A DERIVA DOS CONTINENTES

E então as mulheres não servem para nada?

Author avatar
Clara Pinto Correia|18/05/2025

É fácil fazer de um homem um infiel, mas dificilmente se poderá convertê-lo a outra fé

OS SETE PILARES DA SABEDORIA

T. E. Lawrence[1]


Agora que já temos um novo Papa[2], sou de certeza a última pessoa a despedir-se de Francisco, com o mesmo carinho e a mesma saudade com que todos os outros se despediram, fossem eles católicos ou não – e isto, só de si, já tem forçosamente de ser um fenómeno espetacular, porque não me lembro de nenhum outro Papa, certamente não no meu tempo de vida,  que tenha deixado atrás de si tanta gente chorosa de genuína tristeza, incluindo um grande número de ateus que anteriormente nunca tinham prestado assim tanta importância como isso ao Cristianismo, a menos que fosse por causa das inúmeras guerras do presente. Muito provavelmente, os outros Papas também não tiveram um impacto e uma estima tão grandes na vida de todos os cristãos que se sucederam a Lutero[3], incluindo a casa dividida dos próprios anglicanos aquando da sua fundação[4]. Nenhum outro Papa mereceu nas suas exéquias a presença dos representantes das comunidades Muçulmanas[5] e Ortodoxas[6]. Francisco amou de tal forma o mundo inteiro, e foi capaz de trazer à superfície das pessoas tudo o que tinham de melhor, que não será de estranhar que um dia destes lhe atribuam alguns milagres e o elevem e santo. É indiscutível que teve imensa coragem, operou várias mudanças, e abriu muitas portas. Mas o passo em frente aguardado há mais tempo por milhares de fiéis continuou por dar. E, se nem Francisco o deu, sejamos honestos por uma vez na vida: no seio do catolicismo, agora só uma verdadeira revolução laica pode dá-lo. Meus senhores, cabeça erguida:  QUEM ESTÁ COMIGO?


Nos últimos três anos que passei nos Estados Unidos foi-me dada a bênção de concretizar uma das duas grandes fantasias da minha vida, e não foi a de ser namorada do Mick Jagger. Foi antes a de cantar num coro de Gospel, de robe, pandeireta, e aquela sensação maravilhosa de flutuar alguns centímetros acima do chão quando actuávamos nos serviços de domingo[7]. Para concretizar este sonho juntei-me a uma igrejinha fundada em 1910 na Woodside Avenue de Amherst, onde ficava a minha Universidade, quase escondida por trás de plátanos enormes. De seu nome completo Goodwin Memorial African Methodist Episcopal Zion Church, era uma herdeira das Igrejas clandestinas onde os escravos negros iam buscar coragem para mais uma semana de desrespeito e trabalho árduo, e que agora se centrava sobretudo no perdão e na generosidade[8]. Embora o Methodist Episcopal indicasse claramente a junção de duas Igrejas protestantes, a African Church estava aberta a todos os credos que quisessem juntar-se aos seus serviços, e recebeu-me de braços abertos quando eu lá apareci a dizer que era católica mas preferia celebrar a minha fé com eles porque os católicos americanos eram muito chatos, extremamente reaccionários, e cometiam o pecado em tudo contrário aos ensinamentos de Jesus[9] de deduzirem dos seus impostos, a título de doação para efeitos de caridade, o dinheiro com que contribuíam no ofertório.

Ao contrário de me escorraçarem por eu ser católica e ainda por cima branca,[10] aqueles protestantes que, logo à segunda semana, me convidaram para me juntar ao único tenor do coro, deram-me umas boas-vindas extremamente calorosas, interessaram-se imenso pela minha infância africana[11], e ainda abafaram uns risos com a minha descrição dos católicos americanos. À saída, um deles passou-me o braço pelos ombros[12] e contou-me a história da sua adolescência no Mississipi, quando era um alcoólico inveterado, incapaz de estudar ou de se aguentar mais do que dois ou três dias num emprego. Depois de tentar toda a espécie de tratamentos, e completamente em desespero de causa, a mãe levou-o à cabana de uma  velhinha. Entraram, e aquilo estava cheio de incensórios acesos, velas acesas, e ainda dezenas de variações a toda a volta da Senhora de Fátima com os Três Pastorinhos. Disse-me que não sabe o que foi que lhe aconteceu, mas que é evidente que foi um milagre. Uma luz muito branca rasgou-o de alto a baixo, e uma voz muito doce, vinda de muito longe mas perfeitamente audível, disse-lhe ao ouvido “escolhe o caminho certo e eu caminharei sempre contigo, meu filho.” Aquilo durou uma fracção de segundo, deixou-o todo a tremer e encharcado em suor, e a verdade é que desde essa altura, teria ele catorze anos, até agora que já estava reformado, nunca mais fora capaz de beber uma gota de álcool que fosse. Nem sequer um golo de BudLight[13] durante os jogos de basquete do Natal[14].

