A DERIVA DOS CONTINENTES

O mito de Sísifo

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Clara Pinto Correia|22/06/2025

Tem alguma sugestão a fazer?” – perguntei—lhe,

Tem de largar o caso, Mr. Holmes, – disse-me, meneando a cabeça. “Tem de o largar, você sabe disso.”

Sir Arthur Conan Doyle

O PROBLEMA FINAL in MEMÓRIAS DE SHERLOCK HOLMES


Esta história intitulada O MITO DE SÍSIFO[1], também podia chamar-se L’HOMME[2] de Renè Descartes.

Pelas razões que vamos explorar a seguir, mereceria igualmente o título mais lindo e arrepiante do mundo, aquele que reza AUNQUE SEPA LOS CAMINOS YO NUNCA LLEGARE A CORDOBA[3]


Há que ver, antes de mais nada, que a culpa é toda nossa: fomos nós quem desligou aquele SAPERE AUDE[4] que dantes parecia tão evidente.

E não fomos obrigados a fazê-lo pela ditadura das NAÇÕES DE GOG E MAGOG, CUJO NÚMERO É COMO O DAS AREIAS DO MAR:[5] Desligámos a nossa capacidade de ousar saber porque, aqui chegados, preferimos montar um sistema de AI que nos permitisse entrar em hibernação total e permanente do pensamento.

Apenas nos resignámos a sobreviver passivamente, como os OITO HUGUENOTES FRANCESES abandonados no ROCHEDO DE RODRIGUEZ, onde descobriram um parente do Dodó a que chamaram o SOLITÁRIO e que deixaram extinguir-se depressa embora fossem homens de uma fé muito gentil[6]   


Segunda-feira, cada vez mais calor em Estremoz, e outro tanto calor na correria de Lisboa. Fui a uma consulta em Belém, que demorou cerca de uma hora em linguajar de médico. Tudo bem, não me queixei nem um bocadinho, porque este espécime em particular é um pancadão budista de cair para o lado, extremamente simpático, de olhos enormes[7] e sorriso ternurento, cuja esposa se chama Mafaldinha e todas nós confessamos abertamente que, se pudéssemos escolher, lhe usurparíamos o lugar[8] – mas não deixa de linguajar como um médico, o que põe a pobre pessoa exausta se não quiser fazer figura de parva – e, perante aquele sorriso rasgado e aquela magnífica arte da conversa, claro que ninguém quer fazer figuras dessas. Enfim, saio dali de cabeça a andar à roda, apanho a lagarta até ao Cais do Sodré, onde apanho a linha verde até ao Chiado, onde mudo para a linha azul para a Reboleira até que chego ao terminal Rodoviário em Sete-Rios, carregada com o PC e com várias pastas de documentos, a sentir-me tão cansada como o Sísifo deve ter-se sentido no preciso momento em que proferiu um rotundo palavrão e desistiu, de vez, de fazer rolar a sua pedra até ao cimo da montanha[9].

Falta uma hora para sair o Expresso das 19, o último do dia para Estremoz. Como já estou farta do PC, e mais farta estou de Portugal, vou à ebooks e compro o último livro da série psicadélica de Conan Doyle, aquela que integra O PROBLEMA FINAL, o terrível conto em que Sherlock Holmes acaba por morrer nos penhascos agudos das neves eternas da Suíça abraçado ao seu Nemésio. O calor do fim do dia continua sufocante, mas o ar condicionado do Expresso é doce e atraente. Pedi um dos lugares mesmo à frente para me gozar bem do pôr-do-sol. Alguma coisa tem de continuar a ser grande, impressionante, boa, e bonita, e fundamentalmente gratuita, num país em que estou sempre a ouvir dizer que, depois de bem contados os votos, veremos que foi o CHEGA quem ficou em segundo lugar.

Como aquele era o último Expresso para estes lados, com destino final em Elvas, foi-se enchendo cada vez mais à medida que a tal hora passou. Tive tempo de descobrir, do princípio ao fim, como é que morreu Sherlock Holmes. Também tive tempo de descobrir como é que se sentiu nesse crepúsculo um povo português completamente desnorteado e seriamente enjoado, antes mesmo de a viajem começar. Acrescente-se que, naquele momento em que se prevê tudo de mau, o terminal de Sete-Rios é seboso e feio, e mais feio ainda é o engarrafamento que vai dali até à saí até à saída da Ponte, para-choques a para-choques a para-choques, de uma travagem brusca atrás de   outra travagem brusca, afogando as vozes bem preparadas dos comentadores políticos.

Felizmente, ouvem-se bem as vozes dos passageiros.

