ANÁLISE: QUE FUTURO PARA PORTUGAL?
Imigração e desenvolvimento: e que tal retirarmos a carga ideológica?

Durante décadas, Portugal debateu-se com a desertificação do interior, o envelhecimento galopante da população, o encerramento de escolas por falta de crianças, a perda de jovens qualificados para a emigração, a estagnação do mercado interno e a degradação progressiva da sua pirâmide etária. A narrativa dominante nas instituições e nos media era — e em muitos casos ainda é — de que Portugal precisava desesperadamente de gente. Precisava de imigrantes. Precisava de população activa. Precisava de fertilidade — ou, na falta dela, de uma infusão humana vinda de fora para compensar o seu destino estatístico de nação decadente.
E, aparentemente, conseguimos isso.
Só nos últimos três anos, entre 2021 e 2023, o país registou um saldo migratório líquido de mais de 400 mil pessoas. Nunca, em democracia, se exceptuarmos o período da descolonização — que remete para um período complexo da vida social e económica do país — se tinha registado um fluxo migratório tão intenso. Mas as diferenças são abissais, não apenas porque os imigrantes do pós-25 de Abril tinham raízes lusófonas e, em certa medida, culturais, como também porque o saldo natural ainda era fortemente positivo: nasciam, naquele período, cerca de 200 mil crianças — e agora são pouco mais de 80 mil.

Aliás, nos últimos três anos, apesar de todas as campanhas de incentivo à natalidade e da tão proclamada retoma pós-pandémica, o saldo natural (diferença entre nascimentos e mortes) manteve-se consistentemente negativo em cerca de 100 mil pessoas. Ainda assim, a população total cresceu, passando de 10,4 milhões para 10,7 milhões.
À superfície, este crescimento por via da imigração pareceria um sucesso. Um sinal de revitalização. Uma inversão histórica da decadência demográfica das últimas duas décadas. Mas é precisamente esta leitura apressada, quase eufórica, que precisa de ser contrariada — mas numa óptica de planeamento (futuro) e não de ideologia,que inquina qualquer debate sério.
Na verdade, nos últimos anos Portugal não assistiu a um qualquer crescimento planeado, equilibrado e sustentável. Deparou-se, pelo contrário, com um choque migratório desorganizado, com profundas assimetrias regionais, impactos negativos na habitação, sobrecarga dos serviços públicos, polarização social e nenhuma correspondência com uma política estruturada de acolhimento e integração.

A questão não está, pois, em discutir se o país precisa de população. Está, isso sim, em perceber que tipo de crescimento demográfico é possível e desejável num Estado social europeu com limites orçamentais, um parque habitacional envelhecido, um tecido económico frágil e serviços públicos a rebentar pelas costuras.
Porque — e convém que se diga sem rodeios — crescer demograficamente não é, por si, sinal de progresso.
Vejamos, numa síntese, aquilo que está em causa
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Um crescimento sem mapa
Em teoria, uma população pode crescer de forma equilibrada se o ritmo for ‘absorvível’: isto é, se os serviços de saúde, educação, habitação e transportes forem capazes de acompanhar a nova procura. Países com forte planeamento estratégico (como os escandinavos) conseguiram manter durante décadas ritmos de crescimento populacional moderados — na ordem dos 0,7% a 1,0% ao ano —, mas alinhados com investimentos em infraestruturas, formação de quadros, habitação pública e redes de mobilidade.
Portugal, em contraste, teve nos últimos três anos um crescimento médio superior a 1,2% ao ano apenas por via da imigração, sem que o Estado ou as autarquias tivessem feito qualquer planeamento prévio. Em Lisboa, na Amadora, em Loures ou em partes do Algarve, e mesmo em zonas mais rurais (Odemira é um exemplo gritante, com um crescimento de mais de 3% ao ano), o número de residentes cresceu de forma abrupta, mas sem novas escolas, sem reforço dos centros de saúde, sem redes de transportes ajustadas, sem parques habitacionais acessíveis.
A resposta do Estado foi a de sempre: nenhuma.

