MESMO EM ASCENSORES HISTÓRICOS, LEI OBRIGA À FISCALIZAÇÃO DE COMPONENTES DE SEGURANÇA

Lei exigia que a substituição do cabo do elevador da Glória tivesse autorização e concordância do Instituto da Mobilidade e dos Transportes

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Pedro Almeida Vieira|11/09/2025

Mesmo tratando-se de verdadeiras relíquias do património urbano, como o Elevador da Glória, a lei nunca desresponsabilizou a Carris nem a dispensou de submeter ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) um vasto conjunto de elementos sempre que realiza intervenções estruturais. Ao contrário daquilo que o IMT tentou fazer passar numa primeira fase do acidente, antes de se saber da ruptura do cabo, uma leitura atenta do diploma legal que regula o regime especial para instalações de interesse histórico, cultural ou patrimonial é, na verdade, apenas uma flexibilização documental, e não uma dispensa de obrigações de segurança ou de fiscalização.

O cabo é o coração do sistema dos ascensores históricos: sem ele, os elevadores não sobem nem descem — e se falham, como falhou na semana passada, a viagem transforma-se em tragédia. Por isso, a lei trata-o como componente de segurança crítica, exigindo homologação, ensaios e autorização antes de transportar passageiros.

Com efeito, o regulamento em vigor desde 2020, e que revogou um decreto-lei de 2002, estabelece que as chamadas “instalações por cabo classificadas como instalações de interesse histórico, cultural ou patrimonial” — como os elevadores da Glória, Bica e Lavra — apenas beneficiam de dispensa da marcação CE ou da apresentação de declarações europeias de conformidade para componentes especialmente concebidos para elas.

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Porém, a regra de fundo mantém-se: qualquer alteração significativa que inclua “os subsistemas e componentes de segurança das instalações” carece de autorização prévia do IMT, e só pode ser executada após a apresentação de projecto, plano de ensaios e uma análise de segurança por organismo independente, escolhido pelo dono da obra (no caso, a Carris) mas aceite pela entidade reguladora.

Isto significa que a substituição do cabo tractor, efectuada no ano passado no Elevador da Glória pela MNTC – e que a Carris ainda não quis disponibilizar ao PÁGINA UM –, não poderia ter sido tratada como uma mera operação de manutenção rotineira. Por lei, mesmo para elevadores históricos, a Carris deveria ter instruído um processo administrativo prévio junto do IMT, contendo “análise de segurança para a fase de entrada em serviço e relatório de segurança” e posteriormente uma declaração que a alteração fora terminada acompanhada de “documentos que demonstrem a conformidade da instalação com os requisitos essenciais do regulamento”. Nessa linha, teria de ser enviado um “dossier técnico contendo o relatório final dos ensaios e verificações realizadas”.

A yellow tram travels uphill on its tracks.

Se este procedimento não foi cumprido na íntegra, o elevador poderá ter estado a operar de forma irregular, sem cobertura legal para transportar passageiros. E esta não é uma mera formalidade: trata-se do coração do sistema de segurança pública, destinado a prevenir acidentes graves e a responsabilizar as entidades exploradoras por todas as etapas do ciclo de vida do equipamento.

Mas as obrigações da Carris não se esgotam nesta fase em que houve uma alteração de uma componente do funcionamento e da segurança do elevador da Glória. E nem o IMT pode lavar as mãos por se tratar de infraestruturas de transporte histórico. Com efeito, em nenhum aspecto da legislação se isenta a empresa transportadora da obrigatoriedade de manter um sistema de manutenção documentado e um sistema de gestão da segurança capaz de lidar com situações normais e excepcionais.

Além disso, a lei impõe ainda que, de três em três anos, o IMT realize uma inspecção completa e emita autorização de continuação em serviço, após análise de um relatório intercalar de segurança que a Carris tem de enviar, acompanhado da prova de que dispõe de quadro técnico adequado, contratos de subcontratação aceites pelo IMT e seguro de responsabilidade civil válido.

Mesmo em regime patrimonial, a lei é clara: cópias do relatório de segurança, declarações de conformidade, documentação técnica dos componentes e registos de restrições de utilização teriam de estar disponíveis nas próprias instalações para que a fiscalização pudesse, a qualquer momento, auditar o histórico da infra-estrutura. Caso se verificasse falhas graves, o IMT tem competência para determinar a suspensão da exploração, com um prazo máximo de seis meses para reposição das condições de segurança, sob pena de revogação da autorização.

E mais: mesmo em elevadores históricos seria inadmissível que fossem colocados cabos que não estivessem homologados. A legislação refere que caso o IMT verificasse que “um componente de segurança provido de marcação CE de conformidade” pudesse colocar “em risco a segurança e a saúde de pessoas ou a segurança de bens” tinha a competência para determinar “a proibição da sua utilização ou a restrição ao seu campo de aplicação”. Ora, a Carris nem sequer quis informar ainda o PÁGINA UM quem foi o fornecedor do cabo e qual foi o custo.

Em suma, o discurso de que o estatuto patrimonial dos elevadores justificaria uma espécie de auto-regulação artesanal é, assim, insustentável. A responsabilidade continua a ser da Carris, que responde perante os utentes, trabalhadores e terceiros pelos riscos de exploração e pelos contratos de fornecimento de produtos e serviços. A subcontratação de técnicos ou de empresas para realizar inspecções e manutenções não transfere essa responsabilidade: apenas é admitida se os contratos forem previamente aceites pelo IMT e se for assegurado que os trabalhadores cumprem os requisitos de qualificação e que permanecem sob a direcção funcional da entidade exploradora.

Conselho de Administração da Carris.

A pergunta que agora se impõe, perante o desastre do Elevador da Glória, é simples: cumpriu a Carris todos estes passos? Foram submetidos ao IMT o projecto de substituição do cabo, a análise de segurança e o plano de ensaios? Existe relatório final de ensaios assinado por entidade independente? Foi emitida autorização de entrada em serviço antes de o elevador retomar a operação?

Questões para as quais não há resposta da Carris, até porque a empresa municipal, em relação às questões anteriores do PÁGINA UM, respondeu ontem a dizer que “está a receber inúmeras solicitações de entidades e de órgãos de comunicação social”, prometendo apenas que será “dada resposta com prioridade e a maior brevidade possível”. Foram endereçadas mais questões, que serão incluídas quando e se houver resposta.

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