ANÁLISE ELEITORAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA
Lisboa não é Portugal: como a cegueira elitista urbana alimenta a ruptura politica no país real

Mais do que a confirmação de não ser necessária a ética para se ser primeiro-ministro em Portugal – com a vitória em minoria (39% do Parlamento) de Luís Montenegro –, as eleições legislativas de ontem deixaram claro que o país político que habita a cidade de Lisboa está cada vez mais desligado do restante território nacional. A velha máxima “Portugal é Lisboa, e o resto é paisagem” já não tem graça — tornou-se um diagnóstico clínico da arrogância das elites urbanas, políticas e mediáticas, sobretudo à esquerda do Partido Socialista, que vivem encerradas nas suas redomas ideológicas, incapazes de compreender os sinais de desconforto e insatisfação que se acumulam há anos fora da capital política e mediática.
A evolução entre os resultados eleitorais de 2024 e 2025 no concelho de Lisboa e no país – e mesmo na Área Metropolitana de Lisboa – é reveladora dessa dissonância. E não tanto pelo chamado Bloco Central, que governa alternadamente desde 1975, e que pragmaticamente não são assim tão diferentes na praxis política. Na capital, é certo que estas forças partidárias desceram, no seu conjunto, de 58,52% no ano passado para 54,95%, mas não fogem muito do desempenho nacional: no ano passado, o Bloco Central registou 56,84%, enquanto este ano ficou, por agora, nos 56,10%.

No caso do Chega, a sua votação no concelho de Lisboa é francamente pior do que no global do país. No ano passado, o partido de André Ventura teve apenas 11,73% na capital, quando teve 18,07% no país (diferença de 6,34 pontos percentuais); ontem, contabilizou 14,53% em Lisboa e 22,56% no país (8,03 pontos percentuais).
A grande diferença está no facto de, em Lisboa, existir uma forte presença dos partidos da ‘esquerda alternativa’ – a denominação que prefiro; ou ‘radical’, como muitos lhes chamam –, ou seja, no Livre, Bloco de Esquerda e PCP. Estes partidos, e o seu eleitorado urbano, conseguiram suster o crescimento da simplificadamente chamada ‘extrema-direita’ sem se aperceberem das mudanças sociais, dos desafios, das necessidades do país, porque já não saem sequer das suas freguesias e da sua bolha. Atacam com eficácia o ‘papão da extrema-direita’ que gravita nos media, mas não criaram condições para atacar os problemas sociais e económicos que alimentam o dito ‘papão’.
Senão vejamos: no concelho de Lisboa, o Chega continua com ‘dificuldades’ de penetração, porque a ‘esquerda alternativa’ mantém os seus bastiões. Nas eleições de ontem, no seu conjunto, Livre, Bloco de Esquerda e PCP conseguiram 15,76%, superando os 14,53% do partido de André Ventura. Repetiram 2024: Livre, Bloco de Esquerda e PCP tiveram na capital 16,25% dos votos; o Chega ficou então pelos 11,73%.

No entanto, Lisboa é um excelente exemplo do falhanço da ‘esquerda alternativa’ – porque do Bloco Central não se pode esperar muito perante o esgotamento de 50 anos de ‘serviços’ prestados à Nação. Achar que as questões de segurança e de imigração – os bastiões do Chega – são falácias e meras percepções, ou que são discursos xenófobos ou racistas, encerrando-se o tema colocando-o como tabu, foi um dos erros crassos da esquerda.
E basta olhar para algumas freguesias, colocando uma singela pergunta: qual a razão para que, mesmo em Lisboa, na elitista freguesia de Belém, o Bloco Central tenha contabilizado 59,78% e o Chega apenas 9,95% (ficou em quarto, atrás da Iniciativa Liberal), mas em Marvila o partido de André Ventura tenha vencido com 31,09%, tendo o Bloco Central registado apenas 47,08%? Ou então, como é possível a ‘esquerda alternativa’, tradicionalmente mais preocupada com os injustiçados, conseguir menos eleitores na ‘marginalizada’ Marvila (10,96%) do que nas abastadas freguesias de Belém (12,91%), Campo de Ourique (15,71%) e Avenidas Novas (14,21%)?
O fenómeno de perda de noção do país por parte de uma certa clique política, social e da comunicação social lisboeta adensou-se com a crescente endogamia profissional, cultural e ideológica. Os jornalistas e opinion makers vivem e trabalham nos mesmos bairros, frequentam os mesmos círculos sociais e partilham códigos morais e linguísticos que os afastam da maioria da população. Esta homogeneidade de visões faz com que, mesmo sem má-fé, olhem para o país a partir de uma lente distorcida. Incapazes de escutar o que se diz nas ruas de Marvila, nos subúrbios de Sintra ou nas praças de Beja, produzem análises e manchetes que apenas confirmam o que já pensavam antes de sair da redacção — se é que saem.

