CORREIO MERCANTIL
Os bobos e os reis, ou sátira ao novíssimo humor político

Com a sobrancelha arqueada de quem já viu ministros a dançar o fandango em romarias eleitorais, causa-me espécie — espécie com nódoa — assistir à nova predilecção dos políticos lusos: em vez de se submeterem ao tormento antigo dos jornalistas impertinentes, armados de arquivos e perguntas duras como dentaduras de avó britânica em plena crise do chá, preferem agora reclinar-se em poltronas de veludo mediático, entregues ao chiste benigno dos modernos bufões — os nobilíssimos Ricardo Araújo Pereira, Guilherme Geirinhas e outros encantadores da verve televisiva e digital —, esses verdadeiros jograis de auditório, menestréis de horário nobre, prestidigitadores de palmadas cúmplices e riso programado.
Esta é uma inversão deveras deliciosa da hierarquia dos tempos de antanho: outrora, o bobo fazia rir o rei; hoje, o rei — ou o aspirante ao trono — mendiga a bênção do bobo para que o povo o tolere, que o respeito já se foi. Estes encontros são, com frequência, pastéis de nata de vaidade recheados de auto-ironia controlada, servidos num prato de empatia calculada. O político, ao rir-se de si mesmo, esconde os espinhos do seu programa. E o humorista, ao fingir irreverência, não morde — apenas ladra com graça, como um caniche de salão treinado para agradar tanto a governanta como o mordomo.

Foi-me dado assistir, com as minhas vazias órbitras, à mais recente paixão do lusitano homo politicus moderno: a comédia. Outrora besta solene que falava em hemiciclos e esbracejava em comícios, tomou gosto ao riso popular. Em vez de A República de Platão, prefere agora o proscénio do RAP; em vez das Cartas de Locke, abre-se em confidências ao Bom Partido do Geirinhas, embalado pela fundação do Pingo Doce. Troca-se Maquiavel por punchline, Rousseau por running gag. Tudo combinado. Tudo batido. O poder, que sempre teve queda para a vaidade, descobriu no humorismo não o seu espelho, mas o seu cosmético, porque agora reflecte o deformado com charme.
Não é que isto me cause espanto: também Nero se achava artista, tocava lira entre incêndios e mandava decapitar senadores que desafinavam nos aplausos. E os imperadores romanos, em geral, conscientes de que o povo queria panem et circenses, alternavam o chicote com o dichote. Mas ao menos os gladiadores tinham espadas e os bufões, juízo; hoje, os políticos procuram o riso como os fariseus procuravam moedas no templo: com fingida humildade e segundas intenções.
Vede Paulo Raimundo, que leva a sua foice ao estúdio como quem leva flores à sogra, esperando que o anfitrião lhe pergunte sobre a infância entre barricas e manuais do Vladimir — o Lenine, não o Putin.

Ou Rui Tavares, o novo Demócrito mediterrânico, que, entre risinhos e parábolas, nos oferece filosofia à pressão, temperada com afectação melíflua e citações de quarto de hotel.
Ou Luís Montenegro, que surge como o aluno aplicado de colégio interno, com ar de quem estudou as piadas frequentes do entrevistador mais do que o Orçamento do Estado — e acha que rir-se antes da pergunta é estratégia de proximidade.
Ou Pedro Nuno Santos, que mostra ensaiar uma humildade de operário em férias, exalando um perfume de bonomia calculada, enquanto prepara o próximo trilho entre Montemor-o-Novo e São Bento.
Ou Rui Rocha, qual figura evanescente do liberalismo de biblioteca, com riso de vitrina farmacêutica, esperando que a leveza das perguntas suplante a fragilidade das convicções.
Ou Mariana Mortágua, com ares de tribuna revolucionária e lábios semicerrados de desdém classista, que aceita a comédia como se fosse um panfleto trotskista adaptado para adolescentes com TikTok.
Ou Inês Sousa Real, a rainha das causas verdes e mascote da ecologia moralista, que surge pronta a rir de si própria, desde que o guião tenha sido previamente aprovado pelo departamento de diversidade.

