CORREIO MERCANTIL
E dos abismos, um Messias em Belém

“E veio dos abismos, como Jonas do ventre do peixe. E disse: dou-vos a esperança, dou-vos o futuro, dou-vos… as minhas bitáculas.”
— Livro de Santo Isaltino, capítulo I, versículo naval.
Confesso-vos, respeitáveis confreiras e veneráveis confrades da língua de Camões — vós que comungais comigo a liturgia das palavras lusas, essas mesmas que se esvaem agora em terras nipónicas, afogadas na subserviência idiomática ao dialecto mercantil dos paxás de Buckingham —, que também eu teria sido tentado a crer, como vós, se nascesse português. E não seria crer com aquela fé cega dos bem-aventurados ignorantes, mas naquela superstição arquetípica que vos habita os ossos desde Alcácer-Quibir: a de que um Homem virá.
Um só. Um redentor de pulso exacto e olhar tabelado, surgido das criptas bafientas, renascido do húmus de instituições mortas, como Lázaro chamado à luz por decreto do Orçamento. Empunhará ele, agora que sois uma democracia fatigada, a Constituição — e não como simples carta de leis, mas como bastão de Moisés, erguido contra o caos, pronto a fender as águas revoltas de uma Nação em delírio. E ouvi-lo-íeis a prometer, com voz de oráculo e pose de profeta, um Êxodo glorioso rumo a uma terra nunca vista — talvez prometida, talvez inventada — onde mana leite, mel… e relatórios trimestrais.

Ó Portugal! Ó terra ungida pela saudade e excomungada pela sorte! Ó trono vazio do Quinto Império! Ó tabernáculo de lamentos e visões proféticas! Tu, que sempre cantaste a História em modo subjuntivo! Que outro povo da Cristandade se entregou com tão mística devoção ao culto do Salvador Único? Que outra grei fez do messianismo programa de governação, e da espera do semideus regenerador um dogma da esperança colectiva? Que outro povo invoca ainda um Endovélico velado em névoas, um Apolo errante dos confins do Império, um Prometeu penitente que, em vez de roubar o fogo aos deuses, promete devolver a ordem, a justiça e o pão?
Houve tempos em que imploraste por reis com auréolas, monges de espada, padres de milagre, generais de verbo inflamado e botas de parada. Mas, no desânimo do mundo, agarrai-vos agora ao eco do antigo augúrio, à figura visionada entre vapores do destino, que há-de guiar, ainda e sempre, tudo e nada, por entre as brumas de um futuro adiado.
Mas a ânsia acabou. A espera terminou. A vigília cessou. E a profecia cumpriu-se. E a névoa dissipou-se. E o véu rasgou-se. E a figura ergueu-se.

Chegou-vos o Senhor Almirante — e nunca será bastante este vasto Ulisses lusitano sem Odisseia, que vos surge da espuma dos dias com salpicos de escumas patrióticas. Não veio Ele das praças das peixeiras, nem dos púlpitos inflamados dos parlamentares, nem dos areópagos solenes dos sábios cofiando tratados. Veio Ele da penumbra dos conveses, da vigília luminosa mas fria dos faróis, da cartografia muda das cambuzes — esses camarotes sem janelas onde se esquadrinham rotas, se limpam sextantes e se murmura, em voz baixa, o nome perdido da Pátria. Enfim, surgiu, ungido, porque urge “Honrar Portugal”.
Mas — questiono eu — perante este epifânico ressurgir das águas, que interessam, portanto, as reflexões sobre o que Ele vos lega? Nenhum interesse. Até porque nenhuma cogitação Ele fez, que se saiba. Que ideias vos deixou Ele antes de 2021?! Nenhuma — salvo, talvez, alguma ordem de serviço para verificar válvulas de pressão em escotilhas ou calibrar a bússola do refeitório. E depois? A sua contribuição para a República foi, até ao advento pandémico, tão audível como o silêncio de um torpedo no bojo de um couraçado já afundado — é certo. Nenhum livro, nenhum discurso digno de registo, nenhum gesto que deixasse memória — apenas o brilho disciplinado de um botão dourado, o aceno protocolar, e a pontualidade com que assinava folhas de ponto ou calibrava o rumo da inércia. Porém, o Senhor Almirante é Ele.
Dir-vos-ei mesmo, num raro acesso de generosidade conceptual, que Ele encarna a mais discreta e eficaz das funções públicas: a do inútil necessário. Foi Ele uma peça imóvel da engrenagem, a ausência que garantiu estabilidade, o silêncio que evitou ruído, o peso morto que impediu o balouçar excessivo da nau. Não atrapalhou, não inspirou, não corrompeu. Foi Ele um fantasma benévolo, uma nulidade funcional, um burocrata elevado à dignidade de símbolo — o símbolo, aliás, da esperança nacional de ser do nada, que submerge a Pátria, que emerja a Salvação.

