ANA PAULA MARTINS UNIU-SE À INDÚSTRIA FARMACÊUTICA PARA SILENCIAR INVESTIGAÇÃO COMPROMETEDORA

Ministério Público arquiva processo instaurado por ministra da Saúde contra o PÁGINA UM

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Redacção PÁGINA UM|23/10/2025

O Ministério Público arquivou o inquérito-crime por alegada difamação movido contra o director do PÁGINA UM, que juntava, no mesmo lado da barricada, a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, o deputado social-democrata Miguel Guimarães, Eurico Castro Alves — amigo pessoal de Luís Montenegro, com quem passou férias no Brasil —, a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Farmacêuticos e a indústria farmacêutica, através da APIFARMA. A decisão, saída do DIAP de Lisboa e firmada em despacho com cerca de 72 páginas, conclui, sem ambiguidades, que a investigação jornalística do jornalista Pedro Almeida Vieira não preenche o tipo legal de crime de difamação.

Em causa estava um conjunto de reportagens e artigos de opinião sobre a campanha “Todos por Quem Cuida”, nascida sob os melhores propósitos em Março de 2020 e transformada, com o correr dos meses, num labirinto de regras elásticas, contabilidade paralela e uma arquitectura bancária difícil de explicar em qualquer manual de boas práticas. Na altura, a ministra da Saúde era bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e Miguel Guimarães ocupava a mesma função na Ordem dos Médicos, e foram os estrategos e ‘gerentes’ da referida campanha, que lhes concedeu reconhecimento público.

Ana Paula Martins, ministra da Saúde, juntou-se à indústria farmacêutica para processar o PÁGINA UM. O Ministério Público arquivou o processo-crime. / Foto: D.R.

A narrativa oficial foi durante muito tempo a do altruísmo: num país então assustado e um sistema de saúde sob pressão, duas ordens profissionais — a dos Médicos e a dos Farmacêuticos —, com o apoio da indústria farmacêutica, ergueram um canal para comprar e fazer chegar equipamento a quem dele carecia. A narrativa factual, reconstituída pelo PÁGINA UM com base em documentação administrativa, bancária e contabilística — que somente foi obtida após uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa —, revelou um esqueleto muito diferente escondido num armário de promiscuidades e impunidades.

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Desde logo, a conta por onde circularam cerca de 1,4 milhões de euros não era institucional. Não pertencia à Ordem dos Médicos, nem à Ordem dos Farmacêuticos, nem sequer à APIFARMA. Era uma conta particular, aberta a 2 de Abril de 2020, titulada por Miguel Guimarães (como primeiro titular), Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, movimentada com duas assinaturas. Estavam, portanto, três pessoas — independentemente dos cargos que ocupavam — a gerir donativos que o público associava a duas corporações profissionais.

Acresce que, a par desta singularidade, foram emitidas facturas em nome da Ordem dos Médicos, que deram entrada na sua contabilidade, mas os pagamentos eram satisfeitos através daquela conta privada, criando um “entre-dois” contabilístico que vem nos livros com outro nome: contabilidade paralela com possibilidade de criação de um ‘saco azul’ na Ordem dos Médicos. Nestas circunstâncias, e por definição, a linha entre a excepcionalidade administrativa e o expediente torna-se demasiado ténue.

Miguel Guimarães, antigo bastonário da Ordem dos Médicos e actual deputado do PSD: a pandemia, onde inquisitorialmente perseguiu colegas médicos com opiniões contrárias à sua, apesar de ser um mero urologista, deu-lhe projecção política. / Foto: D.R.

É aqui que a investigação jornalística assinalou — e documentou — outras fracturas. Os donativos superiores a 500 euros estavam sujeitos a Imposto do Selo de 10%; a estimativa conservadora apontava para cerca de 125 mil euros não liquidados ao qual Ana Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves se furtaram, independentemente da campanha ser altruísta. Além disso, a esmagadora maioria dos apoios de origem farmacêutica não foi publicitada no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, como a lei exige, e foi montada uma coreografia de declarações de mecenato para que as doadoras pudessem aproveitar benefícios fiscais reforçados, sem que houvesse o correspondente espelho documental de compras efectuadas por essas mesmas doadoras.

Isto é, o dinheiro entrou na conta de três particulares (Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves), as aquisições foram pagas por essa conta, os bens foram entregues a hospitais, IPSS e outros destinatários, embora as declarações destinadas a sacar benefícios fiscais tenham aparecido em nome das farmacêuticas. O efeito combinado foi o de maximizar deduções, à margem da lei e das regras fiscais, de quem deu o dinheiro e dissolver o lastro financeiro entre quem pagou, quem facturou e quem recebeu.