Este homem chama-se Cyrus, e era o barítono do coro. Agora jogava golf e punha os seus automóveis clássicos a brilhar. Anteriormente, fora State Trooper. Só de olhar para ele, e de ouvir a sua voz, eu conseguia sentir claramente o meu pânico se ele alguma vez me mandasse parar numa autoestrada deserta, viesse lentamente até à minha janela com todos aqueles objectos bélicos que eles trazem pendurados à cintura, tirasse os óculos escuros, me pedisse a carta e os documentos do carro, e finalmente, passado imenso tempo, me dardejasse com aquele infalível “sabe por que a mandei parar?[15]

black book on gray wooden table

Enquanto episcopaliano, o Cyrus não podia nem acreditar em santos, quanto mais acreditar na Senhora de Fátima. Mas eu, que era católica e acreditava de certeza até porque era do país onde se dera o milagre, poderia por acaso agradecer-lhe por ele? Como o antigo polícia era o barítono do coro, eu puxei-o mais para trás e disse-lhe “esquece as palavras e harmoniza só comigo à segunda volta”. E ainda passámos ali uns bons dez minutos a harmonizar o MIRACULOSA, RAINHA DOS CÉUS. Até que, do carro que ia a passar na estrada, alguns dos outros gritaram, numa grande gargalhada, “Oh boy! ALELUIA! O Cyrus encontrou por fim a sua alma gémea!

Não é verdade!”, gritei-lhes eu de volta. “Sou eu que estou a ver se saco um green card a este pobre inocente!

Já me tinham dito que as mulheres africanas são frescas,” comentou o Cyrus com o ar que devia ter quando era Trooper.

Ao fim de pouco tempo, alguns deles tinham-se tornado dos melhores amigos que fiz na América, e de quem hoje tenho imensas saudades.

black cross under blue sky

Este fragmento mínimo das minhas memórias não teria grande coisa a ver com os Papas, nem com a ciência das religiões, se não fosse pelo facto de a Igreja Africana, sendo protestante, ter uma celebração com muitos pontos de contacto com a Missa católica. Há duas leituras, selecionadas e lidas à escolha do núcleo duro da comunidade ou por voluntários sem grau que se oferecem – eu, por exemplo, pedi para ter a honra de ler a história da Grande Mãe Deborah, que salva o povo semítico no Livro dos Juízes. Segue-se um Evangelho, selecionado e lido pelo oficiante do serviço. Segue-se a preparação para a Comunhão, onde todos partilhamos pão e vinho. Quando finalmente nos levantamos, rezamos o Pai Nosso – altura em que ninguém se benzia a não ser eu, mas também nunca ninguém me chateava. Há mais umas partes de que não me lembro bem, mais uma das nossas canções levitantes – e a seguir, provavelmente o que toda a gente quer ouvir mais além do coro, vem o sermão. É enorme, grandioso, parece sempre que dirigido pessoalmente a cada um de nós, tão impressionante que da primeira vez desatei a chorar e me alguém me passou logo uma caixa de Kleenex com o sussurro “it’s OK to cry” pelo que fiquei a saber que não era só eu quem chorava durante os sermões. Finalmente, nós cantamos a canção de despedida, o pessoal vai saindo, e connosco vai uma nova energia, uma energia limpa e renovada, para nos ajudar a encarar a semana seguinte.

