ANÁLISE: O SILÊNCIO DA INCOMPETÊNCIA NÃO APAGA O ERRO
Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge previu uma catástrofe, falhou e calou-se… o PÁGINA UM mostra-lhe o que aconteceu

O Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) voltou esta semana a dar um exemplo paradigmático de como não se deve comunicar Saúde Pública. No início desta semana, o organismo tutelado pelo Ministério da Saúde, mas integrado na Universidade Nova de Lisboa, decidiu accionar o seu modelo Índice ÍCARO — esse acrónimo sonante, mas que, na prática, fez descambar a credibilidade do seu presidente Fernando Almeida — para prever uma alegada “catástrofe” de mortalidade.
Para os dias 4 a 6 de Agosto, o INSA projectou mais do que uma duplicação do número normal de mortes, conforme noticiou o PÁGINA UM na segunda-feira, sugerindo um cenário quase apocalíptico com mais de 700 óbitos por dia. Em três dias, o excesso de mortalidade estaria acima dos 1.100 óbitos? E o que aconteceu? Simples: a mortalidade real ficou a rondar pouco mais de 300 óbitos por dia, valores que, embora ligeiramente elevados para esta altura do ano, estão longe das profecias descontroladas. E pior: pela calada, o INSA modificou os valores do índice ICARO para ‘consertar’ o desacerto. Mas mesmo com esses valores ‘corrigidos’ à socapa, o instituto público previu 1.824 óbitos em três dias, ou seja, um excesso de 900 óbitos.

Mais uma vez, o problema nem foi apenas o erro (grosseiro, acrescido do silêncio), mas a histeria mediática que lhe seguiu. ↓
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É um facto que as temperaturas nas últimas duas semanas estiveram elevadas, com valores que, em alguns dias, se mantiveram persistentemente acima das médias climatológicas, sobretudo nas regiões do interior. Isso justifica uma análise estatística rigorosa para verificar se este calor se traduziu num excesso de mortalidade relevante. Fizemo-lo, concentrando-nos no período entre 25 de Julho e 7 de Agosto, através da informação do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), acrescentando duas componentes essenciais que o INSA e, muito provavelmente, o Governo e a Direcção-Geral da Saúde continuam a querer ignorar.
A primeira componente é óbvia para qualquer demógrafo: a mortalidade em termos absolutos tem aumentado nos últimos anos, não apenas devido a episódios excepcionais como a pandemia, mas por causa do envelhecimento acelerado da população portuguesa. Há mais pessoas em idades avançadas e, por consequência, mais mortes por causas naturais, mesmo sem qualquer evento extremo relevante. Comparar, por exemplo, a mortalidade diária de 2025 com a de 2015, ou usar uma simples comparação com a média dos últimos cinco ou 10 anos, sem qualquer ajuste à estrutura etária, é receita certa para inflacionar artificialmente qualquer “excesso”.


Importa, contudo, acrescentar uma ressalva: a leitura desta tendência nos próximos anos será mais difícil devido ao ruído introduzido pelos anos pandémicos de 2020 a 2022, em que a mortalidade esteve anormalmente elevada. Se esses anos não forem devidamente atenuados ou ajustados nos modelos, os valores de referência tenderão a ficar artificialmente altos, podendo mascarar excessos reais ou gerar falsos défices. Este será um desafio inevitável para qualquer análise séria da mortalidade nos próximos anos.
A segunda componente é mais subtil, mas igualmente importante: o chamado efeito harvesting, ou deslocamento de mortalidade. Este fenómeno traduz-se no seguinte: se num período anterior (como o Inverno) a mortalidade é mais baixa do que o esperado, isso significa que houve uma “poupança” de pessoas vulneráveis que, noutras condições, teriam morrido mais cedo.
Quando surge um episódio adverso — como uma vaga de calor, mesmo que não demasiado intensa — parte destas pessoas acaba por falecer num curto espaço de tempo, gerando um pico de mortalidade que não reflecte necessariamente um aumento anual líquido. É um efeito de compensação temporal. O inverso também se aplica: um Inverno com surtos gripais mortíferos desencadeará previsivelmente uma menor quantidade de óbitos no Verão, mesmo perante condições adversas.