Uma posterior auditoria encomendada pela Ordem dos Médicos à BDO — apresentada como “prestação de serviços de auditoria às actividades e contas do fundo solidário” — confirmou o IBAN público, mas não equacionou a anomalia essencial: a conta não era institucional. E, no capítulo crucial, não enfrentou o desfasamento entre facturação na Ordem dos Médicos e pagamentos por terceiros, como se a mecânica fosse irrelevante para o relato da lisura. Quando o PÁGINA UM questionou a BDO sobre estas matérias, o seu representante legal, Pedro Guerra Alves, ameaçou com um processo judicial antes mesmo de ter sido publicada a notícia.

João Almeida Lopes, presidente da Apifarma: a indústria farmacêutica, que enviou cerca de 1,3 milhões de euros para uma conta conjunta de Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves durante a pandemia, conseguiu depois articular-se com os ‘gerentes’ da campanha “Todos por Quem Cuida” e as duas ordens profissionais, para contratarem a onerosa sociedade de advogados Morais Leitão. / Foto: D.R.

Saliente-se que a documentação operacional da campanha “Todos por Quem Cuida” esteve blindada cerca de dois anos. O acesso só sucedeu por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, circunstância que, por si, diz muito sobre a cultura de transparência a Ordem dos Médicos e da Ordem dos Farmacêuticos, na altura dirigidos por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, respectivamente.

Já sob a liderança de Carlos Cortes, os relatórios e contas de 2022 e 2023 da Ordem dos Médicos introduziram, pela primeira vez, uma nota às demonstrações financeiras a explicar que os três responsáveis pela campanha “ficaram fiéis depositários” de contribuições e, no “uso criterioso desses fundos”, canalizaram material para instituições e profissionais. Uma ‘lavagem’ mal feita.

Com efeito, a expressão — “fiéis depositários” — não tem, neste contexto, enquadramento judicial, não correspondendo ao que o Código Civil chama depósito, e mais parece uma retroversão narrativa para dar cobertura a um desenho que, em termos formais, jamais deveria ter acontecido. Tão relevante como o que se escreve é o que não se escrevia antes: nos relatórios de 2020 e 2021, a mesma campanha surge sem rasto equivalente, como se a sua dimensão financeira e o circuito dos pagamentos coubessem numa nota de rodapé invisível. O contraste não é um detalhe; é um indício.

Eurico Castro Alves, ao centro (o único sem máscara): amigo especial de Luís Montenegro, ministro-sombra da Saúde, foi o elo de ligação da indústria farmacêutica na campanha “Todos por Quem Cuida” que geriu 1,4 milhões de euros com contabilidade paralela, fuga aos impostos e benefícios fiscais indevidos.

No âmbito da campanha, houve possibilidade para vários ‘favores’. Por exemplo, Miguel Guimarães permitiu que um donativo de máscaras se transformasse num esquema lucrativo da farmacêutica Merck. Também com dinheiros da campanha negociou-se com Gouveia e Melo, e com o Hospital das Forças Armadas, a vacinação de médicos não prioritários em Março de 2021, ultrapassando-se competências e a norma da Direcção-Geral da Saúde.

No âmbito desse processo, Miguel Guimarães — que ascenderia depois a deputado social-democrata — aproveitou também para dar uma ‘boleia ilegal’ a uma “personalidade política” para que lhe fosse administrada uma dose de vacina contra a covid-19, não estando nas prioridades, por uma “questão de necessidade e oportunidade”. Nunca foi revelada a identidade nem de que “necessidade e oportunidade” se tratavam, e uma auditoria da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS), liderada por Carlos Carapeto, não se mostrou interessada em desvendar. Passou uma esponja sobre este assunto.

Foi neste contexto que, perante a baixa repercussão pública e mesmo judicial das denúncias do PÁGINA UM, os visados se sentiram seguros da sua impunidade e se juntaram numa queixa por difamação, pedindo ao direito penal que tratasse como delito o que é, por natureza, escrutínio público. E curiosamente, todos se juntaram para serem representados pela sociedade de advogados Morais Leitão. Ou seja, a indústria farmacêutica e a ministra da Saúde fizeram uma ‘vaquinha’ para contratarem o mesmo advogado.

Carlos Cortes, actual bastonário da Ordem dos Médicos: apesar de as queixas contra o PÁGINA UM terem provindo do seu antecessor, Miguel Guimarães, nunca explicou a contabilidade paralela da campanha “Todos por Quem Cuida” que fez entrar facturas sem fluxo financeiro de saída, o que permitia a criação de um ‘saco azul’. Apesar deste arquivamento, a Ordem dos Médicos tem outro processo activo contra o PÁGINA UM que irá para julgamento em Novembro. / Foto: D.R.