Os resultados estão agora à vista. Basta atravessar o Tejo ou afastar-se alguns quilómetros do Marquês de Pombal para ver como o país já está divorciado de Lisboa. No próprio distrito da capital, o Chega foi o partido mais votado em cinco concelhos: Alenquer, Azambuja, Sintra, Sobral de Monte Agraço e Vila Franca de Xira — este último com mais de 26% dos votos. Ou seja, a escassos 30 minutos da capital, o Chega ultrapassa largamente os 14,5% obtidos no concelho lisboeta, chegando em alguns casos a mais do dobro da sua expressão na cidade.
No distrito de Setúbal, o cenário é ainda mais paradigmático: o Chega venceu o distrito e foi o partido mais votado na Moita, Montijo, Palmela, Seixal, Setúbal, Sesimbra e Sines. São territórios urbanos e suburbanos densamente povoados, com historial de voto tradicionalmente à esquerda, agora convertidos em bastiões de um partido que tem como bandeiras a segurança, a imigração e o combate à corrupção. O Chega venceu também em Faro – como já ocorrera no ano passado, o que mostra que não foi um acaso –, em Portalegre e até em Beja. Não é o “Portugal profundo” que está a mudar — é o país metropolitano não lisboeta que se revolta contra uma elite urbana que o ignora sistematicamente.
É aqui que reside o problema. A comunicação social, enraizada quase exclusivamente em Lisboa, e que tem como estratégia brandir o ‘bicho-papão’ da ‘extrema-direita’, continua a olhar para o país com lentes deformadas. Ignora ou menospreza os temas que verdadeiramente mobilizam milhões de eleitores, sobretudo fora dos grandes centros urbanos mais ricos. Pior: quando esses temas emergem com força eleitoral — como a imigração e a segurança — são imediatamente classificados como “discursos de ódio”, “populismo” ou “alarmismo”. Esta resposta reflexa, moralista e simplificadora não só revela uma profunda incompreensão da realidade, como também contribui para o crescimento do fenómeno que se pretende combater.

É um erro crasso da esquerda política e comunicacional pensar que pode derrotar o Chega silenciando as suas bandeiras. A segurança e a imigração não são fantasmas inventados por agitadores — são preocupações reais, mesmo que nem sempre sustentadas por estatísticas. E, em política, como se sabe, as percepções são quase tão relevantes como os factos. Quando uma família em Loures sente medo de sair à noite, ou quando um trabalhador rural no Alentejo vê os salários a baixar devido à exploração de mão-de-obra estrangeira em condições precárias, não adianta dizer-lhe que tudo está dentro dos parâmetros europeus. A sensação de insegurança e injustiça instala-se. E quem a vocaliza com clareza ganha terreno.
A esquerda urbana, em vez de enfrentar estas questões, refugia-se numa superioridade moral que aliena os eleitores. Fala de inclusão, diversidade e cosmopolitismo com o fervor de quem nunca precisou de partilhar um hospital público superlotado ou de viver em zonas onde o Estado já mal chega. Esta esquerda prefere desconstruir conceitos a resolver problemas, prefere aulas sobre “privilégios inconscientes” a propostas sobre habitação acessível promovida pelo Estado (e não tectos mno arredamento) ou policiamento de proximidade.
Se quer recuperar influência junto do eleitorado popular, a ‘esquerda alternativa’ precisa de abandonar a sua torre de marfim e olhar o país nos olhos. Isso significa tratar a segurança como uma prioridade legítima — mesmo que, em muitos casos, o problema seja mais de percepção do que de realidade. Significa também promover um debate sério sobre imigração, livre de dogmas e preconceitos, que reconheça as necessidades económicas do país, mas também a pressão social que uma imigração mal gerida pode causar. E mais: sobre as condições desumanas em que vivem muitos destes imigrantes. É preciso encontrar um equilíbrio entre integração e exigência, entre acolhimento e responsabilidade, entre as condições de vida dos imigrantes e os direitos das populações locais.

