ERC NORMALIZA PROMISCUIDADES DA IMPRENSA COM COIMAS SIMBÓLICAS
3.500 euros: Fretes comerciais de jornalistas do Público durante a pandemia com penas leves

Um debate sobre a pandemia, moderado pelo actual director do Público, David Pontes, em Novembro de 2020, foi pago pela Câmara Municipal de Penafiel – e teve como protagonista o presidente da edilidade, Antonino de Sousa. O jornal do Grupo Sonae recorreu ainda a dois jornalistas, Ana Rita Teles e Pedro Sales Dias, para comporem uma notícia sobre o evento, recebendo, por isso, um pagamento total de 7.000 euros.
Poucos meses mais tarde, o mesmo David Pontes ‘mercadejou-se’ novamente, desta feita para prestar serviços à Ordem dos Médicos Dentistas. Então director-adjunto, Pontes voltou a assumir a componente comercial, permitindo o protagonismo de Miguel Pavão, bastonário da Ordem, numa tertúlia online, também sobre a pandemia, em que participou igualmente a então directora-geral da Saúde, Graça Freitas. Pelo frete – que incluiu uma notícia assinada pelo jornalista Mário Barros – o Público recebeu 10.500 euros.

Três anos depois de o PÁGINA UM ter revelado estes dois contratos promíscuos, exemplo claro da mercantilização da actividade jornalística – e inseridos num conjunto de mais 54, envolvendo também a Impresa, a SIC, a Global Notícias, a Cofina (actual Medialibre) e a TIN (empresa publicitária da Trust in News) – a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) aplicou, como habitual, a mão que sabe usar para grupo de media portugueses: a mão leve.
Com efeito, de acordo com a deliberação hoje divulgada pelo regulador – embora aprovada no passado dia 7 –, o Público terá de pagar apenas 3.500 euros de coima, e não por ter mercadejado notícias ou promovido quem paga através de jornalistas credenciados, mas unicamente porque “não inseriu as palavras ‘Publicidade’ ou as letras ‘PUB’, em caixa alta”, nos textos que promoviam, travestidos de notícias, os serviços contratados.
Apesar de se tratar, com clareza, de uma mercantilização de serviços noticiosos – feitos apenas por pagamento, e com a participação de um jornalista da direcção editorial que se prestou a funções de marketeer –, a ERC considerou que não ficou provcado que “a Arguida [Público] tenha agido com consciência da ilicitude dos factos por si praticados”, e ainda “com vontade em publicar os artigos em causa nos autos sem a devida identificação quanto à sua natureza publicitária”. Ou seja, o regulador dos media entendeu tratar-se de uma mera negligência – um simples esquecimento.

Ainda assim, embora considerando que essa negligência deveria ser sancionada, a ERC entendeu que seria “necessária a ponderação da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação”. Ora, como pelos fretes jornalísticos o Público arrecadou 17.500 euros, o regulador achou por bem aplicar-lhe uma espécie de “taxa de promiscuidade”, recentemente também usada no caso da Impresa. Com a referida “taxa” – formalmente denominada coima – de 3.500 euros, o Público ainda arrecadou 14.000 euros limpos.
Este é mais um caso que contribui para a normalização da promiscuidade no jornalismo. Recorde-se que, segundo a Lei de Imprensa, toda a publicidade “deve ser identificada através da palavra ‘Publicidade’ ou das letras ‘PUB’, em caixa alta, no início do anúncio, contendo ainda, quando tal não for evidente, o nome do anunciante”.
Porém, além de prestações de serviços a entidades públicas e privadas travestidas de notícias, praticamente todos os grandes grupos de media em Portugal têm vindo a criar áreas ambíguas – como o ‘Projetos Expresso‘, no Expresso, ou o Estúdio P e o Terroir , no Público, ou ainda o C-Studio, no Correio da Manhã – para publicar conteúdos resultantes de contratos comerciais, muitas vezes com envolvimento directo de jornalistas e directores editoriais.

Saliente-se que apenas em contratos públicos, por obrigatoriedade legal de divulgação, se consegue apanhar alguns casos de notícias e debates ‘mercadejados’ com a participação de jornalistas. Tal não se mostra possível em casos de empresas privadas, com uma única excepção: as farmacêuticas são obrigadas por lei a divulgar os apoios no Portal da Transparência e Publicidade se apoiarem órgãos de comunicação social, mas apesar de centenas de parcerias nos últimos anos não registadas, o Infarmed tem fechado os olhos.
Importa ainda sublinhar que a Lei de Imprensa proíbe a ingerência externa nos conteúdos editoriais – o que ocorre sempre que existem parcerias comerciais em que estão envolvidos jornalistas, incluindo na produção de notícias sobre esses eventos. Mais: está vedada aos jornalistas a participação em actos publicitários. Assim, sendo os referidos eventos considerados publicitários pela ERC, conclui-se que a actuação de David Pontes – e dos demais envolvidos nas duas parcerias – configura violação do Estatuto do Jornalista. O PÁGINA UM solicitou um comentário à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista sobre este assunto, indagando se pretende adoptar alguma medida. Aguarda-se resposta.