INDICADOR DE EFICÁCIA SÓ TINHA SUPERADO O VALOR 100 POR TRÊS VEZES E MÁXIMO ANTERIOR ERA DE 189

339 hectares por cada incêndio em Agosto: conheça os números do verdadeiro colapso do sistema de combate

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Pedro Almeida Vieira|24/08/2025

Agosto de 2025 ficará gravado como o mês mais negro na já longa história do combate aos incêndios rurais em Portugal. E não por pouco. Embora o número de ocorrências não seja particularmente elevado – 2.255 registos, muito aquém dos mais de 10.486 ignições em Agosto de 2003 (o pior mês de sempre, em que arderam 312 mil hectares em 31 dias) –, a devastação ultrapassa qualquer parâmetro aceitável em termos de eficácia na extinção.

Até ao dia de hoje, de acordo com dados oficiais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), os 211.240 hectares de floresta, matos e áreas agrícolas já consumidos pelas chamas desde o dia 1 de Agosto farão deste mês o terceiro pior, assumindo que os 212.917 hectares dizimados em Agosto de 2005 serão ultrapassados.

Se a última semana do mês em curso não piorar os valores, Agosto de 2025 ficará apenas aquém dos tristemente lendários meses de Agosto de 2003 (312 mil hectares) e de Outubro de 2017 (289 mil hectares), neste caso ardidos em pouco mais de 24 horas devido a fenómenos meteorológicos absolutamente atípicos.

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Contudo, a tragédia de Agosto de 2025 atinge proporções históricas na ineficácia do combate, que nunca foi tão baixa, revelando fragilidades profundas no modelo português de resposta aos incêndios.

De facto, se o retrato absoluto já assusta, o retrato relativo é ainda mais chocante. Em Agosto de 2003, o primeiro mês dantesco da triste história dos fogos rurais em Portugal, cada incêndio destruiu, em média, cerca de 105 hectares, a primeira vez que se superou a fasquia dos 100 hectares. Esse valor manteve-se sempre como um triste recorde até Outubro de 2017, em que, por virtude de uma área ardida de 289 mil hectares em apenas pouco mais de 1.500 incêndios, se atingiu uma média de 189 hectares.

Evolução mensal da área média ardida por incêndio rural (excluindo fogachos) em Portugal, de Janeiro de 2001 a Agosto de 2025 (até dia 24). O valor registado em Agosto de 2025 é o mais elevado de sempre, atingindo 339 hectares por incêndio, muito acima dos anteriores picos de Outubro e Junho de 2017, Setembro de 2024 e Agosto de 2003. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.

Se Outubro de 2017 teve condições meteorológicas atípicas, que dificultavam o combate, já Setembro do ano passado devia ter sido mais um sinal do colapso do actual modelo de combate. Esse mês concentrou quase toda a área ardida de 2024 e cada incêndio (num total de 821) destruiu, em média, 154 hectares, um valor também absurdamente elevado.

Mas em Portugal, o absurdo pode sempre ser ultrapassado, mesmo com valores estratosféricos. No mês de Agosto de 2025, ainda em curso, cada incêndio consumiu em média 339 hectares – ou seja, quase 80% acima do recorde negativo anterior. E o número de ignições acima de um hectare (622) fica muito aquém dos três piores meses em área ardida: Agosto de 2003 contabilizou 2.980 incêndios (ocorrências com mais de um hectare), Outubro de 2017 contabilizou 1.531 e Agosto de 2005 teve 4.518. Ou seja, nesses períodos, o sistema de combate teve provas de fogo e falharam; agora, com menor intensidade de combate alargado, ainda falharam pior.

Mesmo quando se incluem os chamados fogachos (ignições de reduzida dimensão, inferiores a um hectare), a imagem é igualmente devastadora no presente mês de Agosto: cada ocorrência, mesmo contabilizando as mais pequenas, resultou em quase 94 hectares de área ardida em Agosto de 2025, ultrapassando largamente os 81 hectares de Outubro de 2017 e, sobretudo, os outros meses mais negros. Por exemplo, em Agosto de 2003, ainda o pior mês em área ardida, registaram-se 10.486 ignições (cerca de quatro vezes mais do que em Agosto de 2025), pelo que a média por ocorrência se fixou em 30 hectares.

Evolução mensal da área média ardida por ocorrência (inclui fogachos, incêndios florestais e agrícolas e ainda reacendimentos) em Portugal, de Janeiro de 2001 a Agosto de 2025 (até dia 24). O valor em Agosto de 2025 é o mais elevado de sempre, atingindo 94 hectares por ocorrência, muito acima dos anteriores picos (Outubro de 2017 e Setembro de 2024). Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.

