EM VEZ DE ACOMPANHAR A WEB SUMMIT, PÁGINA UM FOI VER O OUTRO LADO DA 'CIDADE DOS UNICÓRNIOS'
Casal Ventoso é (novamente) um ‘shopping de drogas’ aberto a tempo inteiro

A manhã estava cinzenta e a chuva já ameaçava cair. Na outra ponta da cidade, convidados da Web Summit preparavam-se para discutir as últimas inovações tecnológicas e promover Lisboa como a capital da inteligência artificial por uns dias. Mas na zona do antigo Casal Ventoso o ambiente é outro: miséria, desolação, abandono.
O PÁGINA UM visitou o local com o psiquiatra Luís Patrício, uma “autoridade” nacional em matéria de prevenção e tratamento da toxicodependência e que foi co-fundador do centro de desintoxicação das Taipas, o primeiro do género em Portugal. O que encontrámos, ao realizar esta reportagem, foi um centro comercial de drogas a céu aberto, num ecossistema onde consumidores e traficantes convivem lado a lado com bairros residenciais e famílias no seu dia-a-dia.

As várias reportagens jornalísticas e denúncias que têm sido feitas nos últimos anos sobre aquela zona têm tido pouco efeito prático. Localizada na freguesia de Campo de Ourique, a zona foi alvo de reconversão há 26 anos, com o realojamento de moradores e novos bairros, mas está em acelerado processo de degradação. Pedro Costa, membro do secretariado nacional do PS e filho do ex-primeiro-ministro António Costa, liderou aquela junta de freguesia entre 2021 e 2024, altura em que renunciou ao cargo para ser director-geral de uma empresa de comunicação, a GCI Media. A freguesia é agora presidida por Ana Mateus, da coligação liderada pelo PSD. ↓
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A nossa visita ao antigo Casal Ventoso começou na Rua Maria Pia, onde a pressão imobiliária já se faz sentir, com apartamentos novos ou renovados a serem vendidos a preço de ouro. Mas persistem vestígios que remontam ao passado de degradação — um muro tosco, pintado de cinzento, esconde o passado, mas também um presente que ninguém parece querer ver.
Logo na “meia laranja” — como é conhecido um miradouro existente junto a um cruzamento da rua — tornou-se de imediato evidente, pelos jovens que por ali pousavam àquela hora da manhã, que a venda de droga é uma realidade habitual naquele ponto da rua.


Mas é na parte das “traseiras” da “meia-laranja” que começamos a perceber a dimensão real do problema de consumo e tráfico de droga naquela zona da capital. Logo que damos os primeiros passos, encontramos seringas, isqueiros e outros vestígios de que é um local onde se consome droga.
Ali, nas “traseiras” da Rua Maria Pia há um mundo à parte. Fachadas de prédios esburacadas estão parede meias com prédios em construção, que nascem em sintonia com o negócio milionário em que se tornou a habitação em Lisboa. Ao longo das fachadas dos prédios e dos muros, ervas daninhas e vegetação variada misturam-se com azulejos de casas que ali já foram o tecto de famílias, formando uma paisagem tão fantasmagórica quanto bela.



Mas o que vamos encontrando no chão revela uma outra realidade, um mundo à parte, de abandono, miséria e degradação. Todo o terreno encontra-se pejado de seringas usadas, isqueiros, caricas e papel de prata — usados no consumo de heroína. Também se vêem preservativos por usar espalhados pela vegetação — às dezenas. Costumam ser distribuídos com kits oferecidos a toxicodependentes, mas o seu destino são estas lixeiras ao ar-livre. “Nesta fase, um toxicodependente não só já não consegue, como não tem libido sequer”, afirmou Luís Patrício.
Cada árvore tem por debaixo um amontoado de lixo e dejectos e uma ou duas peças de roupa penduradas em ramos. Mas ali, naquele lugar esquecido, não apenas se consome droga diariamente. Ali, vive gente. Por detrás de tijolos partidos em fachadas em ruínas há “camas” feitas no chão onde dorme quem já não tem nada a não ser o vício da droga.