A diferença esmagadora para mim foi que, quando me juntei à Igreja Africana, o oficiante de serviço era uma mulher. Feia como cornos, sem grande empatia, incapaz de brilhar nos sermões como se espera que um bom pastor brilhe (“women can’t preach,” disse-me o Cyrus com um simples encolher de ombros), mas com um comando das partes que é o pastor que  faz no altar absolutamente natural para a comunidade. Era ela quem lia o Evangelho, quem consagrava o pão e o vinho, quem o partilhava com todos nós, e quem orava mecanicamente as partes que é o oficiante que reza sozinho. Nunca ouvi ninguém dizer que isto fosse uma conquista recente das mulheres, embora estivéssemos em plenos dia dourados da Michelle Obama toda musculada e houvesse um grupinho de três fufas brancas que semelhantes a camionistas que marcava sempre presença – aliás, ao fim do meu primeiro ano de AME houve uma delas, que tinha sido freira durante muito tempo, que foi ordenada pastora, e também ninguém fez nenhum grande alarido a esse respeito.

a group of people standing in front of a statue

E depois, como ninguém gostava daquela pastora, no início do ano seguinte esbarrei noutra diferença esmagadora. O pastor que veio celebrar os serviços connosco era meio taumaturgo, meio charlatão, mas pelo menos era absolutamente arrebatador e fazia sermões inequivocamente sulistas, cheios de milagres e de vitórias dos espíritos bons contra a tentação dos maus caminhos, e a malta chorava, chorava, chorava, até que nós acabávamos de cantar e saímos dali literalmente com imensa Força connosco.

Surpresa: ao terceiro domingo, apareceu na igrejinha a mulher do pastor, ela própria ordenada pastora. Uma mulher jovem, lindíssima, de cabelo comprido todo entrançado, vestida de branco e descalça. Foi ela que assegurou vários momentos críticos do serviço, como a leitura do Evangelho e a partilha do pão e do vinho. Durante o sermão usou um batuque para marcar o ritmo e fez um longo, pungente, um arrepiante vocalizo africano, que acompanhava na perfeição a voz entusiástica do marido. Toda a gente gostou tanto que, no domingo seguinte, foi ela própria quem fez o sermão inteiro, com o marido cheio de orgulho sentado na primeira fila a observar. O tema escolhido era a compaixão, e ela entrou de mansinho. Mas foi por ali fora numa tamanha espiral ascendente que, às tantas, o mesmo Cyrus que me tinha dito “women can’t preach” estava a gritar “Preach! Preach!”, enquanto o Roger, com todo o poder da sua voz Mowtown, gritava “Teach us! Teach us!” Foi sublime.

a church with a steeple and a steeple on top of it

Ou seja, os metodistas e os episcopalianos, assim como vários outros protestantes, podem casar-se e ter uma vida normal. Mais bonito ainda, podem casar-se com colegas da mesma pastorícia e dar Força um ao outro, ou encher-nos de Força a nós celebrando o serviço juntos. Quando o nosso pastor celebrava sozinho, aquilo era sempre assombroso. Mas, quando celebrava com a mulher, ou lhe entregava por completo as rédeas da celebração, aquilo era de uma beleza que até fazia doer.

É isto, esta importantíssima felicidade da fé, que a Igreja Católica nega, em nome da “tradição”, aos seus fiéis e aos seus oficiantes. Os homens e mulheres que desejam afastar-se do mundo para orarem e meditarem dentro de muros de conventos, tornando-se assim monges e freiras, estão no seu direito de escolher essa vida[16], e ao fazê-lo fazem uma escolha extremamente importante para todos nós. Que seria da civilização ocidental sem Juan de la Cruz e Madre Teresa de Avila, sem Hildegard von Bingen[17] nem Teresinha de Lisieux? Ou mesmo a Madre Lúcia, vá?

Mas nada disto se aplica aos homens e mulheres que vivem entre o resto da sociedade, e procuram orientar os rebanhos das suas paróquias para o bem, mas parecem esquecer-se da felicidade – da sua e da dos seus fiéis.a É evidente que muitos problemas que infestam os tempos modernos desapareceriam se os padres pudessem casar-se e formar uma família como a de toda a gente, e que as missas predisporiam os fiéis a sentirem-se muito mais felizes.

beaded brown rosary

Note-se que os Padres da Igreja não tinham quaisquer dúvidas a respeito da importância da sensação de felicidade. Santo Ambrósio, bispo de Milão, o patrono e conselheiro espiritual de Santo Agostinho, chegava a ter na sua catedral coristas seminuas escolhidas a dedo, vestidas com roupas lindas e sensuais que dançavam magistralmente a som dos coros. Da mesma forma, por esta altura (século IV, ainda antes do concílio de Niceia) as igrejas mais importantes da Europa começaram a encher-se de crocodilos pendurados do tecto, cornos de narval encaixados em encastes fabulosos, reluzentes de jóias, e apresentados como sendo de unicórnio, ovos de avestruz usados para bases de castiçais, aves exóticas de grande porte empalhadas como que em pleno voo – tudo o que pudesse atrair os transeuntes às igrejas como num cabinet de curiosités[18] e depois levá-los a entrar, tudo o que testemunhasse, pela sua beleza e esplendor nunca antes vistos, a grandeza e o poder de Deus, era usado sem hesitações para aumentar a cristandade.