Em todo o caso, convém referir que mesmo em meses com ondas de calor, o Verão é, actualmente, a época do ano de menor letalidade, sendo que Setembro costuma ser invariavelmente o mês de menor mortalidade.
Assim, aplicando um modelo estatístico robusto, calibrado com dados diários de mortalidade entre 2014 e 2024 e ajustado a dois factores essenciais — sazonalidade e tendência demográfica de envelhecimento — o PÁGINA UM construiu um referencial fiável do que seria expectável para cada dia de 2025.
A sazonalidade foi modelada com harmónicos anuais que captam os padrões repetitivos ao longo do ano — como os picos habituais no inverno ou no verão. A tendência de longo prazo foi incorporada através de uma variável anual contínua, captando o aumento gradual da mortalidade absoluta resultante do envelhecimento populacional. O modelo foi estimado com regressão de Poisson, apropriada para contagens de eventos diários, garantindo que a variabilidade natural dos óbitos é tida em conta. Adicionalmente, o intervalo de confiança a 95% foi calculado para cada previsão, permitindo identificar dias com mortalidade significativamente acima ou abaixo do esperado.

A partir deste referencial, compararam-se os óbitos observados entre 25 de Julho e 7 de Agosto de 2025 com os valores esperados para o mesmo período. A análise considerou ainda o possível efeito de harvesting — fenómeno em que um pico de mortalidade numa altura pode ser parcialmente “compensado” por défices de mortalidade noutras semanas, quando as vítimas prováveis já faleceram antes do previsto.
Este método permite, assim, distinguir se há um verdadeiro excesso de mortalidade ou se os números recentes apenas reflectem uma redistribuição temporal dos óbitos.
E, deste modo, entre 25 de Julho e 7 de Agosto de 2025, em 14 dias, registaram-se 4.601 mortes, contra um valor previsto de 4.373. Ou seja, houve um excesso de 228 óbitos, equivalente a +5,2%. Não é um valor irrelevante, mas está a anos-luz das duplicações anunciadas pelo Índice ÍCARO. E, convém sublinhar, 11 desses 14 dias ficaram acima do intervalo de confiança estatístico, o que indica um padrão consistente e não um mero acaso.

No entanto, este pico de mortalidade não ocorreu no vazio. Entre 1 de Janeiro e 24 de Julho deste ano, a mortalidade observada foi cerca de 3.698 óbitos inferior à esperada, porque os recentes surtos gripais foram anormalmente fracos. Com efeito, no inverno, a diferença foi ainda mais marcada: menos 1.401 mortes em Dezembro de 2024 e menos 2.979 entre Janeiro e Março de 2025.
No total, o ‘défice invernal’ foi de 4.380 óbitos. É precisamente este contexto que sugere a acção do efeito harvesting: o calor do final de Julho terá “adiantado” o desfecho para parte das pessoas poupadas ao inverno benigno, mas sem inverter a tendência anual.
Certo é que até 7 de Agosto, e mesmo contabilizando o excesso do período analisado, Portugal mantém um saldo anual negativo de 3.414 óbitos face ao esperado (ajustado ao envelhecimento). Ou seja, o ano de 2025, até agora, continua a ser menos letal do que a média ajustada dos últimos dez anos. É por isso enganador, e até intelectualmente desonesto, apresentar estes 14 dias como uma “catástrofe” sem explicar o pano de fundo.

A nossa análise confirma que o calor teve impacto real na mortalidade — e isso não deve ser minimizado. Mas também confirma que este impacto está inserido num padrão mais vasto, onde um défice prévio e prolongado de mortes condiciona a leitura do excesso pontual.
É aqui que a diferença entre o alarmismo do INSA – que, depois, de forma altiva e presunçosa, não se digna explicar-se – e a análise contextualizada do PÁGINA UM se torna evidente. Um organismo público, pago pelos contribuintes, tem a obrigação de explicar, com rigor e sobriedade, que um pico de mortalidade no Verão pode ser estatisticamente significativo e, ao mesmo tempo, compatível com um saldo anual em défice. E aquilo que não pode nem deve é continuar a alimentar, com petulância, narrativas de emergência através de modelos opacos e previsões erráticas. Já nos chegou a pandemia…