Este contraste entre o número relativamente baixo de ignições em Agosto de 2025, sobretudo em comparação com 2003 e 2005, e a dimensão catastrófica dos danos não pode ser explicado pela meteorologia ou pelo acaso. O PÁGINA UM analisou todos os registos mensais desde Janeiro de 2001 até ao presente, e a conclusão é inequívoca: a máquina de combate está em colapso, mesmo com uma tendência de redução de ignições, e Setembro do ano passado já foi o primeiro sinal.

O país enfrenta hoje menos ignições do que há vinte anos – reflexo provável de maior sensibilização da população, menor incidência de actos dolosos e de práticas negligentes –, mas o dispositivo de supressão não conseguiu impedir que fogos de média e grande dimensão se transformassem em verdadeiros monstros incontroláveis.

A explicação para esta deriva não reside apenas nas condições de calor extremo ou na acumulação de combustível vegetal, factores que são comuns a outras épocas. O problema mostra-se estrutural: Portugal mantém um modelo de combate anacrónico, assente numa miríade de corporações pseudo-voluntárias, dependentes de subsídios e apoios, mas sem verdadeira coordenação estratégica.

Evolução do número de ocorrências (inclui fogachos, incêndios florestais e agrícolas e ainda reacendimentos) em Portugal, de Janeiro de 2001 a Agosto de 2025 (até dia 24). O valor registado em Agosto de 2025 é apenas o 80.º mês com mais ocorrências desde Janeiro de 2001. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.

Multiplicam-se as associações e estruturas locais, cada uma a reclamar mais meios e mais recursos, mas sem um planeamento central eficaz nem uma doutrina clara para debelar incêndios em regiões de risco acrescido, como o Centro e o Norte Interior, onde se concentram vastas manchas de povoamentos florestais, matos e áreas agrícolas abandonadas.

O país investe anualmente centenas de milhões de euros em meios aéreos, máquinas e dispositivos, mas falha naquilo que é essencial: prever e neutralizar os incêndios que, pela sua localização e condições, têm alta probabilidade de atingir grandes dimensões. Ao invés de uma estratégia nacional que privilegie o ataque inicial rápido e coordenado nos focos críticos, continua-se a gastar energias e recursos numa guerra de desgaste, em que milhares de homens são mobilizados para fogos já fora de controlo, enquanto os decisores políticos se escudam em discursos inflamados sobre a “coragem dos bombeiros”.

Agosto de 2025 é, por isso, um mês-síntese das contradições portuguesas: menos fogos do que no passado, apesar da tentativa de criar uma percepção diferente, mas incêndios cada vez mais devastadores; mais meios, mas menos eficácia; mais discursos de exaltação, mas menos resultados concretos. Se em 2003 e 2005 o drama pôde ser explicado pela combinação de um número extraordinário de ignições com condições meteorológicas extremas, e se em 2017 a tragédia se deveu ao caos de coordenação e falhas operacionais, o que hoje se observa é ainda mais inquietante: o sistema está, pura e simplesmente, a perder eficácia estrutural.

Indicadores dos 20 piores meses desde 2001. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.

Portugal habituou-se a viver com a retórica do “combate heroico” e com a lógica cíclica da “economia do fogo”: cada ano de desastre é seguido de promessas de reformas e investimentos, que logo se dissolvem na espuma das estações. As corporações locais, dependentes de subsídios, clamam por mais recursos, os fornecedores de meios aéreos multiplicam contratos milionários, e os políticos exibem-se nos “postos de comando” a debitar palavras de circunstância. Entretanto, a floresta arde, os solos erodem e as aldeias do interior esvaziam-se, ano após ano, numa espiral de abandono e desolação.

A tragédia de Agosto de 2025 não é, por isso, apenas o resultado de um verão quente. É o espelho de um modelo esgotado, incapaz de se adaptar à realidade contemporânea. O país reduziu drasticamente as ignições ao longo das últimas duas décadas, sinal de que já não somos a mesma sociedade de descuido e fogo posto dos anos 80 e 90. Mas, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão mal preparados para enfrentar os grandes incêndios que, inevitavelmente, surgem em zonas críticas.

silhouette of trees during sunset

Os desastrosos números da eficácia no combate – e há ainda outros indicadores que permitiriam reconfirmar este desastre, se forem disponibilizados – são um retrato fiel da falência do sistema. Não estamos perante um azar estatístico, mas perante um falhanço nacional que exige reflexão séria e reformas profundas.

Caso contrário, o próximo mês de Setembro, ou um outro qualquer em época de risco, poderá não ser apenas o pior em eficácia: poderá ser, pura e simplesmente, o pior de sempre em todos os indicadores. Com este modelo, todos os recordes negativos são possíveis de bater.

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