EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

O regresso cego ao ‘business as usual’ e o preço da negligência energética

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Pedro Almeida Vieira|11/05/2025

A cultura do business as usual é a mais insidiosa forma de irresponsabilidade institucional. Mais ainda no rescaldo de um apagão eléctrico que mergulhou Portugal na escuridão, depois de o MIBEL ter andado a ser ‘vendido’ como modelo de negócio com garantias de “segurança no abastecimento de electricidade”, ainda mais depois de Portugal ter encerrado a central a carvão do Pego, que embora causasse problemas ambientais, concedia inércia à rede electrica nacional, auxiliando o amortecimento de variações súbitas de frequência.

Nas últimas duas semanas, a REN – a empresa monopolista de segurança e continuidade do serviço de eletricidade e pela gestão do sistema elétrico nacional – tem-se desdobrado em declarações à imprensa acrítica – sobre o apagão espanhol que colapsou Portugal como um baralho de cartas. Ouvem agora declarações de prudência e de monitorização “em permanência”, mas sem que se vislumbre uma explicação sobre as actuais fragilidades portuguesas e sem se mexer uma palha naquilo que verdadeiramente conta: a estrutura técnica do sistema. Enfim, fazem-se figas e toca a negociar de novo – em Portugal, o business as usual quer dizer irresponsabilidade.

closeup photo of lighted bulb

É certo que as investigações internacionais ainda decorrem e já há quem prognostique que as causas do ‘incidente’ do passado dia 28 de Abril demore meses – este prazo é muito conveniente para que a culpa se esqueça ou morra solteira. Mas não nos haja iluões: a morosidade processual é muitas vezes um biombo conveniente para adiar decisões e manter tudo como está – e confiar na sorte. E achar aceitável continuar a operar uma rede eléctrica com os mesmos erros que nos levaram, literalmente, ao colapso.

Os sinais são, infelizmente, de um país a regressar tranquilamente à rotina. Portugal já retomou as importações de electricidade de Espanha, embora agora com supostas restrições nas horas de maior produção fotovoltaica. A medida, apresentada como prudente, nada resolve.

Aliás, ao reduzir e condicionar a importação de electricidade fotovoltaica em função do período horário, a REN acaba por revelar, de forma implícita mas inequívoca, onde esteve a génese do apagão de 28 de Abril: na conjugação entre forte produção solar intermitente, demasiada importação de Espanha, baixa inércia do sistema nacional e ausência de mecanismos de resposta rápida. A própria REN, ao limitar agora as importações diurnas, indicia o risco que não ousa nomear frontalmente — e ao fazê-lo, reconhece tacitamente que o sistema eléctrico ibérico, e o português, não está preparado para absorver grandes fluxos renováveis sem ferramentas técnicas modernas.

Limitar a importação solar, portanto, não é uma precaução neutra — é uma confissão técnica. E mais: é a manutenção deliberada de um sistema que falhou, à espera que falhe outra vez.

Uma das grandes vantagens do apagão foi, em certa medida, permitir que muitos especialistas independentes pudessem expor as fragilidades do sistema eléctricio português, porque aparentemente temos uma Entidade Reguladora do Sector Energético que anda a vir navios.

De entre as propostas que, não sendo eu especialista em detalhe nesta matéria – direi que ‘tenho umas luzes’ – se afiguram muito realistas e exequíveis, destaco as seguintes causas para estarmos continuamente sob risco de sucessivos apagões.

Primeiro, a ausência de Fast Frequency Reserve (FFR), ou seja, de capacidade de injectar ou retirar potência da rede em milissegundos após uma perturbação. Esta reserva rápida, que actua como um “airbag” eléctrico, é hoje considerada essencial em redes com elevada penetração de renováveis. Portugal tem neste momento zero megawatts contratados, enquanto, por exemplo, a Irlanda opera com 330 MW e o Reino Unido gasta mais de 200 milhões de libras anuais para garantir este tipo de resposta.

Foto: D.R./ REN

Segundo, a persistência de relés de protecção mal calibrados, com valores de RoCoF (Rate of Change of Frequency) excessivamente conservadores. Com o actual limiar, variações superiores a 1 Hz/s disparam desligamentos automáticos de centrais e linhas devido à variação excessiva da frequência — uma resposta defensiva que, em vez de estabilizar, pode precipitar colapsos em cascata como o que ocorreu a 28 de Abril. A solução, consta, é simples e está estudada: reprogramar os relés para aceitar ±1 Hz/s, o que evitaria desligamentos prematuros. Mas nada foi feito.

Terceiro, a actual baixa inércia do sistema, que se agravou com a substituição de centrais térmicas por fontes renováveis intermitentes. Esta fragilidade, não sendo recente, poderia ser mitigada com a chamada inércia sintética — conversores especiais ‘grid-forming’, baterias e até veículos eléctricos com tecnologia V2G. A REN sabe disto. O Governo também. E, no entanto, nenhuma meta foi definida, nenhum plano foi anunciado.

Quarto, a ausência de digitalização e controlo dinâmico. A integração em tempo real de produção distribuída, pequenos produtores, veículos eléctricos e baterias requer uma infraestrutura de gestão moderna, com sistemas de gestão de energia (EMS) actualizados. Continuamos com uma infraestrutura pouco digitalizada e com baixa capacidade de resposta automatizada.

light bulb

Perante tudo isto, o mais grave é a tentativa de empurrar a responsabilidade para um vago “ainda não se sabe” ou para Espanha. Porque se sabe. Sabe-se, tecnicamente, que o sistema ibérico estava numa situação crítica às 11h33 de 28 de Abril.

Sabe-se que houve uma quebra abrupta de 2200 MW na produção do sul de Espanha, provavelmente fotovoltaica, e que a ausência de FFR provocou uma queda de frequência tão rápida que os relés foram disparados em cascata. Sabe-se que os mecanismos de defesa do sistema — supostamente para o proteger — causaram precisamente o seu colapso.

Se nada for feito, o próximo apagão é uma questão de estatística, não de surpresa. E, nessa altura, será lícito perguntar: quantas vezes precisa o país de cair para se lembrar de erguer os pés?

black solar panels on purple flower field during daytime

A REN, como operadora do sistema, tem a obrigação de preparar a rede para a realidade que já existe. E o Estado, como garante do interesse público, tem o dever de agir, regular e proteger. Aquilo que não pode suceder é continuar-se como se nada tivesse ocorrido, enquanto se esperam relatórios que apenas confirmarão o que os engenheiros e analistas já sabem de cor.

Regressar ao business as usual serve os interesses dos operadores do MIBEL, mas é um luxo que portugueses já não podem pagar, até porque pagam já uma factura de electricidade já demasiada alta.

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