Ao fundo do terreno, dois “túneis” fechados são hoje “casa” para alguns que pernoitam e, naquela manhã, se abrigam da chuva fria que começa a cair. Lençóis velhos servem de porta a estas “casas” com vista para o verde de Monsanto e para os viadutos. Ao longe, os carros passam velozes a caminho da Ponte, na azáfama do dia — pequenos, de várias cores, a fazer lembrar carrinhos de brincar.
Caminhando na colina, para baixo, mais abrigos improvisados. Desta vez, são tendas feitas de panos, plásticos, móveis e monos. A chuva já caia a sério e molhava tudo. A cada passo, mais uma ou duas seringas se moldam ao solo, engolidas pela terra, ficando cravadas no terreno junto com pedras, isqueiros e caricas. Vestígios que ficarão ali para a posteridade, como peças arqueológicas a retratar uma época.


Avançando de regresso às traseiras da “meia-laranja”, chegamos junto à longa escadaria que leva a um jardim. Com a chuva pesada, apenas avistamos por ali um homem a passear o cão e uma outra pessoa a passar naquela zona que é usada como eixo pedonal de ligação para acesso às paragens de autocarro na Rua Maria Pia.
No jardim, o cenário que encontramos é de abandono do espaço público. Numa colina, uma avalanche de sacos de plástico com lixo sobrepõem-se ao verde da vegetação ali existente. Não há ali tronco de árvore que não tenha por companhia um pedaço de lixo, seja uma camisola velha, restos de comida ou plásticos já comidos pelo tempo. Isso e seringas.

Debaixo de cada banco de cimento, com vista para o vale da Avenida de Ceuta e Monsanto, restam as sobras do que ficou de actos de consumo de drogas. Ao lado, moradores dos bairros em redor passam já sem ligar ao estado degradado do jardim.
Junto a um grande e longo muro de pedra, um tapete de objectos e lixo estende-se entre árvores, ervas e musgo. Uma tampa de um tacho que um dia esteve num fogão, jaz ali no meio do chão. Ao lado, um relógio de parede de cozinha marca as 11 horas.
Mas, ali, o tempo não parou. Está a andar ao contrário, de regresso ao passado, ao tempo do Casal Ventoso decadente, mortífero. Perigoso.



Adiante, mais escadas levam agora aos bairros sociais que repousam ao lado da Avenida de Ceuta e para onde foram viver os antigos moradores do defunto Casal Ventoso. Pelo caminho, há tantas seringas no terreno quanto degraus na escadaria. Ou mais. Lá em baixo, a linha férrea deixa adivinhar mais locais recônditos e escondidos usados para consumo diário.
“Está pior agora do que estava quando cá vim há umas semanas”, lamentou o psiquiatra, que tem vindo a alertar para a progressiva degradação da zona. Luís Patrício vê sinais preocupantes de que o antigo Casal Ventoso está a ressuscitar, sem que as autoridades tomem medidas para travar o consumo e o tráfico. E a criminalidade. Ainda há cerca de um mês, foi por ali encontrado morto um jovem irlandês com sinais de possíveis agressões.


A colina que abraça a linha do comboio serve de terreno para mais abrigos feitos de plásticos e cobertores velhos. O chão ao lado das tendas improvisadas onde vivem toxicodependentes está coberto de lixo e dejectos até à linha férrea. Do outro lado, mesmo em frente, um parque infantil e um campo de jogos marca o contraste destes dois mundos que ali se habituaram a viver lado a lado. O Casal Ventoso pode ter sido desmantelado mas a droga nunca saiu dali e o negócio hoje até prospera, pelo que observámos.
O topo do túnel da linha de comboio serve de miradouro e zona predilecta de consumo com vista para o parque infantil e os prédios de habitação social. No chão, é preciso ter cuidado para não pisar as muitas seringas. Bem na berma deste “miradouro”, um elástico de cabelo jaz ali esquecido junto a uma seringa usada.



Perto do túnel da linha férrea, há vários locais usados para consumo. O próprio túnel está cheio de seringas, garrafas e lixos. O volume de vestígios encontrados na zona revela que se tornou num pouso para quem consome. Não será coincidência a proximidade aos bairros onde se pode comprar drogas facilmente na rua.
É esta a vista de quem vive ali nos prédios dos bairros camarários e das crianças e jovens que frequentam o parque infantil e o parque de jogos. Cada descida de escorrega, cada golo marcado na baliza têm esta paisagem decadente — mas já familiar — por companhia.