Muito deste trabalho era feito pelas mulheres lado a lado com os homens, tal como fora no tempo de Jesus, e em todos os Actos dos Apóstolos, sobretudo nas últimas Cartas de São Paulo, quando o grande tradutor do Novo Testamento para as multidões ignorantes ordena responsáveis totais pela missa várias mulheres, às quais agradece explicitamente, com o nome bem em destaque, no final do seu livro.

Por que é que a Igreja não perpetuou nenhuma destas tradições? Como é que é possível que os teólogos católicos não reparem no respeito que Jesus manifesta constantemente pelas mulheres? Quem é que encontrou o Sepulcro vazio, se calhar foi algum gajo? Por favor perdoem-me a linguagem mas estou farta destas disparidades e se não me engano a primeira pessoa a chegar ao Sepulcro primeiro e avisar toda a gente a seguir foi Maria Madalena. Se isto não é dar às mulheres um papel de enorme importância dentro da narrativa cristã, então olhem – não sei o que é.

sun rays inside cave

Não sei mesmo. Subjugada à sua liderança masculina, a posição das mulheres da Igreja Católica foi descendo de mal a pior. Tinha eu dezassete anos e, três anos volvidos sobre a Revolução, num país ainda completamente em festa, estava quase a sair de casa porque o famigerado Ano Propedêutico, lecionado pela televisão, não nos obrigava a estarmos em sítio nenhum em particular – e eu tinha resolvido ir trabalhar para uma residência de meninos da telescola perto de Montalegre. Lembro-me especialmente bem destes pormenores porque foi quando o Papa Paulo VI emitiu uma declaração oficial contra a ordenação de mulheres. A Sagrada Congregação para A Doutrina da Fé divulgou a Declaração sobre a Questão da Admissão das Mulheres ao Sacerdócio Ministerial [19]para publicação em 27 de janeiro de 1977. A Declaração afirmava que a Igreja, “na fidelidade para com o Senhor, não se considera autorizada a admitir mulheres a ordenação sacerdotal.”

Na altura, com a cólera dos meus dezassete aninhos, eu fechei-me no quarto e berrei logo,

Filho da Puta!”

Maria Clara, o que é que tu estás a dizer?”, perguntou a minha mãe do outro lado da porta.

Estou a chamar nomes ao Papa Paulo VI,” respondi eu.

Nisso tens toda a razão,” respondeu ela, com um suspiro conhecedor de militante. “Mas modera-me essa linguagem se fazes favor.”

E então eu suspirei baixinho,

Cabrões.[20]

Papa Paulo VI

Aqueles gajos tinham a lata de referir a sua fidelidade para com o Senhor?

Mas o Senhor não era um grande amigo das mulheres?

A Sagrada Congregação, sempre a meter um bocado os pés pelas mãos[21], afirma que o que aconteceu e se escreveu nessa altura foram apenas considerações inspiradas pelo Espírito dos Tempos.

É preciso ter uma grandecíssima cara de pau.

Então os nossos tempos contam e os tempos de Jesus é que não contam????

Desculpem, mas…[22]


Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Vulgarmente conhecido por “Lawrence da Arábia”.

[2] A Ordem Agostiniana é pouco conhecida em Portugal, e não tenciono escrever um livro de texto a seu respeito. Para os interessados, no entanto, recomendo A HISTORY OF GOD, de Karen Amstrong, Alfred A. Knopf, 1993.

[3] Enfim, o Reizinho Eduardo VI de Inglaterra, filho de Jane Seymour, que subiu ao trono depois da decapitação de Ana Bolena, aparentemente ainda não satisfeito com os rios de sangue derramados pelo seu Pai Henrique XVIII (como veremos), antes de morrer aos catorze anos ainda teve tempo para escolher antes a Fé Evangélica e derramar mais bastante sangue (viveu muito pouco e esteve doente quase todo o tempo,  é preciso ver).