Ignorar estes temas só serviu e servirá para os entregar de bandeja a quem os instrumentaliza com discursos fáceis. E não basta agora correr atrás do prejuízo com campanhas de fact-checking ou projectos de literacia mediática. O eleitorado não é estúpido nem manipulável ao sabor dos moralismos do momento. É informado, é atento, sente na pele o que vive, e sabe distinguir quem lhe fala com frontalidade de quem o trata como incapaz de compreender o que se passa à sua volta.
O resultado das legislativas de ontem prova ainda o esgotamento do bipartidarismo tradicional, e isto também não são boas notícias para os partidos da ‘esquerda alternativa’, sobretudo se ficarem abaixo dos 10% ou, pior ainda, dos 5%, porque o método de Hondt os aniquila. Com a ascensão do Chega, o Bloco Central resiste, mas enfraquece: PSD e PS, juntos, valem hoje pouco mais de metade dos votos. O crescimento do Chega, a par da agonia do PCP, da irrelevância do BE e da (ainda) fragilidade do Livre e da Iniciativa Liberal, demonstra que os eleitores estão à procura de alternativas. Não se trata apenas de uma mudança de nomes — é uma exigência de respostas concretas. O eleitorado quer menos retórica e mais soluções, menos censura moral e mais escuta activa.
É sintomático que os círculos de opinião mais activos nos media continuem a defender que o país sofre de um “problema de populismo”. Aquilo de que o país sofre, na verdade, é de um problema de elitismo urbano. Um elitismo que acha que votar Chega é uma aberração moral, mas que aceita como natural viver num país onde o acompanhamento médico se degrada, onde a escola pública está em colapso, onde os salários não chegam para pagar rendas nem alimentação, onde não há vigilância policial e o pequeno crime (que nem chega às estatísticas) prolifera até ameaçar ser grande, e onde os gastos públicos absurdos e sem transparência são um convite para a corrupção. A indignação selectiva é um luxo de quem pode escolher os seus problemas. O povo não pode.

O Parlamento que agora se forma é mais plural, mais fragmentado e, paradoxalmente, mais representativo. Resta saber se os partidos que perderam influência saberão fazer a sua própria reflexão. A ‘esquerda alternativa’, em particular, que perdeu uma oportunidade de crescer em 2024 – mas não quis criticar o PS para então não fazer crescer o peso relativo do Chega –, tem de decidir se quer continuar a falar para si própria — ou se quer voltar a ser relevante para o país. A comunicação social, por sua vez, precisa de reencontrar a sua função: não é catequizar o eleitorado, mas informá-lo com rigor, escutá-lo com respeito e servi-lo com humildade.
Se Lisboa continuar a querer falar sozinha, continuará a não ser ouvida. E Portugal seguirá o seu caminho — com ou sem ela. Nisto, há uma enorme virtude na democracia: Lisboa, e as suas elites, já não valem nada, embora tenham muito tempo de antena no media. Ou melhor, proporcionalmente, valem somente o seu peso demográfico. Nada mais.