MÉDIA DE 89 HECTARES POR FOGO JÁ SUPERA 2017

Bombeiros: eficácia no combate aos incêndios deste ano é a pior do século

Author avatar
Pedro Almeida Vieira|19/08/2025

O pior ainda não passou, mas 2025 já regista, e de longe, a pior eficácia no combate a incêndios florestais de todo o século XXI. Até 19 de Agosto, de acordo com a análise do PÁGINA UM aos dados do Instituto Nacional da Conservação e das Florestas (ICNF), cada incêndio tem destruído, em média, 89 hectares, um valor nunca antes observado e que ultrapassa largamente os anos mais negros da tragédia dos fogos, como 2003 (50,6 ha/incêndio), 2005 (17,6 ha/incêndio) e sobretudo 2017 (56,2 ha/incêndio), quando morreram mais de uma centena de pessoas em duas vagas de incêndios devastadores.

Este indicador – que exclui os fogachos, isto é, as ignições apagadas antes de se atingir um hectares (100 por 100 metros) – revela que, quando os fogos não cedem à primeira intervenção, a capacidade de resposta do sistema nacional de protecção civil mostra-se estruturalmente incapaz de os travar, sobretudo quando ultrapassam os mil hectares, ficando o controlo dependente quase exclusivamente da evolução meteorológica.

a pile of fire hoses sitting on top of a cement slab

Os números oficiais, compilados até 19 de Agosto, confirmam uma realidade alarmante. Em 2025, já arderam 215.988 hectares, uma área em crescimento que coloca o ano na linha da frente das piores catástrofes florestais desde 2001, mesmo sem se ter atingido ainda o final do período crítico. O total de incêndios registados até agora, excluindo fogachos, é de 2.426, ainda um dos valores mais baixos de sempre, mas com consequências devastadoras: menos fogos, mas muito mais destruição.

O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro.

Ou seja, comparativamente a anos anteriores, e sobretudo aos da primeira década do século, o sistema até tem tido menos ignições e também, em consequência, menos incêndios (com mais de um hectare), mas falha redondamente, em demasiados anos, em grandes incêndios no interior do país. A baixa frequência de fogos contrasta, assim, com a altíssima intensidade e extensão dos que acabam por escapar ao controlo.

Se compararmos com outros anos, percebe-se a dimensão da falha de 2025, mesmo quando comparado com os três anos com maior aárea ardida. Em 2017, o ano mais catastrófico, apesar dos 9.626 incêndios registados, a eficácia do combate ficou em 56,2 ha/incêndio. Em 2003, foram 9.320 incêndios para um rácio de 50,6 ha/incêndio. Em 2005, o rácio foi de 17,6 com quase 20 mil incêndios.

Área ardida por hectare, considerando apenas incêndios (ocorrências com mais de um hectare). Fonte:ICNF. Análise: PÁGINA UM.

Já no ano passado, com os grandes incêndios a concentrarem-se em Setembro, este indicador mostrou sinais de descoordenaçao, com um rácio de 50,1 hectares por incêndios, apesar de ter sido o ano deste século com o menor número de ignições a ultrapassarem um hectare (2.745).

Estes números connstituem uma demonstração inequívoca de que o sistema de combate em Portugal não está desenhado para enfrentar situações em que os fogos, superando a barreira psicológica e operacional dos mil hectares, assumem proporções incontroláveis.

A questão da “eficácia do combate” tem sido, ao longo das últimas décadas, um verdadeiro tabu político e institucional. Desde a primazia concedida às corporações de bombeiros voluntários – pilares comunitários com forte ligação às câmaras municipais e a redes de influência local – que o combate aos incêndios assenta numa miríade de entidades, de difícil articulação e disciplina operacional.

Número de incêndios (ocorrências com mais de um hectare) desde 2001. Dados de 2025 até 19 de Maio. Fonte:ICNF. Análise: PÁGINA UM.

O peso emocional é determinante: os bombeiros são vistos pelas populações como heróis, símbolo de abnegação e de proximidade, o que torna politicamente delicada qualquer tentativa de reestruturação, profissionalização efectiva – com todas as vantagens de instrução, treino e preparação de equipas coordenadas – e consequente responsabilização.

