço não tenha sido do MediaLab, mas uma ignomínia subtil de um travesso Espírito Santo, ou melhor, do Spiritus Satani Vestitus in Gloriam, que, num golpe de malícia celestial, resolveu manipular os cardeais com artes diabólicas só para desmentir, diante do mundo, o infalível método preditivo do ISCTE.

Em alternativa, porventura, o Altíssimo, aborrecido com o excesso de confiança estatística, tenha decidido — como fez outrora com a Torre de Babel — confundir as línguas, os dados e as intenções. E assim, rindo-Se do cimo dos céus, terá sussurrado ao ouvido de um obscuro cardeal de Setúbal, ou de Bamako, ou de Cracóvia, um nome imprevisto, só para que os gráficos do MediaLab se transformassem em parábolas do ridículo. Porque, como se sabe desde o Génesis, Deus castiga os soberbos — e ao que parece, também os spin doctors armados em haríolos enquanto acusam Sodoma e Gomorra de desinformação.

Derrisai-vos, estimadas leitoras e queridos leitores, pois há graça nisto tudo. Os apóstolos da “ética comunicacional” e os combatentes da “desinformação” — como se apresenta o MediaLab —, aqueles que se erguem em púlpitos laicos para excomungar jornalistas heréticos e analistas profanos, são os mesmos que pecaram por hybris e tentaram tomar o lugar de Deus na arquitectura do destino. Fizeram-se agiotas do futuro, tomando emprestado o verbo do Altíssimo para um parágrafo na Visão Estratégica para a Comunicação Digital do Vaticano.

O Cardoso e o Picassinos — permitam-me a intimidade post fata — quiseram ser os novos Nostradamus, mas saíram-se uns Zandingas com doutoramento. Porque, minhas caríssimas e meus caros, prever o Papa é como apostar na chuva em Jericó: pode-se acertar, mas ninguém se molha. A audácia não foi tanto científica quanto metafísica: substituiu-se a Graça por um framework, o Espírito Santo por uma heteroscedasticidade, a Oração Divina por uma inferência bayesiana. Ao fim e ao cabo, confundiram Pentecostes com o Método Delphi.

O maior problema, porém, nem é o erro. O erro é humano, e até divino — vide Adão e todos os seguintes. O problema é a soberba com que se ostenta uma previsão de almanaque de feira como certeza, e o jornalismo como púlpito de revelação. O Público e o Diário de Notícias, quais escribas de Alexandria, aproveitando um artigo da Lusa, ordenaram a impressão do tratado de futurologia oracular do MediaLab com estrépito tipográfico e zelo evangélico, como se a estatística fosse agora exegese e o ISCTE um conclave com nexus umbilicalis ao Espírito Santo. Enfim, ainda aguardei, quando se anunciou Leão XIV, que os pasquins lançassem um fumata nigra poenitentiae sobre a patacoada do ISCTE, em sinal de escarmento — mas não: todos saíram de sendeiro. Excepto, claro, o leónico Robert Francis Prevost, cardeal que não era ouvido nem achado no algoritmo Cardoso & Picassinos.

Eis a ousadia dos vaticinadores de laboratório: armados de gráficos e vestes estatísticas, crêem ver o divino nas margens de erro e o Espírito Santo nas simulações de Monte Carlo. Nem mesmo Platão ousou prever os oráculos — contentou-se em interpretá-los com reverência filosófica —, nem Aristóteles se atreveu a domesticar as Moiras, essas fiandeiras do destino que nem o próprio Zeus ousava contradizer. A sorte é caprichosa. E o Papa — queiram ou não os apóstolos da inferência — é escolhido por homens que rezam, não por máquinas que calculam.

O ridículo, dizia Victor Hugo, é o túmulo do orgulho. E o vosso epitáfio, senhores do MediaLab, já se escreve em itálico digital, numa nota de rodapé esquecida entre duas colunas do Público.

Se desejais adivinhar o futuro, começai pelo vosso: ele chama-se esquecimento. Amanhã virá outro artigo, depois outra previsão, mais adiante outro erro — e a vossa falha será apenas mais uma nota de rodapé na cronologia das petulâncias académicas, como quem acrescenta um grão de areia à duna do disparate.

Ah, e já agora, não vos esqueçais: mesmo vós, profetas do algoritmo, haveis de morrer — com ou sem acerto. Essa é, aliás, a única previsão que vós conseguireis acertar.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.

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