FACTURAÇÃO MILIONÁRIA PARA NOITES DE ESPECTÁCULOS 'GRÁTIS'

Duas ‘Noitadas’ em Portimão custam 1,6 milhões de euros

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Elisabete Tavares e Pedro Almeida Vieira|23/05/2025

Verão não é Verão sem festança na ‘aldeia’. Neste caso, a ‘festança’ tem sido em Portimão, dura dois dias (ou noites) e promete sempre ser de arromba, com espectáculos de música e luzes. De arromba é também o preço, pago com dinheiros públicos: 1.648.200 euros por duas edições deste evento designado por ‘Noitada‘.

A organizadora é uma empresa com sede em Paço de Arcos, Oeiras — a New Sheet, Brand Activation —, que, depois de ter conseguido ‘vender’ o evento ao executivo camarário de Portimão em 2024, voltou a conseguir novo contrato este ano. Ambos os contratos foram adjudicados por ajuste directo, alegando-se direitos de autor.

O município realizou a primeiro edição de ‘Noitada Portimão’ nos dias 26 e 27 de Julho de 2024. / Foto: Captura de imagem a partir de vídeo de promoção do evento

O primeiro ajuste directo foi efectuado há um ano, tendo a autarquia presidida pelo socialista Álvaro Miguel Bila pago 738 mil euros (com IVA) pela organização do evento ‘Noitada’. O evento decorreu nos dias 26 e 27 de Julho de 2024, no âmbito das celebrações do centenário da cidade. O evento contou com seis palcos, 23 pontos de animação, 20 instalações de luz, e mais de 100 artistas itinerantes.

No palco principal, na Praça da República, actuaram os HMB, Pânico, Para Sempre Marco e Bateu Matou, entre outros, acompanhados de DJ sets como os de Nikky e do grupo Rebel Kidz Show, havendo também um palco dedicado ao fado. Para além da componente musical, o festival apostou fortemente na dimensão estética e sensorial, com espectáculos de video mapping a cada meia hora na Praça 1.º de Maio e laser shows sobre a Ponte Velha.

Este ano, voltou a repetir o ajuste directo à New Sheet, mas por um valor mais alto, de 910 mil euros. A segunda edição do evento vai decorrer nos próximos dias 25 e 26 de Julho, mas ainda não foi divulgado o programa.

A edição deste ano promete ter, segundo o caderno de encargos do procedimento, “uma mistura de arte, design, espectáculo, entretenimento e arquitetura que visa trazer vida ao centro da cidade durante duas noites, pretende criar uma movida pelo centro da cidade, numa rota que percorrerá as principais artérias e pontos de interesse no centro da cidade”.

A edição deste ano contará com “6 palcos, 23 pontos de animação na cidade, 20 instalações de luz, 80 artistas itinerantes e 100 artistas itinerantes”.

Em resposta a questões do PÁGINA UM, a autarquia fundamentou o facto de não ter efectuado concursos para a organização das duas ‘Noitadas’ com o facto de estarem em causa “direitos de propriedade intelectual”.

Foto: Captura de imagem a partir de vídeo de promoção do evento ‘Noitada 2024’

Segundo o gabinete de comunicação da autarquia, “o conceito do evento ‘A Noitada’ foi apresentado ao município de Portimão em março de 2024 por iniciativa da empresa New Sheet, Brand Activation Lda., que detém os direitos de propriedade intelectual sobre o mesmo, devidamente registados”. Explicou que, “face à originalidade do conceito e à titularidade exclusiva desses direitos, a única forma legalmente admissível de contratualizar a sua realização foi através de ajuste directo”.

Segundo o município, a primeira edição do evento “revelou-se um enorme sucesso, atraindo milhares de visitantes”. A autarquia afirma que decidiu fazer a segunda edição com base num estudo que encomendou a investigadores do CiTUR – Universidade do Algarve, o qual concluiu que “a primeira edição gerou uma nova receita direta na economia local de 2.641.407 euros, agregada entre residentes e visitantes”.