Atrás de mim, um pai exaltado tentava despejar pelo telemóvel tudo o que tinha a dizer[10] andes que o Expresso começasse a andar e a rede se tornasse muito mais esquiva,

Joana, filha, tu vê se entendes meu, eu gosto muito de ti mas ainda gosto mais de pasteis de bacalhau, ouviste, e olha que sobretudo não gosto que ninguém goze comigo, fds! Sou a única pessoa nesta família que trabalha, vocês penduram-se todos em mim, agora tu inventas-me essa história do óleo quando eu estou farto de saber que os Volvos a não deitam óleo. E muito menos este, que é novo. Joana, pediste-me o carro para ires a uma tourada na 6ª feira. É domingo, ouviste? DOMINGO!  E tenho eu de me meter no Expresso para ir buscar o meu carro a Elvas porque amanhã preciso dele para trabalhar. Pois, se não queres um bom par de estalos é melhor desapareceres, fogo. Já me basta o que basta. São pessoas como tu e a tua mãe que põem o nosso país neste estado!

Uma coisa podia não ter nada a ver com a outra[11], mas ouviram-se algumas vozes dentro da camioneta a dizer “muito bem, muito bem!

Os rapazes do banco de trás, daqueles que fazem questão de não acreditarem em nada, desfazem-se em risadas boçais.

Eu perco a paciência com esta matula que se diverte a gozar com os dramas existenciais dos outros.

Nem preciso de agarrar no altifalante do condutor porque tenho a voz treinada por trinta anos de aulas para me fazer ouvir na camioneta inteira. Basta-me tirar a mala dura pela qual não tenho  qualquer carinho, trepar-lhe para cima, e despejar-lhes para uma lição de moral tal como, mais ou menos,

Ai os meninos acham graça às faltas de respeito aos pais? É? Acham mesmo? Então e depois? E quando forem vocês que tiverem trinta anos e os vossos filhos de quinze vos pedirem o carro por um dia e desaparecerem com ele durante quatro dias, primeiro com desculpas coxas, depois sem desculpa absolutamente nenhuma?

A audiência rodoviária anima-se ainda antes que os jovens imorais possam voltar a abrir a boca.

Olha. É a Clara Pinto Correia.

Uma grande mulher.

A senhora encostada à janela do lado oposto ao meu[12], quando descobre que eu sou a Clara Pinto Correia, salta o meu lado e desabafa com uma urgência desesperada,

Já tive uma crise e tudo. Penso muitas vezes que não vou aguardar muito mais tempo.

Mas a que é que tu chamas uma crise?

Sei lá. Acho que foi aquilo a que se chama um burnout.

E tiveste um burnout porquê?

Tenho demasiada gente na minha vida. Vivem todos comigo. O meu marido apaixonou-se por mim de tal maneira que abandonou o trabalho em Lisboa e veio viver comigo para Elvas.

Tu és maluca. Tens bem a noção de quantas mulheres da nossa idade dariam o cu e cinco tostões para viverem com uma família grande, incluindo um marido completamente apaixonado? Quantos anos tens?

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E queixas-te do amor do teu marido?

Nem me deixa respirar.

Querida, eu… eu, em alturas destas… é mesmo como diz a vaca que vai à psicanalista, não sei se sou eu ou se foi o resto da manada que enlouqueceu!

Depois de um longo silêncio marcado pela travessia da autoestrada, a camioneta abranda para parar em Montemor. Ouve-se agora mais nitidamente a voz de ainda outro comentador político, que prevê, também ele, a alçada do CHEGA a segundo lugar.

Ai meu Deus,

grita, lá mais para trás, a voz de uma pessoa que eu conheço de Estremoz,

esqueci-me completamente de que as eleições eram ontem!

Algumas vozes repetem uma aflição idêntica.

E, das outras pessoas, eu não sei. Mas, em Estremoz, era preciso ter vontade de esquecer. Estavam cartazes enormes espalhados pela cidade toda com a indicação dos locais e horas da passagem dos autocarros que levavam às assembleias de voto.

Se o pessoal está tão desmotivado que até esquece as eleições, admiram-se de ver o CHEGA os eleitores esquecerem tudo? O CHEGA vai buscar os seus quadros a grupúsculos desconhecidos e secretos que desatam a praticar a magia negra assim que aquecem o lugar, e o pessoal esquece-se do que esses quadros fizeram daí a um mês. Quem é que ainda tem presente o jovem que defendeu acaloradamente no Primeiro Congresso do Partido que era importantíssimo praticar de imediato a castração química dos pedófilos – até se descobrir que o próprio jovem era um pedófilo sem apelo nem agravo? Vá, coragem. Quem ainda sabe levanta a mão.

