CORREIO MERCANTIL
Dia de Reflexão, o único feriado democrático que nada celebra e tudo proíbe

Digníssimas leitoras e ilustríssimos leitores — que hoje, em véspera de eleições, vos recolheis às celas interiores do pensamento como eremitas da cidadania, cartuxos do sufrágio e ascetas do boletim, invocando em silêncio os querubins da ponderação e os serafins do juízo último —, permiti que vos perturbe esse raro instante de suspensão democrática.
Sim, falo-vos hoje, e não ontem nem amanhã, com a solenidade rígida dos defuntos e o sarcasmo peculiar dos lúcidos, sobre a mais nobre instituição do Portugal moderno: o Dia da Reflexão — esse sabático do espírito, essa saturnina suspensão da razão, esse interregno místico entre o desespero e o voto.

O vosso Dia da Reflexão, senhoras e senhores, é o único feriado democrático que nada celebra e tudo proíbe: não há cartazes, não há comícios, não há debates, nem se concede nem se concebe um post matinal do candidato a beijar velhinhas, a elogiar os chicharros da praça ou a beber um copo de três da Cooperativa Agrícola de Santo Isidro de Pegões. Nessa véspera sagrada, o eleitor é abandonado solitário, deixado a sós com a sua consciência — o que, no caso lusitano, é o mesmo que entregar um menu de degustação nas mãos de um cadáver: há protocolo, mas não há paladar; há silêncio, mas não há transcendência.
A portuguesa legislação, com piedosa ambiguidade, não nomeia expressamente tal dia, mas sabe-se que a campanha encerra à meia-noite da antevéspera da abertura das barricas da fé democrática, ou dos sarcófagos da vã esperança, a que chamam urnas, deixando vinte e quatro negras horas em branco como uma página de Descartes antes da obscura dúvida metódica.
A razão? Presume-se, nem se sabe bem quem, que alguém julgou que o povo, liberto da intoxicação propagandística, se recolheria em estado de contemplação cívica. Na prática, porém, o eleitor luso vai ao Pingo Doce, almoça na sogra, revê a última gala do The Voice — e hoje, muitos daqueles que forem à bola ainda seguirão para o Marquês de Pombal em festejos, ou para casa em soluços —, mas quem legislou fica convencido de que haverá reflexão, e que esta opera milagres invisíveis.

É nisto que Portugal se distingue: em vez de ser uma nação pensante que age, é um país que age como se pensasse. Invoca-se a reflexão como um bem escasso, uma espécie de trufa democrática aflorando do estrume em véspera do sufrágio. “Pensai!”, ordena-se. “Sopesai”, intima-se. E o povo responde, sem responder: “Sim, mas só depois do jogo e do cozido à portuguesa.”
Vede o paradoxo, ó espíritos esclarecidos: é no único dia reservado ao pensamento que se evidencia, por contraste, a indigência mental da República. O reflexo natural do eleitorado lusitano nunca foi reflectir, mas repetir: repete slogans, repete indignações, repete sábados, repete o voto. Com a seriedade de uma urna funerária, o português depositará na urna eleitoral uma escolha que muitas vezes não passará de superstição com uma cruz num quadrado — e isto se souber traçar dois riscos em diagonal.
Enquanto isso, imagino os candidatos, privados dos seus púlpitos, entregando-se, neste dia, a liturgias privadas. Que fará Pedro Nuno? Ajoelha-se aos pés de uma sondagem? E Montenegro? Preparar-se-á para o desfile das Rusgas a São Pedro? Ventura? Ah, ficará rodeado por chá de camomila e biscoitos de água e sal, num jejum mais retórico do que físico, tentando distinguir entre o refluxo gástrico e o refluxo eleitoral? E Mariana? Consultará o tarot para conhecer o futuro dos grisalhos? E Tavares? Escreverá, em tom bíblico, uma lista de profecias, pensando serem promessas? E… enfim, os outros? Nada de útil. Hoje, reina o silêncio. Nenhuma palavra, nenhuma imagem, nenhum meme. Será o jejum do credo democrático.

E o eleitor, suspenso no seu transe reflexivo, deverá, perante este momentum, cair em lucidez — coisa que, entre vós, costuma chegar tarde e, normalmente, depois de consumado o disparate.
Dia de Reflexão! Ora, não penseis, certamente, que os deuses da Antiguidade se sujeitariam a semelhante cerimónia. Júpiter, que arrasava montanhas e arrebatava ninfas, não admitiria um segundo de silêncio entre o raio e o trovão. Nem Atena, deusa da sabedoria, ousaria suspender a palavra para permitir que os atenienses meditassem antes de escolher o mais eloquente entre os demagogos. Mesmo o Oráculo de Delfos exigia um certo tumulto. Só em Portugal é que se pretende que a razão nasça do vácuo legal, da circunspecção, da análise introspectiva, da suspensão volitiva.
Na verdade, o Dia da Reflexão é menos uma pausa para pensar e mais um ritual de inocência burocrática: serve para lavar as mãos ao sistema, como Pilatos diante do povo, proclamando: “O que vier agora não é culpa da propaganda, é da vossa consciência.” Mas quem conhece a consciência portuguesa sabe que é moldada em resina de conveniências, não em bronze de virtudes.

E ainda assim, na véspera das eleições, cada candidato rezará — não por si, mas pelos erros dos outros. Não há convicções, só esperanças. Deseja-se que o adversário tenha escorregado num soundbite; que a abstenção o favoreça; que o voto útil no adversário se disperse como farinha no vento. O Dia da Reflexão é uma jornada de superstição, onde o único pensamento admissível é “esperemos que corra bem.”
Ah, Portugal! Pátria onde até o pensar precisa de tutela. Onde se legisla o silêncio para que, enfim, se escute o eco do vazio. Onde se proíbe a palavra não para valorizar a acção, mas para garantir que ninguém diz mais uma asneira — porque, até nesse campo, os políticos atingem a saturação.
Mas, chegado o domingo, tudo se precipita. O cidadão dirige-se à assembleia de voto como quem vai ao confessionário, com uma cruz na mão e a alma em suspenso. Vota. E, ao sair, já não reflecte mais. Vai comentar, vai lamentar, vai desconfiar. Vai voltar ao ruído. Vai voltar ao meme. Vai voltar à indignação. Até à próxima reflexão.

Eis, pois, o balanço: o Dia da Reflexão serve para confirmar que Portugal pensa mal, pouco, ou apenas quando é tarde. É um interregno cerimonial, como a pausa entre o segundo acto e a tragédia. Um feriado do pensamento num território onde a ideia é ilegal quase todos os outros dias.
Por isso vos digo, com caveiral clarividência: se a vossa única lucubração cabe apenas na véspera, mais vale deixardes o boletim em branco e buscardes preencher, com afinco, o espaço entre as vossas ornamentais aurículas. E vão tarde.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
As imagens foram produzidas com recurso a inteligência artificial.