A autarquia garante que, “à semelhança de 2024, todas as despesas associadas à realização do evento “A Noitada 2025″ são da exclusiva responsabilidade da empresa promotora”, sendo o contrato concebido para o fornecimento de serviços do tipo ‘chave-na-mão’.

Mas como não há duas sem três, o município não exclui voltar a contratar esta empresa para nova ‘Noitada’ em 2026. A decisão vai depender do “novo estudo de impacto relativo à edição de 2025, cujos resultados fundamentarão a decisão quanto à eventual continuidade da colaboração com a entidade detentora do conceito”. Dependerá também das eleições autárquicas que se realizam este ano e que poderão ou não alterar a configuração do executivo daquela autarquia.

Seja como for, com mais ou menos luzes e artes cénicas, estamos perante um festival musical e de entretenimento, ou seja, existem dúvidas sobre se se aplica o conceito de propriedade intelectual.

Com efeito, a propriedade intelectual divide-se em dois ramos: a propriedade industrial, que compreende as invenções (patentes), as marcas, os desenhos e modelos industriais e as denominações de origem, enquanto os direitos de autor abrangem as obras literárias e artísticas.

Ora, segundo a Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC), não são protegidos e não podem ser registados os conceitos, as ideias, os processos, os sistemas e os métodos operacionais. Isto é, com a mesma ou outra denominação, um festival com música e outros espectáculos não pode ser considerado ‘propriedade’ exclusiva de uma empresa, logo não pode ser feito sem concorrência.

Álvaro Bila, presidente da autarquia de Portimão a divulgar no ano passada a Noitada.

Em todo o caso, estes dois grandes ajustes directos já ‘estão no papo’ da New Sheet. E não são os únicos. A autarquia fez outros dois ajustes directos no ano passada com esta empresa de Oeiras, embora com valores mais pequenos.

O primeiro, no valor de 98.400 euros (com IVA), consistiu na ‘aquisição de serviços para o projecto ‘100 anos, 100 sardinhas’. O outro, no montante de 81.075 euros foi justificado com a ‘aquisição de serviços para a contratação de artistas para animação musical ‘Celebrações Passagem de Ano 2024/2025′”.

Estes montantes estão mais em linha com os restantes contratos que a New Sheet obteve junto de outras autarquias. Desde 2019, quando conseguiu o primeiro contrato público, a empresa de Oeiras já obteve 40 contratos, no total. Com a excepção das duas edições de ‘Noitada’ com o município de Portimão, os valores dos restantes contratos oscilam entre os 6.300 euros e os 90.000 euros (sem IVA).

Ou seja, a autarquia de Portimão garantiu à New Sheet, em apenas dois contratos, cerca de 60% da facturação total que a empresa já registou junto de entidades públicas nos últimos sete anos. Isto em duas ‘noitadas’ de festa e animação. A ressaca, se houver, essa fica sempre para os contribuintes.

Portimão fez quatro ajustes directos com a New Sheet em menos de um ano. No total, o município pagou 1,8 milhões de euros à empresa. Fonte: Portal Base

Por fim, não se diga que falta animação a Portimão, e mais gastos públicos. Tanto no ano passado como este ano, pois dias passados do fim da ‘Noitada’ vem o Festival da Sardinha, com mais espectáculos ‘grátis’ que custam centenas de milhares de euros. A edição do ano passado ocorreu entre os dias 30 de Julho e 4 de Agosto, ou seja, começou três dias depois da ‘Noitada’.

Nesse caso, a autarquia foi mais ‘comedida’, e fez adjudicações com várias empresas,que custaram, no total, cerca de 350 mil euros com IVA.Mas, pelo menos foram seis dias inteiros de festa, que incluíram concertos com Aurea, Marisa Liz, Richie Campbell, Anjos e Delfins.

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