Mas a verdade é que o actual sistema dito voluntário mas com pagamentos do Estado acaba por ser sistema semi-profissionalizado, mas com baixa capacidade de avaliação e regulação. É um sistema que se tornou anacrónico perante as exigências dos grandes incêndios florestais do século XXI.

Aliás, nenhum outro sector fundamental do Estado – da segurança pública à educação, passando pela saúde ou pelo sistema prisional – assenta numa lógica semelhante à do combate aos fogos rurais. É impensável conceber a segurança interna dependente de centenas de associações privadas dispersas pelo território, algumas sofrendo de escassez de população jovem, com escassa coordenação centralizada.

Área ardida total desde 2001. Dados de 2025 até 19 de Agosto. Fonte: ICNF.

No entanto, é precisamente esse o modelo que subsiste no essencial da protecção civil contra incêndios florestais em Portugal: mais de três centenas de corporações de bombeiros voluntários, articuladas de forma precária com os meios da GNR, da Força Especial de Protecção Civil e da Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil.

O resultado é a crónica dificuldade em coordenar meios em cenários de grande dimensão, em que a rapidez e a disciplina hierárquica são cruciais. Por exemplo, em incêndios de grandes dimensões, que ultrapassam mil efectivos, é habitual estarem, no denominnado ‘teatro das operações’, bombeiros de mais de uma centena de corporações, sem sequer haver uma logística bem implementadas.

Os sucessivos Governos, de diferentes cores partidárias, têm evitado enfrentar esta questão estrutural. Em Espanha, a solução foi encontrada em praticamente todas as comunidades autónomas: criação de corpos profissionais de bombeiros-sapadores florestais, integrados nos serviços regionais de protecção civil, com treino permanente, vínculo laboral e disciplina operacional semelhantes às forças militares.

Nessa organização, os bombeiros voluntários assumem um papel complementar, sobretudo na protecção dos perímetros urbanos e na salvaguarda de habitações, deixando a resposta de primeira linha no espaço florestal para equipas profissionais do Estado. Portugal, pelo contrário, continua a insistir num modelo híbrido, dependente de estruturas locais fragilizadas, cuja coordenação central raramente funciona nos momentos mais críticos.

Também em Itália e França prevalece um modelo profissionalizado. Itália possui o Corpo Nazionale dei Vigili del Fuoco, uma estrutura estatal com efectivos treinados para diferentes cenários de risco, incluindo os incêndios florestais. Em França, a protecção civil assenta numa combinação de bombeiros profissionais e voluntários, mas com um comando centralizado e meios aéreos fortemente integrados, que asseguram resposta rápida e disciplinada em grandes fogos, sobretudo na região mediterrânica.

A Grécia, sobretudo após a catástrofe de 2007 e o desastre de Mati em 2018, também avançou para a criação de brigadas profissionais florestais, integradas no Serviço de Incêndios, com forte ligação ao exército e à guarda nacional, assumindo que a escala dos incêndios modernos exige uma estrutura permanente, estável e profissional. Existe voluntariado, mas numa percentagem inferior a 20% dos efectivos, que somente em situações especiais são accionados.

Portugal, pelo contrário, continua a insistir num modelo híbrido, dependente de estruturas locais fragilizadas, cuja coordenação central raramente funciona nos momentos mais críticos.

Este é,de facto, um absurdo paradoxo: sendo, por sistema, o país da União Europeia mais fustigado pelos fogos em termos territoriais, mantém-se um sistema mais próximo da lógica do voluntariado do que de uma resposta organizada de protecção do território.

história repete-se com o mesmo dramatismo e a mesma sensação de impotência. Portugal ultrapassou esta noite a mítica fasquia dos 200 mil hectares de área ardida em 2025, segundo os dados oficiais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), consultados e analisados pelo PÁGINA UM.

São já 203.422 hectares queimados, número que reconfirma este ano como o quarto pior desde que existem registos estatísticos, iniciados na década de 1940. A dimensão da tragédia equivale a 20 vezes a área da cidade de Lisboa, um valor simbólico que marca uma fronteira que todos sabiam ser possível, mas que se esperava, talvez ingenuamente, que pudesse ser evitada.

silhouette of trees on smoke covered forest

Até agora, a barreira dos 200 mil hectares só tinha sido superada em três ocasiões, todas já neste século XXI. A primeira foi em 2003, quando o fogo reduziu a cinzas 471.813 hectares. Dois anos depois, em 2005, voltou-se a cair no mesmo abismo, com 346.731 hectares devastados. Mais recentemente, em 2017, registou-se o pior ano de sempre, com 540.654 hectares queimados, uma ferida ainda aberta na memória colectiva.

