DA VARANDA DA LUZ

Pinacácia: um pinheiro enxertado de acácia

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Pedro Almeida Vieira|11/05/2025

Portugal é, em muitos dias, um país soalheiro e tranquilo — pelo menos na aparência. Este sábado foi um desses dias mornos de primavera citadina, sem tempestade, sem alerta da Protecção Civil, sem o Rui Fonseca e Castro a querer fazer bifanas no Martim Moniz — mas revelou-se, afinal, um perfeito retrato da crónica inépcia lusitana.

Em dia de campeonato ao rubro, com a possibilidade de se coroar o campeão nacional, eis que o Metropolitano de Lisboa decide… fechar. Encerrar. Trancar quatro estações mais de duas horas antes do apito final de um jogo que faria pulsar a capital. Dir-me-ão que foi uma questão de segurança. Pois sim. Mas de quem? Do bom senso? Mas que dizer, então, de uma falha de electricidade que parou o dito metropolitano em quase todas as estações logo às cinco da tarde? Já foi segurança ou incompetência? Portanto, ficámos, eu e o sportinguista Carlos Enes — cuja teimosia clubística já granjeou lugar nos anais da fé cega — à porta da estação dos Anjos, ou do Intendente, já não sei. Se foi do Intendente, bem que os administradores do Metropolitano de Lisboa mereciam levar com o Pina Manique, o verdadeiro.

Enfim, a menos de uma hora do jogo do título e nós, dois homens feitos, jornalistas prevenidos, encontrávamo-nos a mendigar mobilidade. Valeu-nos o Uber, esse milagre pago a peso de ouro, malgrado a espera. Fomos levados pelo Malkit, classificação de 4,91 em 5, num Renault com uma curiosa matrícula iniciada por AD. Vinte minutos de jogo foram perdidos. Um pecado em dia de epifania futebolística.

Mas a irritação, como se sabe, é uma erva daninha que se alastra. E o Carlos Enes, fiel ao seu evangelho leonino, não tardou em começar a vociferar contra o árbitro João Pinheiro ainda no Uber. Que ele era isto, que era aquilo, que o homem só via vermelho quando era para os verdes, que só marcava penáltis quando era contra Alvalade. Já ouvira tais lamúrias antes, mas ontem, confesso, o tom de queixa parecia vir com lastro estatístico.

Apeteceu-me calar-lhe os protestos, mas decidi, em nome da paz do Uber e do método científico, consultar a inteligência artificial. Talvez a frieza algorítmica nos trouxesse alguma claridade. E assim foi. Lancei a pergunta com as estatísticas que cirandaram na semana passada pelas redes sociais: “Haverá razões estatísticas para desconfiar de João Pinheiro?” O ChatGPT, que já me havia esclarecido questões de Economia, Meteorologia e História, respondeu com inesperada contundência.

Estatística ‘enxertou’ durante uma semana João Pinheiro.

Disse-me que sim, a disparidade nos penáltis aplicados por João Pinheiro contra o Sporting (7 contra apenas 1 contra o Benfica) era improvável sob uma distribuição equitativa. Acrescentou que os cartões vermelhos (9 vs. 1) revelavam uma assimetria preocupante. E rematou: a percentagem de vitórias do Benfica com João Pinheiro (68%) superava em muito a sua média histórica em provas nacionais. Conclusão? O Sporting tinha razões fundadas para desconfiar. Nada disto prova dolo — sublinhava o algoritmo —, mas justifica uma auditoria independente. Uma espécie de VAR científico.

Disse isto ao Carlos Enes, que rejubilou com a validação estatística do seu calvário. E, porque o destino gosta de ironias, vaticinei logo: “Então hoje vai compensar. A pressão é tanta que vai inclinar o campo… mas para o outro lado.” Não sendo versado em Psicologia, está nos livros. E não me enganei.

É certo que perdemos os primeiros 20 minutos — entre os quais uma alegada falta do Otamendi sobre o Pote, aos 17 minutos, que Carlos Enes jurou depois ser penálti claro. Mas aquilo que vimos — quer dizer, eu vi; eles não — a seguir foi um festival. Um Pinheiro tão zeloso que parecia ter sido regado, adubado e podado pelos deuses de Alvalade durante a semana. Uma exibição tão florida que, mesmo sem rega ao intervalo, a todos espantaria pela exuberância botânica.

Veja-se:

Minuto 25: após canto de Di María, Otamendi cai na área e queixa-se de empurrão de Debast. O Pinheiro, sereno como um carvalho, ignora o VAR e resolve premiar o banco do Benfica com um amarelo pedagógico.

Minuto 44: nova queixa do Benfica por mão na bola de Debast. Pinheiro, inflexível como uma sequoia, decide que o melhor é expulsar mais um elemento da equipa técnica encarnada. Didáctica com pulso.

Minuto 60: Hjulmand deixa Aktürkoglu no relvado. O árbitro, talvez confuso pela brisa primaveril, interrompe o jogo e penaliza… Florentino, por uma falta anterior. Nada como viver em tempo elástico.

Minuto 83: falta de Hjulmand sobre Kokçu. Os encarnados pedem o segundo amarelo. Pinheiro abana a cabeça como um salgueiro zen e prossegue, tranquilo, rumo à eternidade.

Mas o mais notável nem esteve nestes lances, esteve nos sopros. Nos pequenos toques. Nas brisas que abanavam os gémeos dos jogadores leoninos. João Pinheiro via tudo. Sentia tudo. Apitava cada lamento dos sportinguistas como se escutasse a alma dos médios. E enquanto o guardião leonino Rui Silva se deitava, espreguiçava e perdia tempo com mais arte do que o cronómetro do Coliseu de Roma, Pinheiro deixava correr. A relva da Luz, então, parecia um relvado de piquenique para os lagartos que estiveram mais tempo deitados de barriga para cima do que com os dois pés no chão. E no fim, sete escassos minutos de desconto, como quem oferece um rebuçado a uma criança que perdeu o almoço.

Não sou dado a falar de arbitragens. A maioria das vezes, os erros compensam-se ou desculpam-se com o factor humano. Mas neste jogo, neste particular sábado, viu-se algo raro. Um milagre agronómico. Sempre me disseram, nas aulas de Biologia do secundário, que as angiospérmicas não podiam ser enxertadas de modo a mudar de fisiologia. Mas ontem, caro leitor, assistimos a uma revolução científica. Um Pinheiro, árvore robusta, vertical e previsivelmente imune a enxertos, transformou-se. Enxertaram-lhe tantas durante a semana passada que João Pinheiro ganhou raízes de acácia. Sim, aquela árvore de copa larga, onde os leões descansam na savana, à sombra do vento e da complacência. No estádio da Luz, os leões tiveram um abrigo botânico único: João Pinacácia.

De resto, ganhe quem ganhar o campeonato — e digo-o com o respeito clubístico que me é próprio —, o país precisa de mais do que árbitros compensadores. Precisa de transportes que transportem. De horários que se cumpram. De decisões que não nasçam da burocracia, mas do bom senso. Porque um país onde os jogos decisivos não se jogam de forma decente, os metropolitanos não andam ao sábado e os pinheiros ganham folhas de acácia… é um país que, mesmo ao sol, continua às escuras. Não nos admiremos pelos apagões eléctricos, mas sim por acharmos normal a anormalidade.

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