TEM DIAS

Pausas 

Author avatar
Sílvia Quinteiro|14/06/2025

Olhos sorridentes, mãos roliças e voz de colo, Vivina era professora primária há tanto tempo que já não se lembrava de não o ser. Adorava a sua profissão. Nunca desejara outra coisa.

Contudo, de repente, começou a perguntar-se se, ao ter escolhido tão cedo o ensino, não teria deixado de considerar outras possibilidades. Se aquela decisão precoce não teria silenciado outros talentos.

apple, books, classroom, red apple, fresh apple, fresh fruit, ripe, ripe apple, stack of books, delicious, fruit, apple, apple, apple, apple, apple, books

E foi por esses dias que se deparou com um anúncio que lhe chamou a atenção: uma oficina de narração. Em horário pós-laboral, conduzida por uma conhecida formadora — era exatamente o que procurava. Inscreveu-se, por isso, sem hesitar.

As participantes eram todas mulheres, e todas mais ou menos da sua idade. Nas semanas seguintes, aprenderam técnicas de respiração, memorização e expressão. Abraçaram a experiência com uma alegria quase infantil — pelo menos até ao momento em que perceberam que a sessão final consistiria num sarau. Assustador, sim, mas também desafiante.

Cada uma recebeu um texto distinto. Vivina foi presenteada com um encantador conto de Clarice Lispector: Felicidade clandestina. Leu-o uma primeira vez e sentiu, desde logo, aquele texto como seu. Receou, todavia, não ser capaz de o memorizar. Ainda assim, agarrou a oportunidade de exercitar a memória, que há muito andava adormecida. Culpava a menopausa. As malfadadas alterações hormonais. O que mais poderia ser? Mas não estava disposta a resignar-se.

photo of person holding book near textile

Durante os dias que antecederam o grande momento, as mulheres ensaiaram como se a própria vida dependesse de decorarem os textos que lhes haviam cabido em sorte. Partilharam entre si as estratégias de cada uma, e concluíram que a palavra de ordem era repetição. Vivina disse o texto vezes sem conta. Ensinou Clarice à gata, aos tachos, às plantas do jardim, aos azulejos do chuveiro, à roupa no estendal. Disse, repetiu, tropeçou, recomeçou, melhorou… Gravou-se, ouviu-se, corrigiu, gravou de novo.

Chegou a noite. Uma a uma, as mulheres vestiram os textos como uma segunda pele e exibiram-nos num desfile de palavras. Confiantes, orgulhosas de si mesmas e das companheiras de aventura. Vivina reconhecia, nos olhos esbugalhados e nos lábios cerrados da formadora, a ansiedade que ela própria sentia nas festas de final de ano escolar.

A ordem alfabética atirou-a para o final da sessão. Ouviu, com genuíno prazer, as suas colegas. Vibrou com o êxito de cada uma — palavras ondulantes, vozes expressivas, gestos teatrais.

silhouette of person standing near white textile

Os aplausos e comentários calorosos, um bónus recebido com regozijo:

— Que presença!
— Que capacidade de envolver!
— Que emoção na voz!

Chegada a sua vez, fez-se um breve silêncio. Alguém comentou:

— As suas pausas… as suas pausas são divinas!

Vivina agradeceu com um sorriso e ficou em silêncio, a digerir. As pausas. Mal podia acreditar que, depois de tanto empenho e dedicação, lhe estavam a elogiar as pausas.

Nesse momento, lembrou-se de um menino do primeiro ano, a quem tinha um dia perguntado se estava a gostar da escola. Perante a resposta positiva do aluno, Vivina, entusiasmada, perguntou-lhe do que mais gostava.

turned on gray alarm clock displaying 10:11

O pequeno pôs um ar pensativo e sério e, depois de uns segundos de reflexão, respondeu:

— Dos intervalos.

E agora, tantos anos depois, lá estava ela a proporcionar bons momentos a quem deles desfrutava… nas pausas.
O seu grande talento era afinal o de se fazer ausente — no momento certo e com elegância, queria acreditar.

Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

Partilhe esta notícia nas redes sociais.