ANÁLISE DE UMA VERGONHA
Um crime por detrás do tapume

Como não seria de bom tom e justas se tornariam todas as críticas que apontassem depois contra mim, abstenho-me de começar pela descrição física da personagem. Posso, contudo, concentrar-me na sisudez, porque ao referir o seu ar de poucos amigos não identifico, apenas, um traço facial, mas uma pose: uma maneira de cobrir o rosto com a impaciência perante o que vê como latidos desprezíveis. A superioridade com que atravessa, incólume, o que entende por provocações absurdas. O ter mais que fazer, o haver pouco tempo para aturar os que o contrariem, a atitude de quem não dialoga com moscas, ou pedintes, ou Testemunhas de Jeová a insistir-lhe à porta, ou idiotas.
A sua presença nas assembleias municipais é um espectáculo de arrogância, prepotência e má-criação: não olhar nos olhos os que o contestam, não se rebaixar a ouvir pessoas que não apreciam o seu projecto e, se ousam discordar, só pode ser porque são comunistas – extremistas em todo o caso -, ou pobres patetas manipulados, ou lunáticos movidos a erva (os “ecotontos”, segundo a etiqueta que apõe) ou pior, inimigos políticos que a tudo deitam mão para efeitos de propaganda. É sempre à beira das autárquicas, insinua, que voltam à carga. Tão poucochitos, ironiza, que queriam fazer um cordão à volta da Quinta dos Ingleses (simbólico, em protesto) e só conseguiram um cordel.

Na história difundida pelo Ilustre Autarca Carlos Carreiras está tudo errado. Factualmente errado: esta contestação não integra formalmente representantes de forças políticas. Pelo contrário. O SOS Quinta dos Ingleses é um movimento cívico, na verdadeira acepção da palavra, cujos apelos para concentrações e manifestações trouxeram para a causa milhares de moradores. ↓
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A preocupação de independência leva a que, aceitando todos os apoios, recusem qualquer tipo de acordo privilegiado. Nenhuma organização fala por eles. O núcleo do movimento discute todos os passos, definindo colectivamente a estratégia. Que a associação não mobiliza um enfezado cordel, mostra bem a petição subscrita por onze mil pessoas, que, uma vez recebida na Assembleia da República, foi por ela tratada de forma absolutamente desastrosa e reveladora de uma triste incapacidade para pôr os interesses das populações acima de jogos partidários.
A Quinta dos Ingleses é, de vários pontos de vista, um património inestimável. Ecologicamente, porque alberga milhares de espécies, muitas delas raríssimas, e constitui um espaço natural de oxigenação e bem-estar entre a praia, já muito sacrificada pela proximidade de construções megalómanas, e a cidade; urbanisticamente, porque, diga o que disser o deputado João Almeida na intervenção que fez, tentando justificar o voto da AD, permitia actividades de ar livre, circuitos em bicicleta, piqueniques familiares, passeios com cães; historicamente, porque está nas origens da cidade de Carcavelos, com estruturas que remontam a séculos passados, vestígios arqueológicos, e outras que testemunham o trabalho pioneiro de comunicação por cabo, instalado junto à praia, e que inaugurou as ligações com a Inglaterra e a Índia, transformando Carcavelos num centro nevrálgico das comunicações mundiais. Tudo o que venho de expor são sinais atestados por cientistas em várias áreas, historiadores, biólogos.

Nesta história há vários desmandos, muitos responsáveis e cumplicidades inomináveis. Eis que faço entrar em palco uma empresa discreta chamada Alves Ribeiro. Antiga, com pergaminhos, muito dinheiro, alguma flexibilidade em matéria de escrúpulos morais, mas, apesar de tudo, uma certa preocupação com a imagem. Que haja contestação visível não lhes cai bem, como uma nódoa que preferiam evitar.
Apesar desse cuidado, ao abrigo de um direito sobre o terreno, cedido pela Câmara nos anos 60, e que sempre me soou pouco claro, mandou entaipar a Quinta com enormes placas de chapa, de forma a que se não percebesse muito bem, de fora, o que lá vai dentro. Ora nós sabemos o que lá vai dentro: máquinas e terraplanagens. Algumas pessoas inquietas e revoltadas (‘ecotontos”, repetiria Carreiras) pintam, pela calada da noite, sobre o branco das chapas, frases de alerta. “Ecocídio”, “Salvem a Quinta”, “Não ao Betão”. Mas a Alves Ribeiro e a Câmara estão atentas. Dispõem de recursos. No dia seguinte, as frases são raspadas. Ou escondidas à força de pinceladas. Noblesse oblige. Há que manter a imagem. Garantir o silêncio. Evitar o alarido. Os protestos. Há que fazer o trabalho sujo com gestos requintados, unhas aparadas e um sorriso de benfeitor.
O que se pretende fazer ali é monstruoso. Desculpem a palavra, mas outra seria um eufemismo. E é de um provincianismo atroz. Desculpem, agora, o termo elitista. No que devia manter-se um espaço protegido, planeia-se o ataque do betão, o crescimento de prédios-chique e a preços proibitivos para um habitante português em Carcavelos, mesmo de classe alta, hotéis, parques de estacionamento. Ou seja, ponham de parte, se a ideia vos passou pela mente, que se esteja a pensar no problema da habitação.
Não é só feio. Será grave. E perigoso.

Que se fez do sonho de que um autarca seria um líder ao serviço de todos, prestando atenção aos munícipes e não os hostilizando? Uma pessoa que não vê em qualquer bocadinho de floresta o terreno de desbastes, dinheiros, trocas, construções, sob a desculpa de que se plantam umas plantas aqui e outras ali, como se não fosse criminoso arrancarem-se árvores com centenas de anos, esburacar, diminuir as possibilidades de respirar ar puro?
Por baixo da capa fictícia de um Concelho verde, Senhores!, quanta asneira, quanto crime, que ignorâncias, que ambições, que cumplicidades, que lucros.
José António Pacheco é professor do ensino secundário