ADMINISTRAÇÃO CENTRAL DO SISTEMA DE SAÚDE ESCONDE DO PÁGINA UM BASE DE DADOS DOS INTERNAMENTOS

70 euros de multa diária: dirigentes do Ministério da Saúde condenados a pagar (do seu bolso) por desrespeitarem sentença do tribunal

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Pedro Almeida Vieira|06/11/2025

A paciência dos tribunais por vezes também se esgota. O juiz Miguel Crespo, do Tribunal Administrativo de Lisboa, condenou cada um dos quatro membros do Conselho Directivo da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) — André Trindade, Carlos Galamba, Sandra Brás e Paula Oliveira — ao pagamento de uma multa diária de 70 euros até que cumpram integralmente uma sentença de finais de 2022, já confirmada pelo Supremo Tribunal Administrativo, que obrigava esta entidade pública a entregar ao PÁGINA UM a base de dados anonimizada que regista os internamentos hospitalares em Portugal.

Trata-se do desfecho de um processo exemplar da opacidade institucional, arrastado ao longo de três ministros da Saúde (Marta Temido, Manuel Pizarro e Ana Paula Martins) e de duas presidências da ACSS (Victor Herdeiro e André Trindade), e que se tornou símbolo maior da resistência burocrática ao escrutínio público.

Ao centro, Ana Paula Martins, ministra da Saúde; na ponta direita, André Trindade, actual presidente da ACSS; e na ponta esquerda, Victor Herdeiro, ex-presidente da ACSS, que durante mais de dois anos lutou para esconder e manipular uma base de dados,. Foto: ACSS.

A história deste calvário judicial começou em Julho de 2022, quando o PÁGINA UM solicitou acesso à Base de Dados Central dos Grupos de Diagnóstico Homogéneos (GDH) e à reposição da Base de Morbilidade e Mortalidade Hospitalar no Portal da Transparência do SNS, que tinha sido subitamente retirada meses antes por decisão de Victor Herdeiro, então presidente da ACSS e homem de confiança de Marta Temido. A clara intenção de Victor Herdeiro ao retirar a segunda base de dados do Portal da Transparência do SNS — uma versão simplificada da relativa aos GDH — era “estancar” a possibilidade de o PÁGINA UM prosseguir um conjunto de investigações sobre a gestão da pandemia, sobretudo no caso das afecções não-covid.

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Com o pedido apresentado no Verão de 2022, ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, o PÁGINA UM pretendia, para um período temporal mais alargado e com maior detalhe, realizar uma análise da evolução das doenças, das taxas de internamento e da performance dos hospitais públicos — informação vital que o Ministério da Saúde nunca tratou com transparência, preferindo guardá-la como se fosse segredo de Estado.

Apesar das sucessivas decisões judiciais que reconheceram o direito do jornal a aceder à informação, a ACSS adoptou uma estratégia deliberada de evitar a sua divulgação: primeiro alegando que a anonimização dos dados seria impossível; depois, invocando o volume de registos e até supostos direitos de propriedade.

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Três anos a esconder uma base de dados ‘ameaça’ terminar só depois de uma sentença determinar uma multa diária a ser paga pelo bolso de gestores públicos.

Ainda assim, os tribunais administrativos, por três vezes, deram razão ao PÁGINA UM. Contudo, quer sob a presidência de Victor Herdeiro quer sob a de André Trindade, a ACSS continuou a desrespeitar as ordens judiciais, tentando entregar versões truncadas e mutiladas da base de dados, removendo variáveis essenciais e suprimindo a desagregação hospitalar. O resultado era um ficheiro inócuo, incapaz de revelar padrões epidemiológicos ou medir o desempenho das unidades de saúde — uma simulação de transparência.

Depois de meses de tentativas de diálogo — incluindo duas reuniões presenciais na sede da ACSS —, o PÁGINA UM viu-se obrigado, no final do ano passado, a avançar com um “incidente de incumprimento”, mecanismo legal que permite responsabilizar pessoalmente os dirigentes públicos pelo não cumprimento de uma sentença transitada em julgado.

