BECAS & TOGAS: CRÓNICA DE JOÃO DE SOUSA SOBRE A OPERAÇÃO MARQUÊS

José Sócrates: o julgamento de todos nós

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João Pedro de Sousa|02/07/2025

Quinta-feira, 3 de Julho de 2025. Onze anos depois de o terem levado, ele volta.

Desta vez, não para a cela. Para o banco dos arguidos. O julgamento começa agora. Tarde demais para a memória. Cedo demais para o esquecimento.

Só agora o Ministério Público português se propõe dizer, em sede própria, o que nunca conseguiu dizer de forma clara — mas intencional — fora dela.

O processo arrastou-se, os anos acumularam-se e a Justiça tropeçou — não apenas na sua lentidão crónica ou na teia da complexidade processual, mas também nas zonas cinzentas da conveniência, nos silêncios cúmplices e nas hesitações que nem sempre pareceram inocentes.

O Ministério Público acusou. Sócrates nega tudo.

E que fique claro: independentemente do que penso sobre o valor ético-moral do homem com quem convivi em reclusão — e conheço-o como poucos — é ao MP que cabe provar que ele cometeu crimes. Não é José Sócrates que tem de provar que não os praticou.

Estas crónicas que agora inicio não são neutras. São informadas — e, sobretudo, não são ingénuas.

Estarei presente nas sessões de julgamento, mas estive também onde poucos estiveram: dentro da prisão de Évora, sem filtros nem discursos preparados, quando o ex-primeiro-ministro partilhava o espaço com outros homens que, ao contrário dele, nunca mandaram no país nem tiveram 45% do voto popular.

Eu vi o homem. Vi-o sem maquilhagem, sem púlpito, sem câmara. Vi-lhe o cansaço, o cálculo, o narcisismo e a teatralidade.

Vi-o picado pelas pulgas — literalmente. Escrevi sobre isso.

Escrevi sobre as pulgas que martirizaram José Sócrates. As palavras foram o acelerante. O resto ardeu sozinho.

Cardernos Moleskine onde apontava tudo o que se passava no Estabelecimento Prisional de Évora.

Foram faladas em rádios, parodiadas em programas de humor, tornaram-se imagem pública.

Mas, ao contrário de outros que hoje exigem milhões por alegadas ofensas à sua pureza — Anjos vs. Joana Marques — Sócrates, que não é nenhum anjo, não me processou. Talvez não precisasse: o amigo de infância provia.

Talvez ache que as pulgas são menos ofensivas do que se matar uma canção.

Este julgamento será histórico.

Não será pelos autos que este julgamento marcará a História. A prova, volumosa e arrastada, ameaça ser como a montanha que, depois de tanto ruído, parirá um rato fatigado. O essencial não estará nos papéis.

Estará na sala. No rosto. No tom. No gesto estudado e na pausa medida. No que se encena e no que se trai. No que se vai ouvir — e, sobretudo, no que se vai ver.

O olhar, o gesto, o desvio de atenção, a pausa estudada, o riso ensaiado — tudo importa.

Porque Sócrates sabe disso. Vive disso. Desde que trocou o betão dos discursos técnicos pela arquitectura mediática da política.

Construiu-se pela imagem. Alimentou-se da ilusão de ser maior do que o cargo. E o país deixou. Todos nós deixámos.

Em 2005, deram-lhe o país de bandeja: 45% dos votos e uma maioria absoluta.

Em 2009, mesmo com o chão a ceder, mais de dois milhões voltaram a escolhê-lo.

Não o escolheram apesar da imagem. Escolheram-no por causa dela. Pela postura, pelo verbo, pela soberba mascarada de visão — e ele não caiu do céu. Veio de dentro.

De um sistema que o fabricou e o promoveu. E que ainda hoje respira — cá dentro, no coração do poder, e lá fora, em cadeiras presidenciais de suposta imparcialidade. Em rostos que então sorriam nas suas campanhas e que hoje fingem distância diplomática.

Sentados, respeitados, reverenciados — como se tivessem chegado ali por geração espontânea e não pelo mesmo ventre político que pariu o homem que agora se senta no banco dos arguidos.

Estas crónicas não serão indulgentes. Nem feitas para agradar a todos. Serão muito desconfortáveis.

Serão exercício de leitura fina: do que se mostra e do que se esconde, do que se diz e do que se insinua, do que se encena e do que se escapa. Porque há muito que os julgamentos deixaram de se fazer apenas com provas.

Fazem-se também de percepções, de narrativas encadeadas, de verdades construídas — e de silêncios oportunos. São palco e são bastidor. São justiça e espectáculo. E há muito quem saiba dançar nos dois.

O que se julga, a partir desta quinta-feira, não é só o homem.
É o espelho de quem o pôs lá — e de quem o deixou lá estar tempo demais.

A Justiça tarda, mas a culpa — quando é colectiva — raramente prescreve.

***

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