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Polarização territorial: crescimento desigual e desertificação persistente
Enquanto se celebrava o crescimento da população ao nível nacional, ignorava-se o facto de que esse aumento foi profundamente desigual.
Os grandes centros urbanos e metropolitanos absorveram quase todo o acréscimo populacional, alavancados por fluxos migratórios intensos, sobretudo de imigrantes em situação económica vulnerável. Lisboa, por exemplo, registou mais de 24 mil novos residentes entre 2021 e 2024, o que equivale a mais de 22 pessoas por dia, invertendo,de forma abrupta e sem qualquer planeamento, um declínio populacional de quatro décadas. O Porto, Sintra, Braga, Seixal, Amadora ou Cascais seguiram tendência semelhante. Nessas zonas, o crescimento agravou os problemas pré-existentes: congestionamento habitacional, encarecimento da habitação, pressão sobre escolas e centros de saúde, sobrelotação de transportes.
Em contrapartida, cem concelhos — quase um terço do país — perderam população nesse mesmo período, confirmando a persistência da desertificação e o falhanço continuado das políticas de coesão territorial. Municípios do interior centro e norte, bem como várias zonas do Alentejo e do interior algarvio, viram partir os poucos jovens que ainda restavam, enquanto a população envelhecida se reduzia naturalmente. Esta erosão silenciosa, muitas vezes fora do radar mediático, representa uma perda real de futuro.

Ou seja, cresceu a pressão nos territórios já saturados e aumentou o deserto nos territórios já esvaziados. É o paradoxo português por excelência: conseguimos perder coesão territorial ao mesmo tempo que ganhámos população.
E nem o Governo nem as autarquias fizeram algo de significativo para inverter ou atenuar esta tendência. Não houve incentivos sérios à fixação no interior. Não houve reconversão de habitação devoluta. Não houve planeamento dos fluxos migratórios por concelho. Houve, sim, omissão deliberada e aproveitamento político da ilusão de “crescimento populacional saudável”.
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Mercado habitacional: da crise à catástrofe
Basta olhar para o que se passa no mercado de habitação para se perceber que este crescimento populacional, longe de resolver problemas, amplificou-os até ao limite.
Com mais de 400 mil pessoas a entrarem no país em três anos — grande parte delas em zonas urbanas — o desequilíbrio entre oferta e procura disparou. O número de fogos construídos anualmente continua a ser residual face às necessidades, e a habitação pública é quase inexistente.

Resultado: os preços de venda subiram, as rendas explodiram, o alojamento local avançou sobre os bairros populares e muitos migrantes foram empurrados para zonas degradadas, insalubres ou para situações de sobrelotação ou informalidade.
Sim, Portugal cresceu. Mas à custa de bairros precários, tendas improvisadas, sobrecarga de transportes e famílias portuguesas a serem empurradas para longe dos centros onde vivem há décadas.
Note-se que, em zonas urbanas, se critica o exagero do alojamento local como causa para a escassez de casas, esquecendo, porém, dois aspectos essenciais. Primeiro, grande parte dos alojamentos locais no casco histórico são fogos de pequena dimensão (T0, T1) ou com características pouco atractivas para famílias jovens (p. ex., sem elevadores, com escadas íngremes, sem estacionamentos, com tráfego condicionado), pelo que só marginalmente contribuem para a crise habitacional — e já sem explorar muito que o parque habitacional de Lisboa e Porto foi recuperado com o boom turístico. Segundo, grande parte dos imigrantes em zonas urbanas — em zonas rurais é a actividade agrícola —, a imigração está associada directa ou indirectamente ao turismo, através da prestação de serviços.
Limitar ainda mais o alojamento local ou o turismo — cujo crescimento tem de ser limitado, mas por outras razões relacionadas com a própria capacidade de carga dos ‘bens turísticos’ — seria afectar dramaticamente o emprego dessa ‘massa’ de imigrantes, uma vez que a esmagadora maioria ocupa funções de trabalho menos qualificado.

