LUÍS DELGADO INVESTIU 10 MIL EUROS E TEVE UM RETORNO SALARIAL DE 3.250% EM DOIS ANOS

Gerentes da Trust in News andaram a ganhar salários de luxo

Author avatar
Elisabete Tavares e Pedro Almeida Vieira|20/06/2025

O que nasce torto tarde ou nunca se endireita. No caso da Trust in News (TIN), dona das revistas Visão e Exame, o célebre ditado popular parece estar a confirmar-se, já que a empresa está em crise há vários anos, encontra-se formalmente em processo de insolvência, mas a laborar, apesar de os seus trabalhadores terem convocado a partir de hoje uma greve por tempo indeterminado. Salários e subsídios em atraso regressaram depois de meses de intervenção de um administrador judicial, mas nas últimas semanas houve um volte-face, com o regresso à gerência da TIN do seu proprietário único: Luís Delgado.

O regresso do antigo jornalista, que em 2018 comprou mais de uma dezena de títulos à Impresa de Pinto Balsemão, não deixa de ser surpreendente, porque a quantidade de calotes que deixou em apenas seis anos de existência é colossal. Mas também espantoso é saber-se agora, através de uma investigação do PÁGINA UM, que durante vários anos Luís Delgado distribuiu, para si e para os outros dois gerentes da TIN, salários de luxo, sobretudo atendendo a tratar-se de uma empresa com um capital social de apenas 10 mil euros.

Luís Delgado é o sócio único da sua sociedade unipessoal Trust in News, dona da Visão. Está actualmente a cumprir uma pena suspensa de cinco anos pelo crime de abuso de confiança fiscal na forma agravada, sob condição de pagamento das dívidas até ao final de 2029, mas arrisca outras condenações. / Foto: D.R.

Apesar de ter sido fundada como empresa unipessoal, com um investimento pessoal de apenas 10.000 euros, Luís Delgado decidiu atribuir a si mesmo um salário de 12 mil euros brutos. Ou seja, ao fim de um mês de passar a deter as antigas revistas de Balsemão já tinha lucro pessoal.

Os outros dois gerentes da TIN também não se saíram mal financeiramente. Cláudia Serra Campos foi ganhar 11 mil euros mensais. Luís Filipe Passadouro levou para casa 10 mil euros por mês. No ano de 2019, a tripla gerência da TIN chegou a custar 462.000 euros à empresa. Qualquer um dos gestores chegou a ganhar mais do que os 106.400 euros brutos anuais recebidos pelo patriarca da família Balsemão na presidência do grupo Impresa. E, no conjunto, os rendimentos dos gerentes da TIN eram superiores aos encargos remuneratórios, incluindo despesas de representação, de toda a administração da RTP, que gere um orçamento de mais de 200 milhões de euros.

Delgado, que completa em Novembro os 70 anos, está agora reformado e, desde 2022, aufere uma pensão de reforma. Nos dois primeiros anos de existência da TIN, Delgado recebeu da sua empresa unipessoal um total de 334.909 euros em salários, segundo documentos consultados pelo PÁGINA UM e que constam de um processo judicial que levou à condenação dos gerentes da empresa de media por abuso de confiança fiscal na forma agravada. Ou seja, com um investimento de 10 mil euros, numa empresa que foi coleccionando passivo, que agora ultrapassa os 30 milhões de euros, Luís Delgado conseguiu, apenas através de salários, um retorno de 3.250%. Leia-se bem: um retorno de três mil, duzentos e cinquenta por cento.

Estes valores auferidos em 2018 e 2019 por Luís Delgado na sua TIN contrastam com os rendimentos de trabalho dependente que declarara nos dois anos anteriores. No processo criminal que levou à condenação dos três gerentes da TIN por dívidas ao Fisco, refere-se que Delgado auferira nos dois anos anteriores à criação da sua empresa apenas “15.750 euros e 25.000 euros de rendimentos” brutos de trabalho dependente. Tanto em 2018 como em 2019, o salário anual de Delgado rondou, na TIN, os 168.000 euros, o que corresponde a 12.000 euros por mês, acrescido dos subsídios de férias e de Natal, segundo os documentos consultados pelo PÁGINA UM. Não estão incluídas outras despesas pessoais suportadas pela empresa.

Em 2020, quando a empresa já tinha os seus principais títulos penhorados ao Fisco e à Segurança Social, Delgado baixou a sua remuneração para os 1.700 euros mensais e nesse ano ganhou ‘apenas’ 24.000 euros na TIN. Até 2022, pelo menos, não ganhou mais nenhum vencimento na sua empresa unipessoal, mas, no global, em três anos, Delgado arrecadou 358.909 euros em vencimentos pagos pela empresa de media.

