ARRANHADELAS

Uma gota de água num oceano de palermice

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Serafim|13/05/2025

Comecemos com um princípio inegociável: a água serve para beber, não para banhar. Não digo isto por razões ambientais nem por fobia: nenhum gato digno do seu bigode molha voluntariamente, com água tépida corrente, o dorso em nome da higiene — o banho, se bem praticado, faz-se com método, língua e paciência. A simples ideia de ser mergulhado em água, como um lombo de bacalhau, provoca-me espasmos, desgosto e um olhar que recorda a revolta de Espártaco.

Ora, foi quase em estado de sono filosófico e pelagem asseada, como se deitado no tampo de uma cómoda barroca, à sombra de uma edição do Tratado da Água de Vida, de Paracelso, que me chegou aos bigodes uma ventania digital vinda do Observador. Um título saltou-me à retina: “Um e-mail consome meio litro de água. Não estamos conscientes do que estamos a fazer“. E eu, que julgava que a água se consumia na tigela, na panela e no chuveiro, descubro agora que, afinal, também se bebe em anexos PDF e newsletters matinais.

Fiz então o que qualquer gato culto faria: espreguicei-me com lentidão, pus-me de cócoras diante do ecrã, e li: trata-se do livro da espanhola Virginia Mendoza, Seca, mas a abordagem noticiosa, pegando neste título para destaque, acabava por ser o próprio tsunami. Ali estavam: uns quantos parágrafos molhados de comoção, um pingar de citações dramáticas, e no final — oh ironia líquida — uma torrente de bytes promovida por e-mail, notificações, redes sociais e uma imagem com sombras calculadas.

Fiz as contas e comparei um e-mail de meio litro com os cinco mil litros por 10.000 newsletters do Observador, com os quatro mil litros de 20.000 notificações push, com os vinte litros de 50.000 leitores únicos a clicar e ler a notícia. Tudo somado, a água evaporada por uma única peça online deu trinta mil litros, o equivalente a seiscentos duches rápidos ou ao consumo diário de água potável de duzentas pessoas.

Dei uma lambidela à pata dianteira e pensei: “Não se apaga a sede da inteligência com baldes de hipocrisia.” Porque vejamos: se cada leitor acede à notícia e a partilha no WhatsApp com emojis molhados e exclamações, consome-se o suficiente para inundar o campo de golfe do Clube dos Bem-Intencionados. Mas que importa isso, se o gesto é nobre? A nova moral das ‘redacções verdes’ é assim: salvar o planeta com indignações em formato responsivo, e compensar o carbono com scrolls verticais.

A hipocrisia hídrica não se esgota, porém, num e-mail gotoso.

Imaginem o seguinte: num mundo onde outrora se enviavam contratos por estafeta, dossiês por um valente carteiro em motoreta, memorandos por fax com ruído de modem asmático, e volumes jurídicos por mala diplomática, temos hoje um prodígio silencioso chamado ficheiro PDF.  Mas ninguém fala da água poupada por não se imprimir relatórios de duzentas páginas com gráficos em PowerPoint, nem da energia poupada por não se acenderem salas inteiras para reuniões presenciais que agora se fazem em Zoom, com fundo de biblioteca falsa e gato a passar.

E eis que, perante esta revolução silenciosa, aparece um grupo de almas lavadas a contabilizar mililitros por megabyte, como se o verdadeiro desperdício estivesse no envio de um currículo por correio electrónico, e não nos quilómetros de auto-estrada evitados, nos jactos não levantados, nas impressoras que não gemem, e nas remas de papel esborratado de tinta que não esmagam secretárias.

Oh sim, meus senhores, vamos todos fingir que vivíamos melhor quando três cópias autenticadas de um contrato tinham de atravessar Lisboa num Renault 4 com o ar-condicionado a tossir, ou quando actas de reuniões vinham em envelope pardo a pesar mais que o juízo do remetente. Agora, porque um servidor na Islândia consome energia para guardar a epístola digital de um gestor sobre sinergias de equipa, eis que toca a soar o alarme ecológico, com palminhas de indignação digital com apelos ao engagement.

É claro, dirão os monges da consciência sustentável, que devemos reduzir o supérfluo. E eu, Serafim, não discordo. Um gato jamais envia e-mails em massa, nem subscreve newsletters sobre fiambre. Mas confundir o essencial com o acessório, e ignorar que um simples e-mail pode ter poupado papel, tinta, gasolina, querosene e paciência — é de uma asinidade que nem um burro de carga suportaria com brio.

Sim, um e-mail consome meio litro de água — e daí? Se essa meia garrafa evita uma garrafa inteira de gasolina, três resmas de papel e dois neurónios fritos numa deslocação inútil, então brinde-se à modernidade. A maior secura que os humanos enfrentam não é no aquífero nem na nuvem — é na inteligência crítica dos que confundem gota com dilúvio, símbolo com substância, e fazem da espuma digital um tsunami de palermice.


Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.

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