EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA
Filipe Alves, ou a hipócrita solidariedade de um torpe homúnculo

Decorre, desde a semana passada, no Campus de Justiça de Lisboa um julgamento em que me sento no banco dos arguidos por, entre outros, obra e graça do Almirante Gouveia e Melo. O meu ‘crime’ foi denunciar no PÁGINA UM as negociatas realizadas em Fevereiro de 2021 entre o então líder da task force e o então bastonário da Ordem dos Médicos (e actual deputado do PSD) Miguel Guimarães para se vacinarem cerca de quatro mi médicos que não se inseriam nas prioridades da norma 002/2021 então em vigor.
O agora candidato a Presidente da República não só extravasou as competências que detinha à data como contrariou de forma grave a norma da DGS, numa altura de escassez, pelo que, dessa forma, tanto como ele Miguel Guimarães preferiram vacinar quatro mil médicos sem contacto com doentes em vez quatro mil idosos com mais de 80 anos. Estas notícias do PÁGINA UM caíram em saco roto nos restantes media, o que até permitiu que numa análise prévia da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS), a inspectora Aida Sequeira a data de uma alteração da norma 002/2021 para dar uma aparência de legalidade onde só havia negociata e falta de ética.

Presumo que não é todos os dias que um jornalista no exercício das suas funções se senta no ‘banco dos réus’ por iniciativa de um candidato presidencial – e ainda mais no contexto deste caso. Mas, apesar disso, e por aquilo que me apercebi, só a Lusa fez uma breve (e muito incompleta) notícia sobre o tema, tendo a jornalista perdido, pelo facto de não ter estado presente à tarde, a oportunidade de saber que corre no DIAP não apenas uma investigação sobre alegadas irregularidades em pagamentos ao Hospital das Forças Armadas (no âmbito da tal negociata da vacinação dos médicos não-prioritários) como outra investigação sobre a gestão da campanha ‘Todos por quem cuida’ que envolve directamente a a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves, amigo íntimo de Luís Montenegro. ↓
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No decurso deste processo judicial – que é duplo, porque está apenso outro em que os assistentes são a própria Ordem dos Médicos e os médicos Miguel Guimarães, Filipe Froes e Luís Varandas – tenho recebido muitos apoios e solidariedade de leitores do PÁGINA UM, e alguns (não muitos) de camaradas de profissão.
Mas é sobre solidariedades que esta crónica se faz. Porque há solidariedades que nascem da amizade, outras da confiança, outras da nobreza de espírito – mas há também aquelas, raras mas inconfundíveis, que exalam um perfume tão barato quanto o carácter de quem as oferece.

A recente manifestação de “solidariedade” de Filipe Alves, director do Diário de Notícias, pertence, sem sombra de dúvida, a esta última categoria: um mimo de pacotilha disfarçado de magnanimidade pública, que não engana quem ainda conserva intactos o olfacto moral e a paciência para distinguir trigo de palha.
Vejamos: o director do Diário de Notícias — esse mesmo que dirige um jornal cuja uma empresa está em falência técnica, atolada em dívidas ao Estado e que, em prodigiosa demonstração de opacidade, se recusa há 120 dias entregar a Informação Empresarial Simplificada na Base de Dados das Contas Anuais — publicou uma prosa melíflua na qual se apresenta como apóstolo da liberdade de expressão e mártir da tolerância. Fá-lo, no entanto, com a subtileza de um hipopótamo a dançar sobre cristais.
Antes de manifestar a sua “solidariedade”, avisa os seus incautos leitores (nas redes sociais) de que recentemente não avançou judicialmente contra mim porque tem causas mais úteis para a sua saúde mental e familiar — uma forma oblíqua de insinuar que só um tresloucado me processaria, e que, em boa verdade, me não processa por magnanimidade, não por falta de razão. Nada seria mais enternecedor, não fosse isto apenas a antecâmara do seu golpe de rins.

