TEM DIAS
Viajar

Os verões da infância, passados na horta, eram uma memória quase tão doce quanto os figos lampos, maduros e reluzentes, que então colhia. Dias inebriantes, quentes e saturados de uma luz que obrigava a semicerrar os olhos para poder ver.
Trepava às árvores e, protegida pela sombra intermitente das folhas, saboreava lentamente os frutos, enquanto, por entre as pestanas quase unidas, olhava o céu.

Em silêncio, tão distantes que mal se viam, os aviões riscavam o azul. Às vezes, pegava na bicicleta e pedalava com quanta força tinha pelos campos fora. Perseguia-os. Não podiam ir assim tão longe. Pois se nem batiam as asas… Mas nunca apanhou um, nem descobriu para onde iam.
Imaginava que os rastos eram trilhos suspensos entre mundos invisíveis. Aos poucos desfaziam-se no ar, tornando-se migalhas espalhadas numa floresta — promessas de destinos imaginados.
Mas mais do que saber para onde iam, interessava-lhe quem lá ia dentro. Uma gente diferente vinda de longe: os estrangeiros. Quando andava pela vila, observava-os com a mesma curiosidade com que seguia os aviões. Altos, loiros, de pele e olhos claros. Falavam línguas que lhe soavam como a música que saía do quarto do irmão adolescente: bela e indecifrável.
Os mais velhos chamavam-lhes camones, palavra estranha, que percebeu ser sinónimo de bifes, que, por seu lado, nada tinha a ver com o almoço de domingo, e que também era sinónimo de turistas.

Alguns pareciam mendigos. Mochila às costas, pouco banho, cabelo desgrenhado. Ficavam horas à boleia junto à 125. Seguravam cartões onde se lia Portimão, Albufeira, Lagos… Soube mais tarde que esses vinham de comboio. Eram turistas de pé descalço. A mãe dizia que eram hippies e que não sabia como é que alguém metia no carro aqueles encardidos com ninhos de ratos na cabeça. A ela, fascinavam-na. A liberdade, os olhos cheios de estrada…
Já os que chegavam de avião cheiravam a protetor solar. Viajavam em família e exibiam roupas leves e diferentes nas esplanadas dos cafés e restaurantes. Percebia neles a leveza e o ar de quem não tem uma preocupação na vida. Estranhou, por isso, quando mais tarde lhe disseram que aqueles turistas eram, afinal, a classe baixa inglesa. Ela, que sonhava ter uns óculos de sol espelhados como os deles, que nunca fora com os pais para além de Lisboa e que, do estrangeiro, conhecia apenas Ayamonte, não podia compreender.
As idas à outra margem do Guadiana eram dias de festa. Conferiam-se os passaportes, trocavam-se escudos por pesetas e inventavam-se artimanhas para atravessar a fronteira com o dinheiro. As crianças, raramente visadas pelos fiscais, escondiam-no nos bolsos, cosido nos forros dos casacos, nas meias, sob as palmilhas dos sapatos…

Saindo do ferry, era o delírio. Saltava-se de loja em loja, compravam-se bonecas, cortinados e roupa de cama, enchidos, Peta Zetas, caramelos com pinhões, licor Tía Maria, whisky intragável, — que o pai reservava para visitas indesejadas, na esperança de que não voltassem — e garrafas Bols, que ficavam lindas no bar da sala a fazer pendant com a alcatifa azul.
No regresso, a ansiedade tomava conta de todos. Só então se apercebiam da verdadeira dimensão do tesouro acumulado. Fazia-se contas ao que poderia ser apreendido na alfândega, ainda que fosse raro não passar tudo. A ela, ninguém convencia de que os fiscais não tinham mais de cúmplices do que de polícias.
Durante muitos anos, a visita à terra de nuestros hermanos foi uma aventura, mas nunca lhe bastou. Nem mesmo quando, num dia especial, se aventuraram até Huelva e lhe compraram um vestido de sevilhana. Ficou encantada, mas queria mais.
Sonhava com comboios que atravessavam outras fronteiras e, sobretudo, com aviões que rasgavam nuvens. Ansiava por ver os países de onde vinham os turistas.

Na adolescência, aprender inglês permitiu-lhe contactar com alguns: ingleses, franceses, alemães, holandeses, americanos. Falavam de realidades tão diferentes da sua. Em Portugal cantava-se, então, Quero ver Portugal na CEE, mas o país, apesar de desejar abraçar o futuro, tinha ainda bem visíveis as cicatrizes do “orgulhosamente sós”.
Assim que a idade permitiu, começou a trabalhar nas férias escolares. Juntava tudo o que ganhava com um único intuito: viajar. Fê-lo, nos primeiros anos, com o encantamento de quem descobre novos mundos. Cada país, a sua língua, a sua gastronomia, a sua moeda. Guardava como recordação liras, francos, marcos, dracmas.
Depois, veio a fase em que percebeu que, nas visitas a países europeus, encontrava mais semelhanças do que diferenças. As mesmas lojas, os mesmos restaurantes, as mesmas marcas. Os souvenirs “autênticos”, fabricados em série na China. Peças exatamente iguais, apenas com estampagens diferentes, porque sobre a mesma base de íman, cabia tanto a Torre Eiffel como a dos Clérigos ou a de Pisa. Nada que não pudesse ser encomendado online. Nada que fosse, de facto, sinónimo de viagem.

Cruzava fronteiras, mas os cafés continuavam a ter os mesmos toldos, as mesmas mesas, os mesmos copos, pratos e talheres. Tudo disposto em torno dos mesmos vasinhos de metal, brancos e rendilhados. Nas zonas turísticas, a gastronomia local fora substituída por refeições feitas à medida do turista que sai de casa, mas prefere não ser surpreendido: hambúrgueres, batatas fritas, kebabs, pizzas e bolonhesas congeladas.
Começou, por essa altura, a procurar destinos mais longínquos. A idade era outra e atingira um estatuto que lhe permitia explorar continentes distantes e culturas exóticas. No entanto, alguns itens teimavam em ser universais. Ecos de uma gentrificação silenciosa, lá estavam os ímanes, as canetas, os sacos de pano e as canecas. Tão iguais que decidiu trazer, como recordação do Brasil, uma caneca com a imagem de Carlos Drummond de Andrade e a legenda Fernando Pessoa. Ambos escreviam. Ambos usavam óculos. É normal. Tão normal como a idade ter substituído nela a ira pela ironia.
Mas o que realmente mudou nas suas viagens foi a maneira como, no presente, olha para os lugares e a forma como deles se despede. A consciência de que não voltará a pisar aquele chão, não voltará a mergulhar naquelas águas, não tornará a ver cada uma das pessoas com quem se cruza e de quem se despede com um “até à próxima”.

A viagem faz-se agora com a mesma alegria e curiosidade de sempre, mas também com a urgência silenciosa de agarrar o tempo e a oportunidade. O desejo, maior do que nunca, de ver e experimentar tudo, como quem devora um livro, sedento por cada linha e assombrado pela iminência da página final. Detém-se em cada centímetro de chão, em cada onda do mar, em cada rosto, com a certeza de ser a última vez que o faz. Instala-se nela a sombra de uma saudade anterior à partida.
Sabe que continuará a viajar, que seguirá sempre o rasto dos aviões — mesmo que apenas com os olhos semicerrados e um figo lampo a desfazer-se na boca e nas mãos, como outrora — e que, em cada turista, continuará a procurar os sinais de uma alteridade por desvendar.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
N.D. As ilustrações foram produzidas com recurso a inteligência artificial.