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Serviços públicos: a pressão (in)visível
A entrada de centenas de milhares de pessoas numa rede de serviços públicos já fragilizada por anos de subfinanciamento e má gestão resultou naquilo que era previsível: congestionamento.
Quase não houve novos centros de saúde planeados com base nas novas densidades demográficas. Não houve reforço efectivo dos recursos humanos nos agrupamentos escolares onde a pressão aumentou. A expansão de linhas de transportes urbanos segue a conta gotas. Os serviços públicos, em geral, estão a prestar piores serviços, mesmo com a ajuda tecnológica — aliás, paradoxalmente, por vezes parece que funcionam pior por causa disso.
O resultado é o que qualquer utente percebe: esperas eternas nos serviços de saúde, turmas sobrelotadas, comboios a abarrotar, urbanizações novas sem transportes.
Estamos a viver o efeito de um crescimento súbito sem contrapartida de investimento público.

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Um Estado passivo e um discurso simplista
O mais grave de tudo isto é que, perante este cenário, a comunicação oficial continua a vender a ideia de que Portugal está “a inverter a crise demográfica”, que a imigração está a “compensar a baixa natalidade”, e que “temos finalmente mais população” — e, pior, que debater estes temas da imigração e do crescimento abrupto é coisa para instigar o ódio e fazer o serviço à direita radical e populista (ou, para simplificar e envenenar qualquer discussão, a extrema direita). Isto, sem colocar em causa o discurso a roçar a xenofobia e a discriminação por parte do Chega — mas este é o grande problema: digladiam-se soundites, não se confrintam ideiais.
E, no entanto, estamos perante realidades cada vez mais incómodas:
- Que a baixa natalidade continua crónica, com um índice de fertilidade entre os piores da Europa (cerca de 1,4 filhos por mulher);
- Que o saldo natural permanece negativo, com mais de 30 mil mortes a mais do que nascimentos por ano;
- Que a maior parte dos imigrantes chega em condições de precariedade, não como resposta a uma estratégia nacional de qualificação, fixação territorial e sustentabilidade fiscal.

Um dos grandes desafios de um país é saber questionar-se para onde quer ir. Como quer crescer e definir um equilíbrio entre o presente e o futuro. E isso requer perceber, como até faz uma família, em perceber que uma comunidade tem de ser demograficamente equilibrada — e no caso português, seria necessário:
- Que o crescimento fosse lento, previsível e absorvível (entre 0,7% e 1,0% ao ano);
- Que houvesse planeamento infraestrutural antecipado, com metas em educação, saúde, habitação, mobilidade e coesão social;
- Que o Estado regulasse e distribuísse os fluxos, incentivando a fixação em territórios periféricos ou em desertificação;
- Que se apostasse na integração efectiva e no combate à precariedade, em vez de aceitar a marginalidade como inevitável;
- E que se fomentasse, paralelamente, uma estratégia séria de incentivo à natalidade, com políticas de conciliação familiar, creches acessíveis e rendimentos dignos para jovens.
Nada disso está a acontecer.
Estamos a crescer — mas como um corpo descompensado, que incha num lado e emagrece noutro. Um crescimento assim não fortalece: deforma.

Podem definir-se diversos modelos para prever o que sucede a um país com o ‘quadro de partida’ de Portugal em 2025. Com este tipo de país, se este crescimento demográfico (e com as bases em que se sustenta), não for acompanhado por um planeamento coerente e por investimento público proporcional, o que parece um sinal de vitalidade poderá transformar-se numa bomba de pressão social e orçamental. E sem incluir a parte social e de choque cultural.
Com base numa simulação desenvolvida para este cenário, avaliando os efeitos entre 2025 e 2035, fiz uma análise simples, apenas para exemplificar, em quatro eixos principais: cuidados à população idosa, construção de escolas, reforço de centros de saúde e expansão habitacional. A abordagem parte de rácios realistas — e até conservadores — de prestação de serviços e de custos médios por unidade funcional.
1. O envelhecimento que não desaparece
Apesar do aumento líquido da população, a estrutura etária mantém-se envelhecida, com cerca de 23% da população acima dos 65 anos — ou seja, mais de 2,6 milhões de idosos em 2025 e quase 2,7 milhões em 2035. Este grupo consome, naturalmente, mais recursos de saúde, pensões e cuidados continuados. Assumindo um custo anual médio de 4.000 euros por idoso para cuidados públicos (entre lares, apoio domiciliário e saúde crónica), Portugal já gasta perto de 10 mil milhões de euros por ano só neste segmento — valor que aumentará para mais de 11 mil milhões em 2035.
Ou seja, só o envelhecimento populacional representa quase 5% do PIB actual em despesa social contínua, mesmo sem considerar aumentos salariais, inflação médica ou necessidades específicas de dependência severa.