[4]  Recusamos aqui ao tempo de vida de Henrique VIII, que, como o Papa não lhe anulava o casamento porque não podia dar-se ao luxo de se incompatibilizar com os Reis Católicos de quem a sua primeira esposa, Catarina de Aragão, era filha, criou a fé Anglicana para poder separar-se dela e casar com Ana Bolena, por quem estava então perdidamente apaixonado,  e de quem esperava vir a ter muitos filhos do sexo masculino (em vez deles teve a futura Isabel I, mas já não viveu para ver a glória do reinado da Segunda Rainha de Inglaterra. O processo de mudança foi extremamente sangrento e não menos doloroso, sobretudo porque obrigou Henrique a decapitar o seu grande amigo Thomas More, que se recusou a abandonar a fé católica, assim como se recusou a fugir.

[5] Esta união aos ocorreu a partir de um sentimento legítimo de perda de um protector sublime das suas comunidades, independentemente da ferocidade como estas comunidades possam lutar entre si, desde a sua criação até’ aos nossos dias. Ainda por cima, o terceiro ramo do Filhos de Abraão, representado pelo judaísmo, foi tão indiferente quanto possível aos outos Papas, mas desenvolveu um ódio crescente a Francisco à medida que ele foi falando contra o “genocídio dos palestinianos” tal como visível na Faixa de Gaza. Para evitar uma nota em forma de calhamaço, recomenda-se THE BATTLE FOR GOD, de Karen Amstrong.

[6] Idem. Mas, se quiserem a referência toda para saberem a história toda, trata-se de THE BATTLE FOR GOD, de Karen Amstrong, Alfred A. Khnopf, Nova Iorque, 2000. Basta olhar para as datas dos dois livros colossais da autora para percebermos logo que o nosso mundo tem vindo a tornar-se cada vez mais cruel e desumano. Acreditem, isto não é só uma dedução: eu li os dois de ponta a ponta, e torna-se evidente que estamos a perder a nossa Graça, seja ela qual for.

[7] Isto quer obviamente dizer que ainda vou a tempo de ser namorada do Mick. Eu estou viva, ele está ainda mais vivo do que eu, e se uma das minhas duas fantasias já se cumpriu é evidente que a outra também vai cumprir-se. Eu sou extremamente paciente, e, como os próprios Stones escolheram intitular um seus discos ainda do tempo do vinil, TIME IS ON OUR SIDE.

[8] No primeiro ano desta estadia, vi-me obrigada a sobreviver apenas com os mil dólares por mês da minha bolsa da Fulbright. Os negros americanos são sistematicamente muito mais pobres do que os brancos, mas até os meus amigos da Igreja ficavam de queixo caído quando eu lhes dizia isto, porque o limiar de pobreza naquela zona é de 2600 dólares por mês. Por isso mesmo, foram eles que pagaram as lentes e armações dos meus primeiros óculos graduados quando comecei a ter dificuldades de leitura e escrita. Num domingo de Maio, o Cyrus, que agora era o organizador das actividades mais delicadas da Igreja, passou-me um envelope para as mãos no fim do Serviço sem me dar quaisquer explicações. Quando cheguei a casa e o abri, tinha lá dentro duzentos dólares em notas: era um peditório especial que tinham feito para me ajudarem. Mais tarde, houve um fim do diaem que o meu grande amigo Roger, o baixo do  coro e a voz mais Mowtown que imaginar se possa, me bateu à porta com um cheque de sessenta euros em compras no supermercado finaço por trás de minha casa: “Fui lá agora comprar aquele teu azeite português e a montra dos peixes tinha daqueles crabcakes que tu adoras, enormes, muito frescos, e este foi o meu troco, e então lembrei-me de pedi-lo antes em vale de compras para poderes ir lá comprar uns quantos e mais o que te apetecer.” Isto são só uns exemplos. Ajudaram-me com muitíssimas mais coisas.

[9] Jesus, sobre a caridade: “Não deixes que a tua mão esquerda saiba o que faz a tua mão direita.”

[10] O “ser católica” ainda vá que não vá. O “ser branca” era questionável, porque os americanos nunca me comeram realmente por branca. Mas os meus colegas da Universidade estavam cheios de medo dos maus tratos que os pretos iriam infligir-me se eu ousasse entrar na igreja deles. Não se iludam: já corri o mundo inteiro, e nunca estive num país tão incrivelmente racista como a América.,

[11] A esmagadora maioria dos autodesignados afro-americanos nunca na vida pôs os pés em África.

