UM EXEMPLAR CASO DA 'REAL POLITIK' NO CARDUME DA BUROCRACIA PORTUGUESA

Reconduzido, exonerado e promovido: Durão Barroso Jr. andou por um carrossel de despachos administrativos

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Pedro Almeida Vieira|16/08/2025

Diz-se que filho de peixe sabe nadar. No caso de Luís António Sousa Uva Durão Barroso, filho do antigo primeiro-ministro José Manuel Durão Barroso, talvez seja mais adequado dizer que “filho de cherne” sabe mover-se furtivamente por entre cardumes governamentais. O seu percurso recente nos gabinetes ministeriais dos Governos Montenegro é um caso exemplar de como a burocracia portuguesa consegue transformar o simples em rocambolesco, criando um enredo de despachos assinados em dias diferentes, com efeitos retroactivos absurdos e publicações desencontradas no Diário da República.

Comecemos pelo ponto de partida: em Abril de 2024, Luís Durão Barroso – nascido em 1983 e que entrou directamente para os quadros do Banco de Portugal em 2014 depois de terminar o doutoramento em Direito em Londres – foi contratado como técnico especialista do ministro das Finanças, Miranda Sarmento.

´Luís Durão Barroso em foto do seu perfil do LinkedIn.

Este ano, por força das eleições, e mantendo-se Miranda Sarmento no cargo, surgiram os despachos de recondução para os membros do gabinete que o ministro assim entendeu. Deste modo, no passado dia 27 de Junho, Luís Durão Barroso foi reconduzido como assessor através de um despacho ministerial, indicando que tinha efeito a 5 de Junho – ou seja, o dia de posse do segundo Governo Montenegro. Essa decisão só foi publicada em letra de forma no Diário da República no dia 3 de Julho.

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Até aqui, aparentemente nada de estranho – sucede com dezenas de outros casos. Mas o detalhe está num pormenor: quando o despacho de Miranda Sarmento foi assinado no dia 27 de Junho, já Durão Barroso não trabalhava nas Finanças, uma vez que já tinha dado um salto para outro ministério. Com efeito, a 16 de Junho de 2025, o filho do antigo presidente da Comissão Europeia tornou-se chefe de gabinete da ministra da Administração Interna, Maria Lúcia Amaral. E, para aumentar a confusão burocrática, esse despacho da antiga provedora de Justiça foi igualmente assinado no dia 27 de Junho.

Portanto, no mesmo dia em que Miranda Sarmento reconduzia Luís Durão Barroso como assessor nas Finanças, estava Maria Lúcia Amaral a selar a sua nomeação para a chefia do gabinete, embora a publicação tivesse saído no Diário da República apenas a 10 de Julho.

Miranda Sarmento assinou despacho de recondução quando já sabia que filhode Durão Barroso estava exonerado de facto.

Temos, portanto, o seguinte quadro: no Diário da República de 3 de Julho, Luís Durão Barroso aparecia ainda reconduzido nas Finanças; no Diário da República de 10 de Julho, surgia já como chefe de gabinete da ministra da Administração Interna; e só no Diário da República de 4 de Agosto é que se publicou a exoneração do cargo nas Finanças, salientando que tinha sido “a pedido do próprio”, assinada a 14 de Julho por Miranda Sarmento. Mas essa exoneração, para não destoar, também tinha efeitos retroactivos: 16 de Junho, o mesmo dia em que começara funções na Administração Interna.

Na verdade, na data em que Miranda Sarmento reconduziu Durão Barroso Jr., já este estava de facto exonerado, porque tomara posse entretanto como chefe de gabinete da ministra Maria Lúcia Amaral. Só mais tarde, o despacho com as retroactividades habituais tentaram limpar a confusão.

Em resumo, nesta nebulosa novela em novelos: Luís Durão Barroso foi oficialmente reconduzido nas Finanças a 5 de Junho; passou a chefe de gabinete da Administração Interna a 16 de Junho; foi reconduzido por despacho assinado a 27 de Junho, publicado a 3 de Julho; foi nomeado chefe de gabinete em despacho assinado também a 27 de Junho, mas só publicado a 10 de Julho; e foi exonerado das Finanças a 14 de Julho, com efeitos retroactivos a 16 de Junho, despacho esse apenas publicado a 4 de Agosto. Um verdadeiro carrossel administrativo onde cada data parece desmentir a anterior.

A imprensa, como não podia deixar de ser, tropeçou na confusão. Por exemplo, o Correio da Manhã, na sua edição do passado dia 5 de Agosto, noticiou apenas a exoneração do filho de Durão Barroso das Finanças para a chefia do gabinete do Ministério da Administração Interna, sublinhando que a saída se dera “a seu pedido”. Porém, o jornal não reparou que, quando deu a notícia, Luís Durão Barroso já estava há quase dois meses no gabinete de Maria Lúcia Amaral.

Este episódio mostra mais do que a ligeireza de uma redacção apressada: revela a própria natureza da gestão da “coisa pública”. O cruzamento de despachos assinados no mesmo dia com efeitos diferentes, publicações em datas desencontradas e exonerações retroactivas compõem um retrato fidedigno da opacidade e da desorganização que grassam na administração portuguesa. É um jogo de papéis em que ninguém parece preocupado com a transparência ou a clareza. Aquilo que importa é que, no fim, os lugares se acomodem — e os nomes, sobretudo se tiverem peso histórico, encontrem sempre poiso.

Maria Lúcia Amaral, ministra da Administração Interna, nomeou

Para completar a ironia, há ainda a memória do percurso paterno. José Manuel Durão Barroso, antes de chegar a ministro e a primeiro-ministro, e depois a presidente da Comissão Europeia, passou precisamente pelo Ministério da Administração Interna: em 1985, foi secretário de Estado Adjunto do ministro Eurico de Melo, no primeiro governo de Cavaco Silva. Mas o Durão Barroso sénior contava então 29 anos. Quarenta anos depois, o filho repete a presença no mesmo ministério, mas apenas como chefe de gabinete e já com 42 anos. Mesmo assim, ainda a tempo de singrar na política…

Enfim, se o leitor se sente confuso, é natural: essa é a consequência da forma como os governos portugueses fazem da burocracia um labirinto. Quem entra, nunca sai sem se perder. E no caso de Luís Durão Barroso, filho de um peixe que nunca se afoga, parece que a travessia entre Finanças e Administração Interna foi feita sem ondas — mesmo que o rasto no Diário da República seja digno de uma novela kafkiana.

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