E é saber mesmo a história, não é ter assim uma ideia vaga, meus amores[13].

Pois, e conforme eu temia só estão duas mãos levantadas dentro do maior auditório da Universidade[14].

Para juntar os cabrões sem vergonha aos doentes com fobias curiosas, levante agora a mão quem ainda se lembrar do deputado açoriano que roubava malas pequenas no aeroporto, ia à casa de banho, escondia as malas pequenas alheias dentro das suas malas grandes, levava aquilo tudo para casa, tirava as peças em bom estado das  malas roubadas, vendia-as on-line na vinted… mas julgam que se dava a todo este trabalho para fazer dinheiro? Não, não era. De certeza que não era, porque ela vendia cada peça… por um euro! Era um psicótico que se espera estar agora em terapia, tanto mais que as psicoses, deixadas por tratar e ainda por cima expostas, de certa forma ao público mas sobretudo à humilhação, podem levar a resultados desastrosos. São pessoas destas, “um advogado muito sério com assento no Parlamento Açoreano”, que um belo dia se passam e dão um tiro em alguém. Ou nela próprias. Não interessa. Comportamentos destes são extremamente perigosos.

E no auditório só se levantaram duas ou três mãos, porque toda a gente se esqueceu de que as peças roubadas eram vendidas a um euro.

O Ruizinho da Farmácia aqui em frente, um dos meus melhores amigos e senhor de um belo pernão que fica à vista assim que o tempo aquece, é militante do CHEGA. No dia em que André Ventura se candidatou à Presidência da República, entrei por ali dentro a rir. “Então Ruizinho, sempre vai votar no palhaço?” – “Vou votar no maior político português.” – “Mas então explique-me lá qual é a política dele, que eu ainda nunca consegui perceber.” – “Não interessa. É o maior político português.

 Como toda a gente sabe, “É PRECISO LIMPAR PORTUGAL” não quer dizer nada mas é bom de ouvir. Tal como “À MINHA MANEIRA”, e vários outros êxitos.

E com chorrilhos de lugares-comuns fáceis de ouvir de um lado, pessoas tão saturadas das conversas cada vez menos audíveis dos clássicos que até se esquecem das eleições do outro, parece-vos estranho o CHEGA chegar assim tão depressa ao segundo lugar?

Façam o vosso trabalho bem feito, pela vossa rica saúde.

Isto é imperdoável.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


[1] Para quem não conhece mais este mimo da mitologia Clássica, Sísifo é um jovem que só poderá continuar a sua vida se conseguir empurrar um pedregulho anguloso e pesado até ao cimo da montanha que vai a subir. Todos os dias arrasta esse pedregulho à sua frente, com os habitantes da montanha a observar o esforço. Todos os dias consegue chegar lá a cima. Mas, todos os dias, demasiado cansado para encaixar o pedregulho num sítio que o retenha, pura e simplesmente há ali um momento em que abre os braços e deixa o fruto do seu esforço rolar pela encosta abaixo. Parece que a hipótese de ir construindo pontos de apoio para poder descansar todos os dias e continuar apenas no dia seguinte, quebrando o esforço – sei lá – numa semana, ao invés de um simples dia nem sequer lhe ocorre. Isto não é fossanguice, porque Sísifo quer apenas obedecer muito depressa às disposições dos deuses. Isto é apenas acreditar que um jovem pode fazer o que um deus faz. Isto é criancice – é um mito que ilustra muitos outros, daqueles relacionados com a omnipotência própria das crianças.

[2].”L’Homme de René Descartes“, ou “Tratado do Homem“, é uma obra inacabada de René Descartes, escrita na década de 1630 e publicada postumamente, primeiro em latim em 1662 e depois em francês em 1664. No tratado, Descartes descreve o funcionamento do corpo humano através de leis mecânicas, incluindo os músculos e os principais órgãos. Descartes tenta sobretudo explicar fenómenos invisíveis, tais como como a transmissão da dor e a dor fantasma, com ênfase nos

sentidos, e na perceção sensorial. Até à sua morte na corte da Rainha Cristina, na Suécia, Descartes tentou em vão juntar ao tratado a localização precisa da epífise, ou seja, o ponto onde a alma se liga ao corpo.

