OPINIÃO DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA
E se a esquerda fizesse Ventura Presidente? Isso seria… o fim do Chega

Portugal gosta de se apresentar como uma democracia semi-presidencialista. Mas, se formos rigorosos, talvez a melhor designação fosse um “pseudo-semi-presidencialismo” porque o Presidente da República – um órgão uninominal, ou seja, representado apoenas por si –, somente no papel tem poderes que impressionam: pode dissolver a Assembleia da República, demitir o Governo, vetar decretos e fiscalizar a constitucionalidade, nomeia os primeiros-ministros e chefes militares, pode convocar referendos.
Porém, na prática, quase tudo isto se esgota em raros momentos de crise – e raramente o seu papel se mostra determinante – , o poder não passa de um exercício de rotineira e delicada parcimónia, a famosa magistratura de influência, sabendo que, se ousar transgredir demasiado, se arrisca a transformar-se num pária institucional, isolado numa redoma de cristal com honras de figura decorativa, respeitado apenas pelo protocolo e tolerado pelo cerimonial. O peso político do Presidente português não se mede, pois, pelos decretos promulgados ou vetados, mas pelo equilíbrio que consegue manter entre a deferência e a invisibilidade.

Ora, é neste palco de poderes latentes, mas raramente usados, que André Ventura resolveu encenar a sua oitava candidatura em seis anos. É, convenhamos, um recorde para os manuais de ciência política e para os almanaques da estatística eleitoral: ninguém, no Portugal democrático, que me lembre, se candidatou tantas vezes em tão pouco tempo. Mas Ventura não é um político de manuais – é um homem de um partido que, com 60 deputados, vive na dependência absoluta da sua voz e do seu ego. O Chega, de facto, parece menos uma estrutura partidária do que um prolongamento do líder, uma corporação unipessoal travestida de movimento político. ↓
O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro.
A decisão de Ventura avançar para as presidenciais explica-se, paradoxalmente, pela sua força e pela sua fraqueza.
Força, porque recentes sondagens — as primeiras da história a colocarem o Chega como força maioritária — lhe dão um palco onde pode dançar à vontade, e ele nos últimos meses conseguiu assumir-se verdadeiramente como o líder de oposição, até face ao cinzentismo de José Luís Carneiro, incapaz de renovar um Partido Socialista à deriva e com os mesmos do costume.

Fraqueza, porque, justamente por estar no auge, Ventura não tem ninguém a quem delegar qualquer protagonismo para as Presidenciais. Gouveia e Melo, outrora visto como o almirante salvador, tornou-se indigesto: demasiado vaidoso para piscar o olho a um partido populista, demasiado enredado em anticorpos para uma coligação sequer tácita. Por seu lado, Marques Mendes e Cotrim de Figueiredo até seriam hipóteses aceitáveis para uma direita “respeitável”, mas jamais poderiam sê-lo à custa de o Chega admitir que não tinha candidatos seus – e isso seria uma derrota com o sabor amargo da irrelevância.
Restaria a André Ventura inventar uma figura interna, uma espécie de homúnculo político, desprovido de carisma e destinado a uma derrota sem glória. Mas isso já se viu com Tânger Corrêa nas eleições europeias que se quedou pelos 10%, demasiado pouco para um partido que se quer habituar agora a estar sempre acima dos 20%. E não há, em redor das primeiras linhas do Chega, ninguém com estatura institucional ‘presidenciável’ para não causar vergonha ou calafrios a Ventura.
Assim, Ventura escolheu o caminho mais arriscado, mas também o mais tentador: ser candidato ele próprio. A jogada tem lógica: Ventura não acredita que vá ganhar, pela taxa de rejeição que tem, mas acredita, com razão, que pode alcançar a segunda volta face à fragmentação ideológica dos candidatos. E alcançar a segunda volta já seria, para o seu eleitorado, um feito de glória, a consagração do homem que enfrentou o “sistema”.

Mas, paradoxalmente, há um cenário, pouco improvável, mas politicamente delicioso: imaginemos que a esquerda, no seu zelo punitivo, se unia para castigá-lo… elegendo-o Presidente. Seria uma vingança com travo hegeliano: a história a pregar uma rasteira dialéctica, transformando o triunfo em derrota.
Imaginemos o cenário: Ventura eleito Presidente da República. Um Presidente limitado, refém do dever institucional de ponderação, obrigado a pronunciar discursos mornos no 25 de Abril e a receber em Belém embaixadores de países longínquos. Um Presidente a quem o povo, por mais que o tenha (falsamente) amado na hora da escolha (concedendo-lhe um presente envenenado), rapidamente começaria a ignorar. E, sobretudo, um Presidente que deixaria vago o trono do Chega, esse partido de um só homem, para o qual não há sucessor, não há delfim, não há sequer sombra. Quem substituiria Ventura como líder do Chega? Pois, aí reside a tragédia — ninguém.
A filosofia tem, como sempre, imagens que nos ajudam a entender a ironia desta situação. Recordemos a parábola de Epimeteu, irmão de Prometeu. Epimeteu recebeu dos deuses a tarefa de distribuir qualidades aos animais: força, velocidade, astúcia. E foi gastando as dádivas sem pensar no futuro, até chegar ao homem — para o qual já não sobrava nada. Desesperado, teve de pedir ao irmão que roubasse o fogo dos deuses para compensar a falta.

Ventura, neste caso, é simultaneamente Epimeteu e Prometeu: distribuiu todas as qualidades políticas a si mesmo, deixando o partido sem reserva de talento; e roubou o fogo mediático para manter viva a chama do seu protagonismo. Mas, se fosse eleito Presidente, não poderia usar esse fogo — ficará sentado em Belém, com as mãos atadas, um Prometeu acorrentado não a uma rocha mas à liturgia constitucional.
Há também em Maquiavel um eco útil para compreender este dilema. O florentino aconselhava o príncipe a evitar o desprezo e o ódio, e a manter sempre a imagem de poder mesmo quando não o podia exercer. Porém, constitucionalmente, o cargo de Presidente da República Portuguesa é precisamente o contrário: obriga a renunciar ao exercício para preservar a imagem, obriga a não governar para não perder autoridade. Ventura, habituado a viver do choque, do insulto e do excesso, teria de se converter em guardião da compostura. Seria, nesse momento, como Sansão a cortar o cabelo: manteria a figura, mas perderia a força.
Quem quiser, de facto, neutralizar Ventura e enfraquecer o Chega, não tem já de o combater nas arenas parlamentares ou nos palcos televisivos. Basta elegê-lo Presidente da República. Conseguir isso seria a apoteose e a derrota, o clímax e a decadência numa mesma eleição. O homem que grita contra o sistema ficaria condenado a presidir ao sistema; o agitador tornar-se-ia figura de cortesia; o gladiador acabaria num trono cerimonial. O Chega, sem Ventura, tornar-se-ia irrelevante, um partido em estado vegetativo, reduzido a resmungos parlamentares e a intrigas de segunda linha.

É esta a ironia maior: Ventura corre à Presidência não para ganhar, mas para perder com estilo. Só não percebe que, se ganhar, perde de vez. E perder de vez, para quem construiu um partido à imagem do seu ego, é perder não apenas o poder, mas o próprio sentido de existir.
Talvez seja por isso que a melhor forma de travar o avanço do Chega seja não combatê-lo — mas aplaudir Ventura até à cadeira de Belém, onde se tornará o mais inútil dos presidentes e, por isso mesmo, o mais letal para o seu próprio partido.