2. Educação: crescer sem lugar nas escolas
A pressão sobre o sistema educativo será desigual. Embora a natalidade se mantenha baixa, o fluxo migratório — em particular de famílias jovens — tenderá a criar focos de aumento de procura escolar nas zonas urbanas e periurbanas, onde o parque escolar é antigo, subdimensionado ou desajustado.
A simulação indica que será necessário planear entre 43 e 46 novas escolas básicas ao longo da década para dar resposta ao crescimento projectado. Cada unidade representa, em média, 6 milhões de euros de investimento em construção, apetrechamento e pessoal de arranque. Isso traduz-se numa despesa anual da ordem dos 260 a 275 milhões de euros. Estes valores, ainda que relativamente modestos em termos agregados, tornam-se cruciais se forem ignorados — pois qualquer atraso resultará em sobrelotação, degradação da qualidade pedagógica e fuga para o privado, ampliando desigualdades.

3. Centros de saúde: serviços já saturados
Actualmente, a maioria dos centros de saúde nas áreas metropolitanas opera no limite da capacidade. Com o crescimento populacional previsto, será necessário construir pelo menos 10 a 12 novos centros de saúde até 2035, apenas para manter a mesma proporção de cobertura (1 por cada 100 mil habitantes, renovado a cada 10 anos). Cada centro exige cerca de 3,5 milhões de euros, totalizando um investimento acumulado de 35 a 42 milhões por ano. No entanto, esse número esconde a realidade: não basta construir paredes — é preciso recrutar médicos, enfermeiros, técnicos e garantir funcionamento efectivo. Os custos operacionais serão, provavelmente, superiores ao investimento em infraestruturas.

4. Habitação: o verdadeiro elefante na sala
O crescimento de 1 milhão de pessoas em 10 anos exigirá pelo menos 400.000 novas habitações, assumindo uma média de 2,5 pessoas por casa. Isso corresponde a 40.000 casas por ano, muito acima da capacidade actual de construção em Portugal, que tem oscilado entre 15 mil e 20 mil fogos. A discrepância entre procura e oferta acentuará a inflação imobiliária, expulsará famílias da classe média dos centros urbanos, e potenciará fenómenos de guetização e habitação informal.
Mesmo assumindo um custo médio de 125 mil euros por unidade habitacional (preço de construção, excluindo especulação e lucro de promotores), isso implicaria investimentos da ordem dos 5 mil milhões de euros por ano, seja por privados, seja com apoio público. A ausência de uma política habitacional estruturada transforma este valor em potencial bolha social.

5. Pressão fiscal e armadilha do crescimento deficitário
Com um custo anual cumulativo (cuidados a idosos, educação e saúde) a ultrapassar 11,5 mil milhões de euros em 2035 — ou seja, mais de 15% do valor actual —, e com o investimento habitacional exigido a aproximar-se de outros 5 mil milhões por ano, o país enfrentará um desafio orçamental de enorme envergadura. Isso só será sustentável com:
- Um aumento significativo de contribuintes líquidos no saldo migratório;
- Um mercado de trabalho que absorva imigrantes com estabilidade e salários dignos;
- E uma redução da informalidade e da precariedade no trabalho migrante.

Sem isso, Portugal crescerá populacionalmente e empobrecerá estruturalmente — pois as receitas fiscais não acompanharão o custo do novo modelo social. Em suma, poderá haver mais gente, mas menos coesão, menos redistribuição e mais desigualdade.
Perante este cenário, queremos mesmo, como povo (e contribuintes) continuar a meter ideologia pelo meio — com as suas diatribes partidárias e guerrilhas infantis — ou já será tempo de exigir que os políticos se comportem como adultos e deixem de disputar o poder de um país que ameaça ruína?