[3] EMBORA CONHEÇA OS CAMINHOS, EU NUNCA CHEGAREI A CÓRDOBA: Verso maravilhoso e premonitório de Frederico Garcia Lorca, cuja morte a caminho de Granada pela estrada que vem de Madrid (“Córdoba” seria uma figura de estilo para “Granada”, berço do poeta) ainda hoje se encontra por esclarecer. É certo que o poeta não se sentia seguro em Madrid, onde todos os seus amigos lhe imploraram que ficasse, exactamente por uma questão de maior protecção. Mas não se sabe se os receios de Lorca eram de cariz sexual (Lorca era homossexual, e não o escondia) ou político. Como, em ambos os casos, o cadáver de Lorca é seguido de lançamento para uma vala comum e consecutivo desaparecimento. Ou seja, setenta anos mais tarde, se a execução a tiro de um dos maiores poetas de Espanha veio de uma liga de cidadãos “dignos” que incluía membros da sua própria família, ou de uma organização sem perdões das forças fascistas que lhe montou uma cilada muito hábil no, continua a ser um mistério para todos nós. Tudo o que sabemos é que o homem de inspiração quase divina foi assassinado no dia 19 de agosto de 1936, num recanto à margem da estrada Víznar-Alfaca, na sua província natal. 

[4] SAPERE AUDE (OUSAR SABER) é a frase famosa cunhada por Immanuel Kant que define o espírito arrojado de querer estudar tudo e saber tudo característico do Período das Luzes, que marcou a Europa do século XVIII até ao terramoto de Lisboa em 1755.

[5] Estas Nações, aparentemente sobrepovoadas por criaturas que não sabemos com o que é que se parecem mas sabemos que estão associadas ao mal, foram criadas no âmbito das visões infernais contadas por São João Evangelista na sua velhice, quando se recolheu sozinho na ilha de Patmos e escreveu O APOCALISE, o último livro do Novo testamento.

[6] História verdadeira das incríveis desgraças da vida no mar, esta do século XVII e narrada por François Leguat. Leguat era um huguenote francês que em 1689 escapou de França com cerca de outros duzentos seguidores hugenotes, tentando escapar às perseguições e chacinas religiosas. Tinha-lhes sido prometida  a fértil e abundante ILHA DA REUNIÃO, mas afinal despejaram-nos, um ano mais tarde, num penhasco árido e sem lavoura possível chamada ROCHEDO DE RODRIGUEZ, quando da população inicial já só restavam oito. Ao fim de um ano, quando

[7] Está a falar connosco e tira e põe os óculos, tira e põe os óculos, e quando faz isso os olhos crescem e descem, crescem e descem, e tudo é bom de ver. Diga-me, Clara Pinto Correia: se só pudesse levar só uma outra pessoa para uma ilha deserta…

[8] Atenção mulheres! Se vos doerem os dentes e conseguirem aguentar até Belém, subam a Rua dos Jerónimos, entrem na Clínica dos Jerónimos (18 A/B à vossa direita, se forem a subir ao longo do estilo manuelino), façam um ar desesperado, e digam que pelo amor de Deus, têm que ser vistas imediatamente pelo Dr. Bruno. Podem dar o meu nome como referência. Mesmo que não vos doam os dentes, peçam-lhe que os veja pelo menos uma vez. Juro que vale a pena. Eu, que já corri o mundo, nunca tinha visto um dentista assim. Sabia que eu é que tinha descoberto o descoberto o centrossoma masculino na fertilização do mamífero! Até me vieram as lágrimas aos olhos.

[9] Esta figura de estilo não consta do mito. Sísifo só assumiria comportamentos de degradação semelhante se fosse um mero humano. Humano como a Mafaldinha – e toma lá que já ouviste, ó mais-que-perfeita sem vergonha.

[10] Adoro ouvir as conversas das pessoas.

[11] Ou  podia: não sabíamos.

[12] Esperem lá. A SENHORA? A criatura era da minha idade, caraças. Não era nenhuma SENHORA. Era um GAJA, como eu. Só que, conceda-se – como vim a saber pela autoestrada, era uma pobre GAJA de cabelo pintado, e de facto com vida de SENHORA. Tomava conta da sogra, que vivia lá em casa, e chamava-lhe “A MÃEZINHA”, Detalhes tramados.

[13] É que eu sei exactamente o que é o horror encerrado nestas práticas. Quando eram pequeninos, os meus filhos foram expostos a este género de nojo. “Mas eu nunca engoli, Mãe, eu vomitei sempre!” – era noite, estávamos os três enfiados na minha cama a falar do passado deles, e esta frase pequenina, nesta voz pequenina de menina, arrepiaram-me tanto, fizeram-me ficar tão tonta, que eu pensei que ia desmaiar. Abracei-os muito contra mim, cantei-lhes o LE TEMPES DES CERISES baixinho, devagarinho, com muito carinho, e lá se foi o desmaio.

[14] Auditório enfiado agora à pressa nesta história. Representa ums grande quantidade de gente de todos os quadrantes reunida sob o mesmo tecto.

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