E mesmo André Ventura, esse São Jerónimo de Algueirão-Mem Martins, que vocifera contra esta majestática corte humorística e clama blasfémia, acredito que, em privado, roga aos deuses do prime-time que o RAP o chame ao seu tabernáculo, para depois seguir para a ara do Geirinhas, nem que seja para, mesmo sendo escarnecido, garantir que o Chega vai… chegar lá — embora sem se saber onde.
Talvez — e só talvez — estejamos a ser injustos com os políticos. No fundo, limitam-se a seguir o riso onde ele dá mais votos. A culpa, ou grande parte dela, recai também sobre os humoristas, que trocam a busca da verdade pelo aplauso fácil, e a maiêutica pelo patrocínio da Fundação Francisco Manuel dos Santos ou da Worten. São arautos da graça com ideologia, padres do sarcasmo domesticado, sempre prontos a morder… desde que seja um inimigo autorizado. Aprenderam, como Midas às avessas, a transformar em ouro tudo o que tocam — mas um ouro sem peso, sem curso legal, um ouro de papelão.
Que é feito do sarcasmo afiado, da crítica que fere? O humorista de hoje, em vez de morder, acaricia; em vez de expor a nudez do rei, ajuda-o a escolher o fraque; em vez de lançar a gargalhada com uma pedrada, oferece a piada emoldurada, com fita, legenda e hashtag. Transformaram-se em estilistas do poder, em cabeleireiros da irreverência, passando pó-de-arroz na cara da impostura. Já não fazem rir da tragédia: fazem rir com o tirano — e não do tirano —, esperando um eco em retweets e cachets. A sátira, essa Medusa com olhos de lucidez, foi decapitada e pendurada na parede de um camarim. Dizem-se iconoclastas, mas ajoelham-se perante o convite do poder como os magos do Oriente diante da manjedoura. No fundo, aspiram àquilo que fingem desprezar: o aplauso do palácio.

E o povo — esse eterno espectador de tragédias mal encenadas — ri-se. Rir sempre foi um consolo dos desvalidos, já o sabia Aristóteles. Mas rir de quem vos há-de governar, enquanto este ensaia a piada sobre a sogra e a Lili Caneças, é baixar a política ao rés-do-chão da frivolidade. Tornou-se evidente que, para muitos eleitores, um político que saiba rir de si próprio vale mais do que um que saiba fazer um orçamento. Aliás, não admira que as urnas se encham de votos com a mesma leveza com que se enchem balões numa festa de aniversário.
Recordo-me aqui da fábula do profeta Elias, que subiu ao monte Carmelo para desafiar os sacerdotes de Baal. Estes clamavam, gritavam, cortavam-se, pediam que o seu deus lhes respondesse. E Elias, com ironia bíblica, perguntou-lhes: “Porventura dorme o vosso deus? Terá ido ao retiro espiritual?” Pois bem: os vossos políticos, ao irem ao sofá do comediante, carpem pelo favor do novo deus: o like, o meme, a viralidade. E os humoristas, sacerdotes de Baal pós-modernos, animam a cerimónia.
Tudo isto não seria trágico se fosse apenas cómico. Mas há algo de profundamente reaccionário nesta inversão de papéis. Quando o humorista abdica da sua função crítica para se tornar palanque do poder, legitima-o. E quando o político se disfarça de palhaço, oculta as suas responsabilidades. É o triunfo da leviandade como estratégia de governação. Não é já o governo dos sábios, mas dos engraçados. A política converte-se numa espécie de stand-up comedy com consequências orçamentais, no emprego, na inflação e até no tempo de diversão.

Vejo Montesquieu a soluçar em silêncio. Weber a revirar-se no túmulo. Tocqueville, se ressuscitasse, confundiria Lisboa com Las Vegas. Rousseau, envergonhado, rasgaria O Contrato Social e inscrever-se-ia num curso de escrita cómica para influencers. E Hannah Arendt, ao ver o triunfo do entretenimento sobre a acção, escreveria A Banalidade do Riso. Porque o espectáculo é total, mas o conteúdo é nulo.
Ad extremum, vos declaro: não me oponho ao riso. Riam-se do ridículo, do poder, do sublime que se quer divino. Riam-se dos corruptos, dos hipócritas, dos moralistas de plástico, dos políticos. Mas não se riam com eles como se fossem vossos comparsas de adolescência. Há um abismo entre rir deles e rir com eles. E esse abismo, uma vez atravessado, transforma a sátira em selfie, o bufão em cúmplice, e o eleitor num espectador distraído que bate palmas enquanto lhe assaltam o bolso.
Sabendo isto, e sabendo que a comédia é o novo Parlamento, resta saber, a partir de domingo, quem será o novo bobo… e quantos almoços vos custará o próximo orçamento.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.