O facto de 2025 se juntar a esta curta lista mostra que, apesar de duas décadas de planos estratégicos, de reestruturações sucessivas proclamadas na Protecção Civil e de discursos políticos inflacionados, Portugal continua incapaz de quebrar o ciclo da devastação.

A fotografia estatística de 2025 tem um rosto particularmente sombrio: o distrito da Guarda. Com 79.586 hectares destruídos, este é já o pior registo distrital do século XXI, correspondendo a cerca de 15% do território total do distrito. Em termos relativos, é uma tragédia que não encontra paralelo recente, deixando claro que o Interior profundo, despovoado e envelhecido, continua a ser o palco principal da catástrofe florestal. A Guarda, sozinha, concentra quase 40% da área ardida de todo o país.

Mas a devastação não se fica por aqui. Em Coimbra arderam 41.247 hectares, em Viseu foram 21.489 hectares, e em Bragança o fogo consumiu 13.877 hectares. Estes quatro distritos somam mais de três quartos da área ardida de Portugal em 2025, revelando uma desigualdade territorial chocante: enquanto os distritos do Interior vivem um cenário de catástrofe, no Litoral e no Sul quase nada se registou.

No extremo oposto, Lisboa conta apenas 63 hectares, Faro 32 e Leiria 26, números residuais que contrastam violentamente com os da Guarda. O país arde, mas arde sobretudo sempre nos mesmos sítios, como se a repetição fosse um destino inevitável.

Se os números anuais já seriam suficientes para definir 2025 como ano negro, o retrato mensal não deixa espaço para dúvidas: este mês de Agosto, ainda por terminar, é já o quarto pior mês deste século, com 166.316 hectares consumidos em apenas 19 dias.

Supera de longe qualquer outro Agosto da última década e só é ultrapassado por Agosto de 2003 (312.411 hectares), Outubro de 2017 (289.126 hectares) e Agosto de 2005 (212.917 hectares). Com quase duas semanas ainda pela frente, a perspectiva de que este Agosto suba no ranking da destruição é elevada, colocando em risco a estabilidade do país não apenas em termos ambientais, mas também económicos e sociais.

A sucessão destes números devastadores revela a falência de políticas que, desde 2003, se anunciaram como redentoras. Do Plano Nacional de Defesa da Floresta Contra Incêndios às reorganizações das corporações de bombeiros, passando pelo investimento em meios aéreos e pelo reforço orçamental das campanhas de prevenção, tudo parece esbarrar no mesmo problema estrutural: uma paisagem desordenada, um mundo rural abandonado e um Estado que se limita a gerir emergências em vez de intervir na raiz.

O resultado é o que se vê: hectares atrás de hectares transformados em cinza, com os mesmos distritos sempre na linha da frente do sacrifício. E Lisboa política a assistir pesarosa, embora com muitas culpas no cartório.

Mais do que estatísticas, há uma realidade crua: no mês de Agosto em curso, por cada hora que passou ardeu em média 385 hectares, ou seja, 9.240 hectares por dias – são mais de 10 mil campos de futebol a arder. E não é apenas a floresta que se perde. São solos que se degradam, habitats que desaparecem, populações que se sentem sitiadas, e depois abandonadas nas cinzas, e economias locais que ficam amputadas. Quando a Guarda perde 15% do seu território para as chamas, não é apenas a natureza que é devastada: é uma parte inteira do país que se apaga.

No fundo, a ultrapassagem da fasquia dos 200 mil hectares em 2025 não é apenas um número redondo e trágico. É a prova de que, duas décadas depois dos anos infernais de 2003 e 2005, e oito anos após o horror de 2017, Portugal continua prisioneiro do mesmo ciclo de fogo, incapaz de transformar a memória das tragédias em prevenção efectiva. Os discursos oficiais repetem-se, os planos multiplicam-se, exaltam-se os bombeiros, transformam-se as vítimas em heróis, mas a floresta, já cada vez mais débil e sem sustentabilidade, continua a arder com a mesma fúria. E, pior ainda, com a mesma previsibilidade.

Partilhe esta notícia nas redes sociais.