Mas o processo, que deveria ser simples, transformou-se numa ópera bufa de incompetência e má-fé, sobretudo por parte dos actuais dirigentes da ACSS. Após a oficial de justiça encarregada das notificações se ter enganado por duas vezes no envio, quando finalmente as remeteu para o endereço correcto — o edifício 16 do Parque de Saúde de Lisboa, junto ao Hospital Júlio de Matos — começou uma autêntica comédia de evasão institucional.

Carlos Galamba, Sandra Brás, Paula Oliveira e André Trindade: por cada dia sem cumprir a sentença, dirigentes da ACSS vão ficar sem 70 euros. Veremos se mantêm agora a “coragem” de recusar a informação ao PÁGINA UM.

O carteiro dos CTT, que tentou por duas vezes entregar as notificações, encontrou “portas fechadas” — não por ausência, mas por ordem. Em ambas as tentativas, nenhuma das quatro cartas foi reclamada, apesar de existir uma recepção e serviços administrativos na ACSS. Todas as notificações regressaram ao tribunal com a menção “objecto não reclamado”: um eufemismo administrativo para “fuga deliberada”. A ACSS, entidade tutelada pelo Ministério da Saúde, recusou ostensivamente receber notificações de um tribunal.

O juiz Miguel Crespo tomou, em todo o caso, uma decisão, mesmo perante este absurdo desrespeito institucional de meros funcionários públicos de confiança política. A sentença agora proferida marca um ponto de viragem. Pela primeira vez, os dirigentes da ACSS são pessoalmente responsabilizados — e cada dia de atraso custar-lhes-á 70 euros, título de “sanção pecuniária compulsória”, até que cumpram o que a lei e os tribunais determinaram há mais de dois anos. A medida é rara e demonstra a gravidade da desobediência. No essencial, o tribunal reconhece que não se trata de um erro administrativo ou de interpretação, mas de uma recusa consciente e continuada em cumprir uma obrigação legal de transparência.

Além da sentença, o juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa não deixa espaço para mais fugas interpretativas por parte da ACSS. A base de dados dos GDH contém 46 variáveis, mas a ACSS insistia em eliminar 26 e em agregar outras quatro, suprimindo detalhes como a idade e a identificação do hospital. Na prática, pretendia entregar uma base de dados inútil, sem valor analítico.

Agora, o juiz Miguel Crespo vem esclarecer que apenas sete variáveis pouco relevantes — “seq-number” (substituível pelo número fictício de utente), “Data_Nasc” (substituível pela idade), “Freguesia”, “Hora_urgência”, “Hora_entrada”, “Hora_saída” (que são irrelevantes, porque se tem as datas) e “versão_icd” — são “susceptíveis, directa ou indirectamente, de permitir ou facilitar a identificação de pessoas singulares ou contribuir para a sua identificação, pelo que devem ser objecto de anonimização”.

Lista das 46 variáveis da base de dados dos Grupos de Diagnóstico Homogéneos: a ACSS queria eliminar 26 e agregar quatro, tornando inútil qualquer análise.

Todas as restantes devem ser integralmente disponibilizadas, incluindo variáveis que permitem uma análise epidemiológica e hospitalar detalhada, como o hospital de internamento, o concelho de residência, a data do internamento e a evolução das doenças ou afecções e o desfecho clínico (alta, transferência ou morte).

Resta agora saber se, depois desta sentença, a ‘coragem’ dos quatro membros do Conselho Directivo da ACSS se manterá, insistindo em recusar o acesso à base de dados dos GDH de forma ostensiva e prepotente. Para cada um deles, essa ‘coragem’ não lhes custará demasiado: “apenas” cerca de 2.100 euros por mês a menos no salário, ou seja, 70 euros por dia.

N.D. Este foi um dos mais longos, morosos e onerosos processos do PÁGINA UM no âmbito das intimações que tem vindo a apresentar nos tribunais administrativos, e que, neste caso, em concreto, tiveram o inexcedível patrocínio jurídico do advogado Rui Amores e o apoio financeiro dos leitores através do FUNDO JURÍDICO.

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