Porém, os outros dois gerentes da TIN — Cláudia Serra Campos e Luís Filipe Passadouro — mantiveram salários de luxo para uma empresa que acumulava dívidas de todo o quilate, incluindo ao Fisco, à Segurança Social. Note-se que em todos os anos em que apresentaram contas, a TIN omitiu as remunerações dos seus gerentes na Informação Empresarial Simplificada (IES), incumprindo o dever de rigor, não permitindo assim que se conhecessem, até agora, os seus salários de luxo.

Luís Filipe Passadouro renunciou ao cargo de gerente da TIN em Abril de 2024. Entre 2018 e 2022 ganhou 640 mil euros na empresa. Está também a cumprir uma pena suspensa de 5 anos até ao final de 2029 sob condição de pagamento de uma dívida fiscal da TIN. Mas ainda arrisca outras condenações por outros crimes fiscais e falha no pagamento de contribuições à Segurança Social. Na sua página na rede social LinkedIn indica estar “à procura de novos desafios e oportunidades”.(Foto: D.R.)

De acordo com os documentos consultados pelo PÁGINA UM, Cláudia Serra Campos ganhou em 2018 um salário de 10.928 euros mensais, acrescido dos subsídios de férias e de Natal. Em 2019, auferiu de um salário de 11.000 euros por mês, valor que se manteve, pelo menos, até ao final de 2022. No global, esta gerente da TIN, que ainda se mantém em funções, levou para casa 769.000 euros em apenas cinco anos.

A gestora tem sido uma aliada de confiança de Delgado há, pelo menos, 25 anos, depois de ter começado a sua actividade profissional na Volkswagen-Autoeuropa, como relações públicas. Em 2000, iniciou funções como diretora da Caneta Electrónica, empresa proprietária do Diário Digital, um jornal online fundado por Luís Delgado, tendo passado a administradora-delegada e sócia em 2003.

No ano seguinte, tornou-se assessora de administração da Lusomundo Media, cargo em que se manteve até 2005. Depois disso, voltou a aliar-se a Delgado, como sócia fundadora e gerente-delegada das empresas Capital da Escrita e MC-Mercados da Capital, proprietária da Revista Time Out em Portugal, e que explorou o Mercado da Ribeira em Lisboa..

O PÁGINA UM consultou o primeiro processo judicial contra os gerentes da TIN, que teve início em 2021, e que viria a resultar na sua condenação. A condenação pelo Tribunal Judicial de Lisboa Oeste surgiu em Abril de 2024 e foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa em Outubro do mesmo ano. Foi só depois de serem condenados, na primeira instância, a uma pena de prisão de 2 anos e um mês, suspensa por 5 anos mediante pagamento das dívidas, que os gerentes da TIN avançaram para o Processo Especial de Revitalização da TIN e, posteriormente, para a insolvência da empresa dona da Visão. / Foto: PÁGINA UM

Quanto a Luís Filipe Passadouro — que renunciou ao cargo de gerente em 15 de Abril de 2023, apesar de ter sido registado apenas no final do ano passado —, entrou na TIN com um vencimento mensal de 10.000 euros, o que perfaz um rendimento bruto anual de 140.000 euros. Em 2021, recebeu ‘apenas’ 136.000 euros e no ano seguinte 84.000 euros. Assim, no total, em cinco anos, Passadouro amealhou 640 mil euros em salários na dona da Visão.

Este gestor já tinha trabalhado numa outra empresa de media, a luso-angolana Newshold, liderada pelo polémico empresário Álvaro Sobrinho, ex-presidente do BES Angola. Esta empresa, que foi entretanto encerrada, era detentora dos jornais i e Sol. Passadouro foi administrador financeiro da Newshold entre Julho de 2012 e Setembro de 2014, segundo informações que constam do seu perfil na rede social LinkedIn. Entre Novembro de 2016 e Novembro de 2017, assumiu a função de director-geral de novo conteúdo na mesma empresa de media.

Antes de ingressar na Newshold, Luís Filipe Passadouro trabalhou durante cinco anos no grupo angolano Finertec, onde foi ‘colega’ de Miguel Relvas e também de António Maurício, antigo vice-presidente da Fundação Eduardo dos Santos. Curiosamente, na altura em que Relvas foi ministro-adjunto e dos Assuntos Parlamentares e se ponderou a privatização da RTP, a Newshold chegou a surgir como interessada em ficar com a empresa que detém o serviço público de televisão.

