À BOLEIA DA DESBUROCRATIZAÇÃO, ESTADO AUMENTARÁ CONTROLO SOCIAL SOBRE OS CIDADÃOS
Número único de identificação: Governo copia proposta do Chega que atropela a Constituição

Passou despercebido nas primeiras leituras apressadas, mas uma das normas constantes do Programa do XXIV Governo Constitucional, liderado por Luís Montenegro, poderá vir a ser julgada inconstitucional se for concretizada em letra de lei — ou pelo menos suscitar fortes reservas jurídicas quanto à sua compatibilidade com a Lei Fundamental da República Portuguesa.
Trata-se da proposta de criação de um “modelo de número único de identificação para as pessoas e empresas”, justificada no documento governamental como forma de evitar “que a mesma pessoa tenha de ter número de utente, de cartão de cidadão, de contribuinte, de Segurança Social, de eleitor, etc.” Mas a desburocratização significa também maior devassa da vida privada dos cidadãos por parte do Estado.

sta formulação — que consta na página 109 no capítulo “Reforma da Governação, Organização e da Prestação do Sector Público Administrativo” — não é absolutamente nada original: trata-se de uma cópia literal da proposta n.º 333 do programa eleitoral do Chega. O partido de André Ventura colocou a promessa na ‘secção’ intitulada “Desburocratizar para avançar”.
Em concreto, tanto o Chega como o Governo de Luís Montenegro pretendem que os vários números de identificação atribuídos aos cidadãos — desde o número de utente do Serviço Nacional de Saúde, ao número de contribuinte, à Segurança Social, ao cartão de eleitor, entre outros — sejam concentrados num único número nacional de identificação, a usar transversalmente por todos os serviços e plataformas do Estado. Do berço ao caixão.
O objectivo aparenta ser benévolo: simplificar a relação dos cidadãos com a Administração Pública, evitando múltiplos registos e agilizando os processos digitais. Mas este desiderato, aparentemente inocente — ou mesmo tecnocrático —, esbarra frontalmente com a Constituição da República Portuguesa.

Com efeito, o n.º 5 do artigo 35.º da CRP estabelece com clareza: “É proibida a atribuição de um número nacional único aos cidadãos.” Esta norma constitucional, que remonta à revisão de 1989, foi adoptada num contexto em que começavam a emergir as primeiras bases de dados digitais centralizadas, e visava proteger os cidadãos contra práticas de controlo e vigilância abusivos por parte do Estado.
A intenção era inequívoca: impedir a criação de um sistema unificado de identificação que permitisse cruzar, com facilidade e sem consentimento expresso, informação sobre saúde, dados fiscais, mas também outros aspectos sensíveis que estivessem associados a cada pessoa.
É certo que, nas últimas décadas, o avanço tecnológico e a digitalização da Administração Pública levaram, na prática, a uma crescente interoperabilidade entre sistemas estatais. Por exemplo, o número de contribuinte tem sido usado como identificador transversal em várias plataformas.

No entanto, como sublinha o constitucionalista Jorge Bacelar Gouveia, em declarações ao PÁGINA UM, a consagração formal de um número único nacional seria inconstitucional, tal como está actualmente prevista na Constituição. Para o jurista, embora já exista uma “centralização de facto” em muitos aspectos, a criação formal de um número único, com base legal, seria “um salto qualitativamente diferente”, colocando “riscos de devassa da privacidade”.
De resto, o mesmo artigo 35.º da actual Constituição reforça a sua preocupação com a protecção de dados pessoais ao estabelecer que “a informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular (…)”.
A ligação entre essa norma e a proibição do número único é evidente: o legislador constituinte quis, na altura, prevenir a possibilidade de concentração num só registo digital da identidade integral do cidadão.

Em termos práticos, a adopção de um número único teria como consequência imediata que todos os serviços do Estado — e eventualmente entidades privadas com acesso autorizado — pudessem aceder, de forma mais expedita, ao histórico completo de interacções e dados do cidadão: processos de saúde, registos fiscais, segurança social, histórico eleitoral, licenças de condução, propriedade automóvel e imobiliária, registo criminal, percurso académico, entre outros. O risco não é meramente teórico: a centralização de dados aumenta a vulnerabilidade a abusos, violações de privacidade e mesmo ciberataques com efeitos devastadores.
Mas há também um risco simbólico e filosófico: o de uma progressiva despersonalização e desumanização da identidade do cidadão. Reduzido a um número único — que substituiria o nome próprio na relação com os serviços públicos —, o cidadão deixará de ser reconhecido na sua individualidade para passar a ser um código funcional.
Do nascimento à morte, um recém-nascido deixaria de ser, simbolicamente, João, Maria ou Miguel para passar a ser 1023984501, numa lógica de etiquetagem estatal que rompe com qualquer ideia de dignidade pessoal. Ou seja, o número deixa de ser apenas um instrumento administrativo para se tornar, na prática, uma identidade totalitária, pronta a ser vigiada, cruzada e interpretada por algoritmos.

A proposta agora inscrita no Programa do Governo surge, assim, num cenário político sensível, em que tanto o PSD como o Chega demonstraram disponibilidade para uma revisão constitucional — eventualmente para acomodar medidas que hoje são inconstitucionais.
Aliás, no caso concreto do número único, o próprio “etc.” da formulação governamental levanta mais dúvidas do que esclarecimentos. O que mais se incluirá neste identificador? Dados bancários? Localização em tempo real através de aplicações públicas? Um registo de vacinação ou de deslocações? Uma possibilidade de bloquear o acesso a qualquer outro acto administrativo se, por exemplo, houver uma multa de trânsito ou se um cidadão for socialmente incómodo?
Embora ainda se esteja perante uma promessa governamental sem legislação concreta, a simples transcrição ipsis verbis da proposta do Chega — sem qualquer discussão pública ou alerta mediático — revela um padrão preocupante de alinhamento programático, sobretudo quando se trata de matérias sensíveis à liberdade individual.

E se é certo que a proposta poderá, no futuro, ser enquadrada numa revisão constitucional — algo que requer maioria qualificada —, o facto de ser integrada no actual Programa de Governo levanta legítimas interrogações sobre o rumo do Executivo de Luís Montenegro em matéria de garantias fundamentais.
Seja por afinidade política, seja por mera distração legislativa, esta proposta do Governo configura uma flagrante inconstitucionalidade num documento programático fundamental, com implicações não apenas jurídicas mas sobretudo democráticas e humanas.