Laura Alcoba

Na vigésima sétima sessão da BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira conversa com a escritora argentina Laura Alcoba.
Nascida em 1968, na Argentina, e exilada em França desde os dez anos, Laura Alcoba construiu uma obra literária profundamente marcada pelas sombras da história e pelos silêncios da infância. Filha de militantes perseguidos pela ditadura militar, viveu na clandestinidade com um nome falso e aprendeu cedo que o medo pode tornar-se idioma. Hoje, professora universitária em Paris e autora consagrada em língua francesa, Laura Alcoba regressa com frequência à Argentina — não apenas nos afectos, mas sobretudo na literatura.
Na sua passagem por Lisboa, a pretexto do lançamento do seu romance Naquele dia, a sua primeira obra traduzida em português, e publicada pela Dom Quixote, Laura Alcoba conversa com Pedro Almeida Vieira numa edição especial, gravada na Livraria Bucholz, em Lisboa, para a BIBLIOTECA DO PÁGINA UM, cuja transcrição editada também aqui se apresenta.
Naquele dia é o teu primeiro romance traduzido para Portugal e parte de um facto real, trágico e íntimo. Em que momento sentiste que essa história tão delicada, tão violenta, podia transformar-se em literatura?
Foi algo que surgiu por etapas. Há anos, fui ver um filme do Martin Scorsese, Shutter Island [Ilha do Medo, em portyguês, de 2010] e, ao sair da sala, tive uma sensação muito estranha: parecia que eu já conhecia aquela história. Havia uma cena em que uma mãe afogava três filhos — uma menina e dois rapazes — e isso mexeu muito comigo. Com o tempo, lembrei-me de algo que o meu pai me contou: ele conheceu uma família na qual se tinha passado um drama semelhante. E eu, em criança ou adolescente, tinha visto dois desses meninos. A mãe afogou os filhos na banheira.

Recordaste isso depois de veres o filme?
Laura: Sim. Lembro-me de dizer ao meu editor, anos depois: “Houve um caso terrível entre exilados argentinos, e um dia, se tiver forças, talvez escreva sobre isso.” Mas não sabia se seria capaz. Guardei isso num canto da mente. Escrevi outros livros até que, já mais recentemente, aconteceu algo muito particular, encontrei os contactos de Griselda.
A mãe?
Sim, e também a filha. Ambas pareciam estar à minha espera. Sabiam que eu escrevia. Foi uma sensação estranho. A verdade é que eu ainda tinha medo. Mas o encontro com Flavia, a filha, agora uma mulher de mais de 40 anos, foi decisivo. Ela tinha seis anos na altura dos acontecimentos, em 1984. Quando falámos, foi muito forte ela e me contou aquilo que se recordava naquele dia e disse-me: “Preciso que fales com a minha mãe. Preciso que escrevas este livro.” A partir desse momento, foi como se o livro tivesse começado a escrever-se por si só.
Foi só após essa conversa com a filha que decidiste adoptar essa perspectiva narrativa mais contida, quase como em A Sangue-Frio, do Truman Capote? Ou já tinhas essa ideia antes?
Não sei… Talvez sim, no sentido em que fiz uma investigação, como Capote. Mas o que tentei fazer foi contar essa história e, através dela, contar muitas outras. O que me interessa é o que há de universal no particular. Aqui há um momento de loucura, um infanticídio — infelizmente, algo que se repete noutros casos — e, ao mesmo tempo, há uma criança que sobrevive. É um livro sobre um crime terrível e um acto horroroso e, ao mesmo tempo, sobre a sobrevivência. Nesse dia, a criança salva-se e emerge uma luz para outra coisa. É um livro sobre a força da infância, sobre a resiliência. Não o teria escrito se fosse apenas sobre o crime.
Claro, claro…
Persigo esse tema da infância, sobre a sua força indestrutível, é algo que faço há anos. Aquilo que é impressionante nesta história é que Flavia se salvou e tornou-se uma pessoa extraordinária. Isso é um mistério, um milagre, é incrível. Sem essa luz no final, não teria conseguido escrever. Interessava-me essa sobrevivência.
Depois de escreveres este livro, que trata de uma violência tão extrema — violência doméstica, de mãe contra filhos —, conseguiste compreender o acto? Escreveste-o para tentar entender?
Acho que não. Nunca se compreende verdadeiramente. Podemos tentar aproximar-nos do que é incompreensível. Este acto continuará a sê-lo — até para a própria Griselda. Não se trata de explicar nem de justificar, mas de entrar numa zona obscura do humano e saber que, mesmo depois disso, há um “depois” possível. Sem esse “depois”, eu não teria escrito.
E a história da salvação de Flavia é incrível. A mãe vai buscá-la à escola após matar os dois irmãos…
Sim. A mãe chega à escola num estado completamente alterado. E a professora de Flavia, Colette, percebe que há algo errado. Recusa-se a entregar a menina. E aí põe-se em marcha outra coisa. Esse gesto salvou a vida de Flavia. Foi essa recusa que impediu que a tragédia se consumasse por completo.