Luís Delgado e Francisco Pedro Balsemão, presidente-executivo da Impresa, em 2018, na assinatura do acordo de venda do portfólio de publicações que incluía a Visão e a Exame. Na altura, o negócio ‘salvou’ a Impresa, que se encontrava em dificuldades financeiras, depois de ter falhado uma emissão de obrigações, e precisa livrar-se de activos ‘tóxicos’ da Impresa Publishing. / Foto: D.R.

Por outro lado, o antigo patrão de Passadouro, Álvaro Sobrinho — que é arguido num processo em que é acusado de ter roubado milhões do BESA —, também estará por detrás do World Opportunity Fund, o fundo misterioso que se tornou o principal accionista do Grupo Global Media em 2023, segundo noticiou recentemente o Expresso.

Apesar do regresso à TIN de Luís Delgado e de Cláudia Serra Campos, tanto eles como Luís Filipe Passadouro têm já cadastro, estando formalmente a cumprir uma pena de prisão efectiva suspensa por cinco anos se pagarem uma dívida fiscal de cerca de 830 mil euros, uma pequena parte do que agora devem à Autoridade Tributária e também à Segurança Social. Significa, em termos práticos, se até ao início de 2030 pagarem o IVA em falta entre Janeiro e Março de 2020 e entre Setembro de 2020 e Abril de 2021, estarão livres da prisão. Saliente-se que, neste processo, a TIN foi condenada a uma pena de multa de 900 dias, convertida em 13.500 euros.

De acordo com o processo que correu no Tribunal Judicial de Lisboa Oeste (Oeiras), cuja sentença foi confirmada pelo Tribunal da Relação, Luís Delgado confessou os crimes e afirmou ser o responsável exclusivo pelo não pagamento do IVA. Mas o Tribunal considerou não ter ficado provada essa versão. Segundo a sentença, “os arguidos agiram sempre de modo idêntico, animados pela facilidade de acesso às quantias em causa e pela circunstância de a sua actuação não ter sido prontamente detectada e sancionada pelas entidades competentes”, isto é, pela Autoridade Tributária. Aliás, mostra-se insólito que o Fisco tenha permitido, como permitiu, que uma empresa da dimensão da TIN, mas com um capital social de apenas 10 mil euros, acumulasse dívidas fiscais de superam actualmente os sete milhões de euros.

Revista Visão (Foto: PÁGINA UM)

Na sentença destaca-se ainda que “os arguidos agiram livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida”. Mais adianta que “os factos descritivos da consciência da ilicitude e do dolo directo com que os arguidos agiram, julgam-se provados, porquanto a sociedade comercial arguida tinha contabilidade organizada e havia sido alertada para a necessidade de proceder à entrega dos tributos declarados e para as consequências legais da omissão dessas prestações”.

O tribunal também não teve dúvidas da responsabilidade factual de Luís Delgado e dos gerentes por si escolhidos. “As pessoas singulares arguidas são empresários/gestores que lograram construir e comandar um grupo de comunicação social de relevante dimensão”, salienta a sentença, acrescentando que, apesar das “dificuldades económicas do sector da comunicação [social] e a revitalização dessa empresa”, conseguiram “tirar proveito de fluxos monetários na ordem de grandeza das dezenas/centenas de milhar de euros”. E conclui: “daí que terão ao longo da vida forçosamente constituído pecúlio e formado património equivalente, pelo menos, ao valor em dívida”. Em suma, os gerentes, em vez de pagarem ao Estado, decidiram pagarem-se a si próprios.

Mas a sentença falha, aparentemente, num ponto fulcral, porque refere que a TIN estava já a conseguir cumprir os pagamentos à Autoridade Tributária, apontando mesmo que “se crê que no período de suspensão da execução da pena de prisão prossiga e consolide a sua reestruturação”. Ora, como se sabe, a TIN foi acumulando mais e mais dívidas, conforme o PÁGINA UM revelou em primeira-mão em Julho de 2023, tanto ao Fisco como a outros credores, atingindo uma dívida global superior a 30 milhões de euros.

Processo criminal consultado pelo PÁGINA UM na passada quarta-feira.

Saliente-se que a condenação dos gerentes da TIN em primeira instância ocorreu em 18 de Abril de 2024, e essa decisão terá espoletado o Processo Especial de Revitalização (PER) da TIN, que foi iniciado logo no mês seguinte. Essa decisão foi estratégica para Luís Delgado parar alguns processos em tribunal, incluindo outros do Fisco e da Segurança Social, bem como de credores diversos.

Porém, este PER acabou ‘chumbado’, porque, de forma intencional ou não, a gerência da TIN faltou às promessas e continuou sem cumprir pagamentos regulares ao Fisco e à Segurança Social. E avançou-se para a insolvência, que somente não seguiu para a liquidação porque se anda, de promessa em promessa, a adiar aquilo que parece inevitável, enquanto as dívidas, incluindo ao Estado, estarão a aumentar.