Porém, o Ministério Público não se comoveu com a procissão de títulos, cargos e poder financeiro e político dos acusadores. O procurador Nuno Morna de Oliveira arrolou as peças jornalísticas com data e hora, reuniu as versões em confronto, cotejou documentos, anotou justificações sobre a urgência pandémica, a dupla assinatura nos movimentos bancários, a existência de regulamentos e comissões e as alegadas isenções fiscais, e fez o que a lei manda: ponderou honra e liberdade de expressão, direito penal e interesse público.

O despacho do procurador recupera a Constituição, invoca a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que tem, há décadas, uma linha firme: figuras públicas e instituições com poderes e dinheiros devem suportar um nível mais elevado de crítica; a crítica pode ser dura, pode recorrer à hipérbole e à ironia, desde que ancorada em base factual suficiente e dirigida à conduta pública, não ao insulto gratuito. E foi nesta moldura que o magistrado escreve o essencial: “a conduta imputada ao arguido [Pedro Almeida Vieira] não integra o crime de difamação”, pelo que se determinou o arquivamento do processo.

A relevância deste despacho ultrapassa o seu efeito imediato. Primeiro, porque não é um cheque em branco passado às práticas que foram expostas. O Ministério Público considera que não é difamação, no contexto dos factos revelados pelo PÁGINA UM, revelar que não é valida nem legal a opção da ministra da Saúde e do agora deputado social-democrata Miguel Guimarães por uma conta privada para gerir donativos que o público associava às ordens profissionais, de acusar a omissão no Portal do Infarmed, de destacar o não pagamento de Imposto do Selo, e de apontar contabilidade paralela e declarações falsas destinadas a benefícios fiscais.

Extracto do e-mail de 17 de Março de 2021 enviado por Miguel Guimarães a Gouveia, admitindo a administração de uma dose “em Lisboa a uma personalidade política, por uma questão de necessidade e oportunidade”. Este e-mail era um dos documentos a que o PÁGINA UM teve acesso, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, para verificar a gestão da campanha “Todos por Quem Cuida”, cujo dinheiro serviu para negociar com Gouveia e Melo, a troco de 27 mil euros entregues ao Hospital das Forças Armadas, a vacinação de médicos não-prioritários contra as normas então em vigor da Direcção-Geral da Saúde (DGS).

Diz apenas — e é muito — que não se criminaliza jornalismo que trabalha com documentos, cronologia, números e perguntas legítimas. Segundo, porque reinstala a liberdade de imprensa como função institucional do Estado de Direito: onde há dinheiro, função pública, apoios e regulação, há interesse público máximo e, por isso, tolerância reforçada para a crítica que desmonta narrativas convenientes.

Há, ainda, a pedagogia que interessa reter. Quando duas ordens profissionais, com capacidade financeira e influência pública, optam por uma engenharia financeira que dispensa as suas próprias contas oficiais e deposita 1,4 milhões de euros numa conta de três pessoas, o ónus de explicação não é de quem pergunta: é de quem decidiu, assinou e geriu – e depois ainda é ‘galardoado’ com cargos públicos que mexem com verbas que tornam 1,4 milhões de euros em trocos.

Note-se, contudo, que a ministra da Saúde, em articulação com a indústria farmacêutica (Apifarma), e demais queixosos, pode requisitar à sociedade de advogados Morais Leitão para que requeira abertura de instrução para levar o caso à barra do tribunal. Dinheiro para isso, não faltará nunca, certamente.

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Artigos analisados pelo Ministério Público publicados pelo PÁGINA UM

i) em 09.12.2022, um artigo com o título “Fundo solidário de farmacêuticas deu condições para criar “saco azul” de mais de 968 mil euros na Ordem dos Médicos… e há muito mais”;

ii) em 11.12.2022, um artigo de opinião com o título “Senhor Doutor Miguel Guimarães, o seu fundo é de barro e não é nada à prova de bala”;

iii) em 23.02.2024, um artigo com o título “Miguel Guimarães e Ana Paula Martins geriram em conta pessoa fundo solidário de 1,4 milhões pejado de irregularidades. Não se sabe onde para a auditoria prometida”;

iv) em 03.04.2024 e 04.04.2025, respectivamente, um artigo intitulado “campanha solidária na pandemia pejada de ilegalidades e irregularidades fiscais – Ministra da Saúde geriu em conta pessoal 1,3 milhões de euros dados por farmacêuticas sem pagar imposto de selo” e “Das forças e das fraquezas da imprensa mastodôntica”;

v) em 19.07.2024, um artigo intitulado “Farmacêuticas doaram cerca de 1,3 milhões de euros a Ana Paula Martins e Miguel Guimarães – Pseudo-auditoria da BDO tenta limpar ilegalidades de campanha gerida por conta pessoal da ministra da Saúde e de Deputado do PSD”.

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