Mas não vos precipiteis, ó anti-Cristos, aquele que não apreciam o Senhor Almirante, nas críticas! Há uma grandeza no nada. Não criou Deus o mundo a partir do vazio? Talvez o Senhor Almirante vos proponha o mesmo. O seu discurso de apresentação da candidatura a Belém — sem corda ao pescoço e com a gravidade de um Isaías com galões — foi uma ex nihilo presidencial. Teríeis, então, um presidente-filósofo do silêncio, um Kant do eco surdo, um Pascal da calmaria, um Heidegger do vácuo institucional. Um desses raríssimos homens cuja força reside no não-dito, na não-acção, no não-ser — um redentor por omissão, que vos guiará, com mão invisível, pelas grutas sagradas da indiferença. E o país aplaude, porque sempre gostou de gente que aparece do nada, se apresenta como tudo, e depois lidera como ninguém. Literalmente. Como ninguém — ou melhor, como um zé-ninguém.
Mereceis a salvação por essa via: pela via do abismo sereno, onde nada acontece — e por isso tudo parece estar em paz. Porque só Ele vos redimirá da guerra que voltou ao coração da Europa, estilhaçando a ilusão de uma paz perpétua. Só Ele vos libertará do Ocidente que vacila, que se fracciona, que perde o rumo como nau sem astrolábio. E só Ele, hélas, poderá amparar-vos na vertigem de um Império em declínio, onde os Estados Unidos já não oferecem segurança, mas lançam incerteza — como deuses fatigados que abandonaram o panteão e deixaram as criaturas entregues ao seu próprio espanto.
De resto, o discurso d’Ele é um tratado de evangelismo secular, de homilias sobre esperança, de epístolas sobre confiança e de salmos sobre coesão nacional. Falou-vos Ele da guerra na Europa com a solenidade de um profeta. Falou-vos da Economia Global com o pavor de Jeremias. Só Lhe faltou um Apocalipse com besta de sete cabeças para que a sua candidatura se venha a converter em Revelação.

“Estou aqui porque amo o país”, anunciou-vos, com o fervor de um mártir. “Estou aqui porque jurei dar a vida pela Pátria”, repetiu, como quem deseja vender-vos um sacrifício no mercado dos votos. E vós, pobres, comovestes-vos. Sois um povo de romaria e lágrimas fáceis — bem sei. Basta-vos um toque de clarim e três substantivos abstractos para vos comover.
Mas deixai que vos confesse um segredo, vós que ainda respirais: a República, por mais cerimónias que exiba, não é um navio. Não se governa uma Pátria com bússolas e disciplinas de caserna. Isso é coisa de palavras e de ideias, de debate e de dissenso — não de quartéis e bússolas.
O Senhor Almirante falou-vos da sua coragem, da sua entrega, do seu passado? Invocou o seu percurso sem mácula, a sua missão cumprida no seio da Armada, e recordou-vos, com gravidade quase litúrgica, os dias de Pedrógão, o combate à pandemia, a logística das vacinas, a gestão das cinzas e dos cadáveres — que, sim, exigiram frieza, método e um certo fatalismo operacional?

Muito bem. Honrai-lhe o serviço, agradecei-lhe o zelo. Mas que vos disse Ele do presente? Que palavra lhe ouvistes sobre a liberdade em erosão, sobre a corrupção que escorre pelos corredores do Estado como água de esgoto em palácio barroco? Que disse dos juízes omnipotentes, da bandalheira nos concursos públicos, da promiscuidade constante entre o capital e os partidos que fingem combatê-lo enquanto lhe dão guarida?
Ah, nada. Silêncio. Um silêncio denso, expectante, calculado — como o de quem avança coberto por névoas e respaldado por prestígios difusos.
Mas não temais: prometeu-vos que será presidente capaz de vos unir, de vos motivar, de vos devolver o sentido da esperança. Que será consciência e exemplo. Que será estável, confiável, atento. Que usará a palavra com contenção, com substância, com propriedade. Que será árbitro e moderador — enfim, um Sansão sem cabelo, um César sem senado, um Prometeu sem fogo, embora com traje passado a ferro.
Também Alexandre prometeu fundar uma nova Babilónia — e morreu febril numa tenda. Também Aarão moldou um bezerro para unir o povo — e foi desmentido pela montanha. Também Cassandra predisse o futuro — e foi condenada a não ser ouvida.

No Senhor Almirante tudo se resume a uma enumeração de males sem explicação e a uma avalanche de promessas sem plano. A retórica — disse Platão, ou porventura gostaria de o ter dito — é a arte de persuadir sem saber. É o caso. A retórica surge aqui envernizada com a pureza de uma túnica que jamais cheirou pólvora, nem viu lama, e que parece ter emergido directamente da névoa cerimonial de um submarino atracado.
Não confundais patriotismo com programa. Nem experiência militar com pensamento político. Os generais — sei-o pelo que vi e pelo que a História confirma — quando aspiram ao trono, costumam vir cheios de passado e vazios de futuro. O Senhor Almirante grita isso sem dizer uma palavra. E embora não duvide da honra do homem — a barba parece sincera, e há uma certa nobreza no seu olhar naval —, temo, porém, que Portugal precise, neste momento, não de mais honra, mas de mais ideias. Ou, pelo menos, de melhores.
Poderia estender-me, mas receio ser acusado de marinofobia retórica, ou de heresia contra a armada dos virtuosos. Deixai-me então concluir com uma exortação bíblica, que tão bem serve à ocasião: “Que não se deite vinho novo em odres velhos.” E Portugal, minhas dilectas senhoras e meus preferidos senhores, precisa de vinho novo. De pensamento fresco. De menos fardas e mais livros. De menos vocação para a obediência, e mais coragem para a dúvida.

Assim, e com a vossa indulgente permissão, retiro-me novamente para o meu túmulo literário. Se voltardes a precisar de um epitáfio para a política portuguesa, sabei que o escreverei de bom grado. Mas não me peçais, por piedade, que elogie almirantes sebastianistas com vocação de Moisés.
Glosando o Senhor Almirante, na Gare Marítima, pois então: “Viva a ironia. Viva a lucidez. Viva Portugal.”
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
Hoje (quase) não houve necessidade de produzir ilustrações com recurso a inteligência artificial: a realidade revelada pela associação Honrar Portugal suplanta a ficção.