Independentemente do regresso de Luís Delgado aos comandos da TIN, numa situação já próxima do descalabro total com a greve dos trabalhadores, em que a insolvência é o objectivo final, há mais processos judiciais que continuam a ameaçar os gerentes. Por exemplo, corre desde Fevereiro deste ano, um recurso de Luís Delgado, Cláudia Serra Campos e Luís Mendes Passadouro junto do Tribunal Tributário para tentar contrariar uma execução do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social por dívidas da Trust in News no montante de mais de 9,4 milhões de euros por não pagamento de comparticipações à Segurança Social.

Apesar de a TIN estar em processo de insolvência, situação que visa encontrar uma solução menos lesiva para os credores – que pode passar pela venda de revistas a potenciais interessados -, a simples liquidação só não aconteceu ainda porque Luís Delgado prometeu, como sócio único da TIN, injectar 1,5 milhões de euros na sociedade. Mas não se sabe como Delgado vai arranjar a verba, já que nenhuma instituição bancária estará interessada em financiar uma empresa de 10 mil euros de capital social, mais de 30 milhões de euros de passivo, em falência técnica e com sinais de ‘engenharia financeira’ que serviram para esconder prejuízos de milhões.

Além da Autoridade Tributária, também a Segurança Social avançou para tribunal e processou os gerentes da TIN por contribuições não pagas. Em causa, está um crime de abuso de confiança similar ao que levou à condenação a pena de prisão, suspensa por cinco anos, por dívidas ao Fisco. Além disso, haverá outros processos na Justiça por dívidas fiscais da TIN e processos de execução por outros credores. / Foto: D.R.

Mostra-se, aliás, bastante estranho que a Autoridade Tributária e a Segurança Social tenham aprovado um plano de Delgado quando subsistem sérias dúvidas sobre a verdadeira situação das contas da TIN, incluindo as do ano passado que ainda não são conhecidas.

Uma das principais dúvidas contabilísticas da TIN prende-se com a rubrica ‘Outras contas a receber’, inscrita nos activos com o valor de cerca de 14 milhões de euros, que Luís Delgado terá atribuído a receitas futuras, mas que aumentou ao mesmo ritmo das dívidas ao Estado. Assim, persistem dúvidas quanto à sua correspondência como activo real, ou seja, que possa efectivamente ser convertido em receitas — e, em última instância, em dinheiro. Caso não tenha existência real, esta rubrica terá apenas servido para ‘embelezar’, nos últimos anos, a calamitosa situação financeira do grupo, uma vez que evitava o reconhecimento de resultados líquidos negativos da ordem dos milhões de euros.

À estranha relação da TIN com a Autoridade Tributária e a Segurança Social – que permitiram um acumular de dívidas assombroso para a dimensão do capital social da empresa – junta-se também o empréstimo de cerca de 3,5 milhões de euros concedido pelo Novo Banco e pelas inúmeras renegociações do contrato feito com a Impresa.

Foto: D.R.

Aliás, o grupo liderado pela família Balsemão, dona da SIC e do Expresso, nunca revelou de forma clara, nem nas contas da Impresa, quanto foi efectivamente pago por Luís Delgado, apesar de o negócio em 2018 ter sido anunciado como valendo 10,2 milhões de euros. No final desse ano, a TIN admitia que ainda tinha uma dívida de 6,2 milhões de euros à Impresa – ou seja, terá pagado no primeiro ano, quatro milhões de euros, que terá sido de um empréstimo do Novo Banco. A instituição bancária ficou a ‘arder’ em cerca de 3,5 milhões de euros, que ainda não foram pagos por Delgado.

De mistério em mistério, os trabalhadores que ainda resistem na empresa de media estão numa situação mais do que precária, temendo pelo seu futuro. Para já, o seu presente está nas mãos do mesmo gerente que os conduziu até aqui.

N.D. Há quase dois anos, o PÁGINA UM foi o primeiro órgão de comunicação social, e durante muitos meses o único, a alertar para a dívida astronómica da TIN ao Estado e a expor a situação financeira grave em que a empresa de encontrava. Na altura, Mafalda Anjos, então directora da Visão, rotulou os artigos do PÁGINA UM como “fantasiosos”. Leia todas as notícias e artigos sobre a crise na TIN (AQUIAQUI AQUI). Hoje, a manutenção de um grupo de media nestas condições é indigno de um país decente, e o regresso de Luís Delgado um ultraje para o jornalismo e para a decência.

Partilhe esta notícia nas redes sociais.