Chegaste a conhecer Colette?
Sim. Encontrei-me com ela, com a sua companheira, com a advogada. Colette, que é a pessoa mais extraordinária que conheci na vida, teve uma intuição extraordinária. Não entregou a menina à própria mãe. Graças a isso, Griselda acabou por ir para um hospital psiquiátrico e teve um julgamento. E foi decidido que voltaria a viver com a filha, depois de sair da prisão. Na altura, eu própria teria dito que era uma loucura esse veredicto. Mas hoje, ao vê-las juntas tantos anos depois, percebo que essa aposta — difícil, quase impossível — funcionou.
E como decidiste a forma de contar a história? Sem cair no jornalismo, sem fazer juízos morais?
Nunca quis fazer um livro jornalístico. Havia momentos em que me parecia estar dentro de um mito. No livro, menciono o mito de Medeia — que também foi contado a Flavia. Mas o que quis foi encontrar algo profundamente humano, algo universal. Esta história, embora extrema, fala-nos de questões fundamentais: loucura, morte, mas também amor, coragem, sobrevivência.
E conseguiste escrever tudo isso com muito pudor, sem entrar nos pormenores macabros.
Sim. Não queria dar detalhes chocantes. O acto está presente, claro — é um abismo —, mas tentei manter a distância certa. A loucura e o mal existem. Não há explicações jurídicas ou psiquiátricas que resolvam tudo. A única coisa que podemos tentar é procurar alguma luz na escuridão.
E esta história passa-se em Paris, entre exilados argentinos. Achas que o facto de serem exilados, sem raízes, contribuiu para a tragédia?
Não quero reduzir tudo a isso, mas é claro que Griselda foi alguém profundamente ferido pela História. Uma mulher que sofreu abusos na infância, que viveu a repressão da ditadura. A História com H grande quebrou-a. Era como um vaso que se parte de repente.
Escreves em francês. Mas falas castelhano com fluência. Como vives essa dualidade?
Escrevo sempre em francês. O castelhano está em mim como um lençol freático. Toda a minha memória argentina está lá, debaixo da terra, e emerge nos livros. Não conseguiria escrever em castelhano, mas os meus livros, quando são traduzidos para essa língua, é como se voltassem à sua origem.
E sentes que serias outra pessoa se fosses francesa nascida em França?
Claro. Vivi na clandestinidade na Argentina, com um nome falso, escondida. Isso marcou-me para sempre. A autocensura, o medo de falar… tudo isso explorei em francês. Especialmente no livro agora traduzido em Portugal, onde os silêncios são fundamentais.

Tens visitado a Argentina?
Sim, regularmente. Sou recebida com muito carinho. Tenho muitos leitores.
E como vês agora a Argentina com Milei?
Mas a situação económica é muito difícil. E agora, com Milei, tudo se agravou. As suas medidas são brutais na assistência social. Ele quer destruir o Estado, e o Estado é o que nos permite viver juntos. As pessoas não vivem na Macroeconomia. A democracia está em perigo.
Qual é o papel do escritor, neste contexto?
Laura: Acho que é importante tomar a palavra, assumir uma posição. Mesmo vivendo em França, acompanho tudo com preocupação. É fácil destruir a uma velocidade estontante, difícil é reconstruir. Mas confio na resiliência da Argentina e. Como Flavia.