EM 1997, EM APENAS DUAS UNIVERSIDADES ENTRARAM 115 ALUNOS LOGO NA PRIMEIRA FASE

Divórcio absoluto: no ano passado só 15 das 54 vagas em licenciaturas no sector florestal foram ocupadas

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Pedro Almeida Vieira|22/08/2025

Portugal continua a arder, ano após ano – e este será pelo menos o quarto pior de sempre, com mais de 210 mil hectares já consumidos – numa espécie de ritual estival que junta a indiferença política ao conformismo social. Ardem os pinhais, ardem os eucaliptais, ardem os soutos e os matos que crescem sem dono e sem regra, ardem as aldeias que se esvaziam de gente e ardem as memórias de um país rural que já poucos querem lembrar.

No meio das cinzas, regressa sempre a mesma ladainha: lamentar a floresta maltratada. Mas essa dor é superficial, quase litúrgica, porque a verdade é que a floresta nem sequer é amada de verdade. Prova disso está num pormenor que deveria envergonhar qualquer governante: já quase nenhum jovem português quer estudar ciências florestais.

empty concrete road covered surrounded by tall tress with sun rays

Até aos anos 90 ainda havia entusiasmo. Em 1997, por exemplo, o Instituto Superior de Agronomia, da Universidade de Lisboa, abriu 55 vagas em Engenharia Florestal: todas preenchidas, oito em primeira opção. A Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), em Vila Real, ofereceu 60 vagas, também todas preenchidas, 11 em primeira escolha.

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A rede de escolhas era então vasta, ainda antes do Processo de Bolonha: além das licenciaturas de cinco anos, a Escola Agrária de Coimbra tinha um bacharelato em Engenharia das Operações Florestais; a de Bragança oferecia Gestão de Recursos Florestais; a de Castelo Branco tinha Engenharia da Produção Florestal; e ainda havia cursos em Viseu e na Escola de Tecnologia de Bragança.

Nos institutos politécnicos sobravam algumas vagas, mas por regra os bacharelatos – que tinham então a mesma duração das actuais licenciaturas – não eram, em todas as áreas, muito apetecíveis. O país formava então engenheiros e técnicos florestais em abundância, como se soubesse que o futuro da paisagem e a defesa contra os incêndios dependeriam deles.

Escola agrária e florestal por excelência, o Instituto Superior de Agronomia teve todas as suas 55 vagas em Engenharia Florestal ocupadas na primeira fase em 1997; no ano passado só 11 das 20 abertas.

Mas o entusiasmo esfumou-se depressa. Em 2006, já apenas três cursos sobreviviam, todos licenciaturas de três anos: em Lisboa, Vila Real e Coimbra – e mesmo aí a procura começou a escassear. O mundo urbano afastou-se do mundo rural, a política afastou-se das aldeias, e a floresta foi ficando sem quem a conhecesse de perto. Os anos mais recentes são um retrato cruel: os fogos intensificaram-se, mas o interesse pelas florestas desmoronou ainda mais.

Nos últimos cinco anos a crise tornou-se abissal. Em 2020, Coimbra ainda conseguiu preencher as suas vagas, mas a UTAD ficou reduzida a três alunos. Em 2021, de 26 lugares em Vila Real, só três foram ocupados. Em 2022, o desastre repetiu-se: apenas dois alunos escolheram a UTAD, enquanto ISA e Coimbra resistiam com as vagas preenchidas. Em 2023, já nem isso: dos 15 lugares disponíveis em Coimbra, só cinco foram ocupados; em Lisboa, dos 19 lugares, só 10; e em Vila Real, três alunos para 15 vagas.

E o último ano lectivo confirmou o declínio: 15 vagas em Vila Real, apenas duas preenchidas; 20 em Lisboa, só 11 ocupadas; 19 em Coimbra, apenas duas. No total, abriram-se 54 vagas em todo o país e entraram apenas 15 estudantes. Menos de um terço. O curso que formava os profissionais de que a floresta precisa para não arder ficou reduzido a estatística residual. No caso particular da UTAD, somente um regime de excepção por interesse nacional impede o encerramento definitivo da licenciatura.

a dirt road in the middle of a forest

“Os jovens são urbanos e o rural tem conotações negativas; na mente colectiva a floresta é vista ora como uma desgraça, apontando-se os eucaliptos e os fogos, ora surge romantizada, numa visão lírica de um espaço intocado. Quem tiver essas visões fugirá de um curso florestal e, quando muito, aqueles que tiverem a visão romantizada vão para Biologia”, destaca Paulo Fernandes, professor da UTAD e um dos principais especialistas nacionais em dinâmica de fogos rurais.

Na mesma linha, Teresa Ferreira, professora e presidente do Conselho Científico do ISA, releva que as ciências agrárias, incluindo as florestais, não conseguem cativar uma população jovem cada vez mais urbana, exactamente por causa da perda da ligação ao mundo rural. “Neste momento, quase só os jovens com ligações a famílias com propriedades rurais seguem estes cursos”, acrescenta, sublinhando também as dificuldades que estes sectores das universidades portuguesas têm tido em se modernizar e tornar os cursos mais atractivos.

Certo é que, apesar da escassez – ou, provavelmente, por causa da falta de novos licenciados –, os poucos diplomados não têm qualquer dificuldade em termos de saídas profissionais, mas quase todos seguem para as grandes empresas do sector florestal.

bonfire

Em suma, Portugal lamenta os fogos quando eles consomem aldeias e serras, mas não investe na floresta antes de ela arder. O divórcio é total: entre o mundo urbano que exige protecção contra incêndios e o mundo rural que já não tem quem cuide das árvores; entre a política que promete reformas e as aldeias que definham; entre os discursos inflamados e os cursos universitários vazios.

A floresta portuguesa, cada vez mais abandonada, é o espelho de um país que se habituou a viver entre cinzas. E quando passa a época dos fogos, os jovens urbanos continuam insensíveis.

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