Porque o homem, para me conceder solidariedade, reincide nas mesmas acusações absurdas que pespegou o seu jornal em Agosto passado: repete que “não declaro rendimentos”, que confundo funções, que sou um disparate ambulante. Ou seja, a sua solidariedade é uma espécie de dádiva que lhe permite voltar a caluniar-me com redobrada condescendência. Isto não é solidariedade: é pulhice. Ainda mais quando arrisca ser obrigado pelo tribunal judicial a publicar direitos de resposta que me negou no jornal que, sendo já uma sombra decrépita do passado, conjunturalmente dirige.
E depois vem o remate sublime: Filipe Alves — sempre com aquele tom de virgem ofendida por se ver apanhada num bordel — declara que “compreende e respeita as pessoas que se sentiram ofendidas” por aquilo que eu escrevi, entre os quais se encontram o seu colunista Filipe Froes e o seu querido e idolatrado Gouveia e Melo.
E fá-lo sem demonstrar o menor interesse em saber o que está realmente em causa, como convém ao devoto que nunca questiona o oráculo. A sua melhor solidariedade seria enviar um jornalista ao julgamento para fazer jornalismo. Mas Filipe Alves dispensa inquéritos, factos e documentos: basta-lhe uma fé cega, conveniente e politicamente alinhada.

Mas a verdadeira pérola surge quando se refere à minha “forma de estar na vida”, para contrapor que é diferente da dele — supostamente mais elevada. Que sabe ele da minha vida, das minhas escolhas, do meu trabalho, do meu percurso? Nada — mas isso nunca impediu um hipócrita de pontificar. A solidariedade, aqui, não passa de pretexto para repetir insinuações, reavivar manipulações e tentar, com mão leve, embrulhar lama em papel de embrulho de Natal.
Dir-me-ão: por que não o processo depois do que escreveu em Agosto e desta repetição pública. E a resposta é simples — mas tem de ser dita com franqueza. Primeiro, porque é de mau tom processar profissionais do mesmo métier, mesmo se maus — a punição deve ser concedida pelos leitores, algo que já sucede no caso do Diário de Notícias.
Segundo, receio sinceramente que, perante a exuberância do seu texto e a fragilidade das suas ilações, um tribunal acabe por declará-lo inimputável, não por malícia, mas por generosa compaixão clínica.

Terceiro, porque sempre me pareceu mais elegante brindá-lo, não com o estrépito da litigância, mas com aquilo a que os nossos prosadores oitocentistas chamariam umas bordoadas de pena: dou-lhe golpes de escrita à moda antiga, vibrados com a compostura aristocrática de uma luva de pelica, que não esmagam o corpo mas, com paciente crueldade, reduzem o amor-próprio do visado a pó — pó esse que nada mais é do que a decantação natural da lama retórica que os seus intestinos, usurpando funções ao cérebro, têm o deplorável hábito de esguichar sobre o mundo.
Convenhamos: quem se aventura a escrever aquilo que Filipe Alves escreveu sobre mim não merece o solene aparato de um tribunal; merece antes os correctivos literários que outrora Camilo ou Eça reservavam aos espíritos tacanhos, que, não podendo elevar-se, insistem em rastejar.
E aqui convém acrescentar também algo óbvio: a credibilidade do personagem está ao nível da tiragem do Diário de Notícias, e o impacto das suas palavras rivaliza com o de uma nota de rodapé mal impressa. Mas isso, em todo o caso, não me impede de sentir um profundo asco perante a teatralização deste súbito abraço simbólico, que mais não é do que uma tentativa de encenar generosidade onde só existe cálculo.

Termino como comecei: há adversários cuja solidariedade se aceita, porque nasce da grandeza, da frontalidade, do respeito mútuo, mesmo quando se combate. Filipe Alves, director do Diário de Notícias, não é adversário de ninguém; é apenas um torpe homúnculo, desses seres civicamente anões que acreditam que gestos falsamente amáveis podem mascarar carreiras feitas de velhacaria ladina, petulância imberbe e hipocrisia saloia.
Que me poupem, pois, às solidariedades de opereta. Prefiro a hostilidade honesta de quem assume a própria posição à solidariedade fingida dos que se ajoelham apenas para parecerem grandes.
Assim, fica dito. Com a precisão e a higiene que o caso merece.