[12] Vê-se logo que não era branco. Esses andam sempre cheios de medo do assédio sexual e nunca tocam em ninguém.

[13] A Budweiser, já de si, é pouco mais do que água com gás. Da BudLight, quanto menos se falar melhor.

[14] Faz parte da tradição. A família junta-se toda, mas, regra geral, as pessoas têm pouco que dizer umas às outras. Para acudir a este marasmo social e evitar a inevitabilidade de refrega desagradáveis, a televisão passa jogos de basquete cheios de superestrelas desse desporto, e com outras tantas de vários outros domínios nos intervalos, encarregues de publicidades que só passam nessa altura, como por exemplo o Bob Dylan a promover o novo Jeep Chevrolet.

[15] Toda a gente sabe que se trata de uma pergunta retórica. Os State Troopers fazem-na quando passamos por eles em excesso de velocidade, e a seguir passam-nos uma multa de cento e tal dólares.. Por acaso foi uma coisa que me aconteceu a mim com relativa frequência. Com tanta frequência, aliás, que eu paguei as multas todas mas eles acabaram por mandar-me ir ao curso de fim de semana de recuperação psicológica, onde estava uma psicóloga gorda com ar de camionista, eu, e mais nove exemplares perfeitos do pior trailer park white trash que é possível encontrar nas montanhas ali da zona. Não se pode dizer que não tenha funcionado. Cheguei aqueles dois dias a casa a chorar como uma Madalena, e, só de pensar em ter de voltar a sofrer um outro fim de semana daqueles, a verdade é que reduzi substancialmente a minha velocidade de cruzeiro. A única outra vez em que um State Trooper me mandou parar foi graças ao livro arbítrio dos seis aninhos do meu filho Ricky, que achou por bem soltar-se do cinto, sair da cadeirinha, e deitar-se ao comprido no banco de trás, com a cabeça no colo do irmão, que ficou caladinho que nem um rato. Eu ia a guiar no banco da frente, e não dei por absolutamente nada até ter aquelas malditas luzes vermelhas e azuis coladas a mim. Eles ainda não falavam inglês, mas a fúria assustadora daquele Incredible Hulk Azul e cheio de armas entendia-se bem. Nunca mais me mandaram parar.

[16] Desde que sejam mesmo eles quem a escolhe.

[17] Reconheço que escolher Hildegard é esticar um bocado a corda, já que esta mulher admirável, pioneira da genética mendeliana logo no século XI, passou a sua vida de Madre Abadessa a correr o mundo onde conseguia chegar para proferir os seus sermões que todos queriam ouvi. Mas a verdade é que depois voltava para o seu convento e retomava o voto de silêncio, excepto com o jardineiro que lhe semeava as plantas segundo os padrões que ela pé-seleccionava.

[18] Esta tradição, iniciada cedo na Idade Média e sobretudo em Paris, mandava os agentes  das casas ais da nobreza, ou mesmo dos homens mais marcantes do clero, correr o mundo inteiro à procura de artefactos naturais estranhos e apelativos, ou preparados por tribos distantes, que depois eram colocados pelos joalheiros da corte em suportes ousados, como por exemplo vários pés de raiz de mandrágora revestidos de pele de jiboia nas pontas mais finas e expostos nas zonas mais grossas, cheios de pedras semipreciosas à sua volta. Todos estes artefactos, que ainda ninguém sabia exatamente a que correspondiam, eram expostos em montras de vido nas paredes para chamar a atenção dos que passavam, e tinham lá dento conjuntos lendários de Monstros & Maravilhas. A partir de Paris, e até à Revolução Científica, estes Gabinetes de Curiosidades foram o primeiro grande despoletar a curiosidade ocidental para as Ciência da Natureza.

[19] Estão a ver o caos burocrático que isto foi.

[20] O nosso respeito pela nossa mãe era incontornável. Creio que um dos piores momentos da minha vida foi quando, aos dezasseis anos, me distraí completamente no meio do falazar dos meus amigos e disse um foooo-da-se bem marcado e bem sonoro a falar com ela ao telefone. Já estou corada só de me lembrar disso.

[21] Veremos quanto na próxima crónica.

[22] …QUE MERDA É ESTA????

Partilhe esta notícia nas redes sociais.