JORNAL PÚBLICO 'SAFA-SE' DE MULTA ATÉ 250 MIL EUROS
Entidade Reguladora para a Comunicação Social perdoa em segredo multa por publicidade à Tabaqueira

A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), actualmente liderado por Helena Sousa, recusa prestar esclarecimentos sobre os motivos que levaram ao arquivamento de forma secreta de um processo de contra-ordenação instaurado contra o jornal Público, por alegada violação da Lei do Tabaco, resultante da publicação de conteúdos promocionais pagos pela Tabaqueira. A multa poderia atingir um máximo de 250 mil euros.
A decisão do Conselho Regulador foi tomada em Agosto do ano passado, mas só agora a ERC revelou este facto depois de ter sido questionada pelo PÁGINA UM. Ao contrário do que é exigido por lei, mesmo nos casos de arquivamento, a ERC não tomou a decisão por deliberação, que é obrigatoriamente pública, e os motivos desta decisão permanece envolta em segredo.

Porém, indícios de infracção grave tenham sido anteriormente reconhecidos pelo próprio regulador numa prévia deliberação por unanimidade em Novembro de 2022, num mandato anterior à de Helena Sousa, uma professora de Ciências de Comunicação sem qualquer experiência jurídica nem particular sensibilidade sobre as obrigações legais em matéria de regulação administrativa e contra-ordenacional.
Quando questionada pelo PÁGINA UM sobre a base legal e factual para o arquivamento, a ERC remeteu apenas para uma “análise preliminar” da sua Unidade de Contra-Ordenação, recusando, no entanto, enviar o documento. Em alternativa, a entidade sugeriu que fosse apresentado um requerimento ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA).
No entanto, sabe-se que a própria ERC tem, em múltiplas ocasiões, recusado fornecer documentos mesmo após requerimentos formais, o que tem obrigado o PÁGINA UM a apresentar queixas sucessivas à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) ou a recorrer aos tribunais administrativos — onde, mesmo após decisões desfavoráveis, o regulador insiste em apresentar recursos. Além disso, sendo a ERC a entidade que constitucionalmente tem a função de promover o acesso facilitado dos jornalistas às fontes de informação, não faz sentido que se recuse reiteradamente a satisfazer um pedido concreto e simples sob um acto administrativo.

Convém referir, contudo, que a alegada “análise preliminar” da Unidade de Contra-Ordenação não faz qualquer sentido na fase em que se encontrava o processo de contra-ordenação – que fora aberto por uma deliberação e que teria de ser concluído com outra deliberação –, uma vez que existem normas legais a seguir. Nessa deliberação de Novembro de 2022, a ERC tinha sido taxativa ao concluir que o texto promocional do Público, ademais paga pela Tabaqueira, constituía “uma contra-ordenação económica muito grave”.
Com efeito, ao arquivar agora um processo (que abrira) sem qualquer deliberação formal — como seria obrigatório —, o Conselho Regulador da ERC arrisca estar a contornar normas essenciais, o que fragiliza juridicamente a decisão tomada. Mais grave ainda: ao evitar uma decisão formal e pública, impede-se o escrutínio dos cidadãos e inviabiliza-se uma eventual contestação judicial, deixando no ar suspeitas de favorecimento ou, no mínimo, de falta de rigor institucional.
Saliente-se que este caso remonta ao início de Outubro de 2022, quando o jornal Público publicou um conteúdo comercial da Tabaqueira, coincidente com o lançamento do sistema de tabaco aquecido por indução IQOS Iluma. O artigo, publicitado como “conteúdo comercial”, elogiava a tecnologia da nova geração da Philip Morris, empresa-mãe da Tabaqueira, e era acompanhado de uma imagens de carácter claramente publicitário, incluindo fotografia do director da Tabaqueira com um novo produto de tabaco lançado poucos dias antes.

Como o PÁGINA UM noticiou a 14 de Outubro de 2022, o regulador confirmara ter aberto um procedimento contra o jornal do Grupo Sonae por possível infracção da Lei n.º 37/2007, nomeadamente do artigo 14.º-E — que proíbe publicidade e patrocínio a cigarros electrónicos e recargas — e do artigo 18.º, relativo ao patrocínio, considerando tratar-se de “uma contra-ordenação económica muito grave”.
Um mês mais tarde, a própria ERC, ainda sob o mandato do anterior presidente, Sebastião Póvoas, sustentou, através de deliberação formal, que o conteúdo em causa era inequivocamente promocional, salientando que “estes conteúdos visam um posicionamento das marcas e dos produtos, através de uma prática social encapotada, que não revela os malefícios dos produtos”, ao mesmo tempo que reforçava “a imagem de uma empresa socialmente consciente e atenta aos potenciais consumidores”. O regulador reiterava que, mesmo não se tratando de publicidade tradicional, o artigo promovia “o engagement do leitor com a marca”, o que se enquadraria numa violação clara da lei.
Na resposta enviada ao regulador, o Público alegava então que os conteúdos patrocinados “não traduzem qualquer incentivo, publicidade ou mesmo promoção aos produtos de tabaco”, sublinhando que o objectivo seria “potenciar a notoriedade e posicionamento da marca ‘Tabaqueira’ enquanto entidade promotora de inovação tecnológica e do desenvolvimento sustentável”. A ERC, porém, descartou em 2022 esta linha de argumentação, recordando que não é admissível dissociar o conteúdo promocional do patrocínio por uma empresa cuja actividade é precisamente a venda de produtos de tabaco — sendo esse tipo de associação expressamente proibido pela legislação desde 2005 para a imprensa escrita.

Apesar de todos estes elementos, e das anteriores considerações desfavoráveis ao Público constantes no procedimento, a ERC optou deixou o processo de contra-ordenação em ‘banho-maria’ durante mais de 20 meses e em Agosto do ano passado tomou a decisão de arquivar o processo mas sem qualquer deliberação e sem disponibilizar o parecer técnico que suportaria tal decisão.
Recorde-se que, na mesma semana em que o processo contra o Público foi anunciado, o regulador abriu igualmente processos de contra-ordenação ao grupo Global Media, por quatro inserções patrocinadas pela Tabaqueira: duas no Jornal de Notícias, uma no Diário de Notícias e outra no Dinheiro Vivo. Segundo a ERC, esse processo está na “fase final de tramitação”. Um outro porcesso similart, também de 2022, instaurado contra a Trust in News – que detém, entre outras publicações, a revista Visão – estará ainda a decorrer a fase “para apresentação da defesa escrita”.
A atitude da ERC em esquecer — e praticamente apagar — um caso flagrante de violação da Lei do Tabaco surge num momento em que a indústria tabaqueira, com a Philip Morris (dona da Tabaqueira) como caso paradigmático, adopta uma estratégia mais subtil e insidiosa: pagar conteúdos comerciais em órgãos de comunicação social — e até participar em podcasts, como sucedeu na semana passada no jornal Sol — para se apresentar como promotora de sustentabilidade e inovação tecnológica.

Tudo isto enquanto, sub-repticiamente, promove produtos de tabaco sem combustão, numa tentativa clara de contornar o espírito e a letra da Lei do Tabaco de 2005.
Neste contexto, o apagamento intencional de um processo de contra-ordenação e a recusa em divulgar de forma voluntária os seus fundamentos à imprensa revelam sinais preocupantes de opacidade por parte do actual Conselho Regulador da ERC — um caso lamentável de sinuosidade institucional, que mina a confiança pública e compromete o papel do regulador como garante da legalidade e da transparência no sector da comunicação social.