Entrando na zona das traseiras dos prédios camarários, encontramos um aparente cenário urbano pacato, com carros estacionados e cortinas nas janelas com vista para a linha do comboio. Mas, ao virar da esquina, percebe-se que é ali o centro comercial a que vai quem consome. A chuva a cair cerrada e gelada não demove os vendedores de droga que armaram a sua “banca de vendas” debaixo das arcadas dos prédios.
A chuva forçou uma paragem. Ficámos ali uns minutos, debaixo das mesmas arcadas onde se pode encontrar “produto” 24 horas por dia. Este é um shopping que nunca fecha. Faça sol ou chuva. Seja noite ou dia.


Adiante, junto aos prédios onde vivem famílias, situa-se um centro de apoio a toxicodependentes, o Serviço Integrado de Apoio (SAI). Ali, pode trocar-se seringas novas ou tomar duche. Estavam três pessoas junto à entrada do centro. Ao lado, um muro baixo acolhe uma imagem de Jesus Cristo crucificado. Mas para muitos, aqui não há salvação, só a cruz pesada que lhes coube.
Uma jovem deambulava por ali, meio perdida. O cabelo louro sobre o corta-vento verde azeitona escondia um rosto pálido e magro. Pediu-nos cinco euros “para regressar a Portalegre”. Luís Patrício ofereceu-se para comprar o bilhete de autocarro ou comida. Recusou. “Já só me faltam mesmo os cinco euros”, disse a jovem. Os seus dentes, já meio escurecidos, são testemunho de que o seu calvário na vida de consumo já leva um tempo. Uma vida desperdiçada pela dor. [Impossível não pensar que aquela jovem já foi, um dia, um bebé no colo de uma mãe, e que está ali, agora, sozinha e vulnerável, prisioneira de uma vida sem saída. A tristeza e a impotência que senti foram avassaladoras.]


O regresso à Rua Maria Pia, pela estrada, não tem um cenário muito diferente do que vimos ao descer pela escadaria: abrigos e tendas feitos de plásticos e monos marcam a paisagem, entre árvores, ervas e lixo.
“Isto é a prova do insucesso das políticas de prevenção e combate [à toxicodependência]”, afirmou Luís Patrício já perto do final da nossa reportagem. Questionado sobre como solucionar o problema, o psiquiatra indicou sem hesitar: “afastar os gestores das entidades competentes e adoptar novas medidas”.
Não existem dados actualizados sobre a situação do consumo de drogas em Portugal. Os dados mais recentes, reportados num relatório publicado pelo Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD), remontam a 2023. Naquele ano, estiveram 24.246 utentes em tratamento na rede pública com problemas relacionados com o uso de drogas. Em 2023, dos 3.621 utentes que iniciaram tratamento, 1.680 eram readmitidos e 1.941 correspondiam a novos utentes.

Numa reunião online de profissionais médicos ligados ao acompanhamento de toxicodependentes, que o psiquiatra Luís Patrícia organiza regularmente, e que decorreu este mês de Novembro, ficou patente que existe um forte aumento de incidência do consumo de crack , um derivado da cocaína. A falta de vagas para internamento na rede pública e a escassez de médicos foram dois dos problemas apontados pelos participantes no encontro, a que o PÁGINA UM assistiu. Outro flagelo relatado é o aumento das doenças sexualmente transmissíveis nos pacientes com dependências.
De resto, em Lisboa, a proliferação do consumo de drogas no espaço público tem sido evidente, com toxicodependentes sem-abrigo a ocupar algumas zonas da cidade, não só no Casal Ventoso mas também em áreas do centro da capital, incluindo na Graça, como o PÁGINA UM já relatou.
Para o psiquiatra Luís Patrício, as políticas públicas têm falhado tanto na prevenção como no combate ao flagelo da toxicodependência. Ainda, recentemente, houve uma polémica em torno de uma campanha de informação sobre o uso de drogas, lançada em Outubro pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS). Isto porque a campanha, que foi promovida nas redes sociais, promovia as “virtudes” das substâncias. A campanha acabou por ser retirada das redes sociais.


De resto, apesar do aparente desalento, Luís Patrício não baixou os braços e tem apostado na divulgação de informação. Além de manter actualizada com informação educativa a sua página no Facebook e um blog, o psiquiatra também é autor de diversos livros e orador.
No seu consultório clínico, em Lisboa, o psiquiatra também mostrou ao PÁGINA UM uma das suas “Malas de Prevenção”, um projecto pedagógico que visa a educação e a prevenção do consumo de drogas e álcool. Tem três “malas” diferentes: uma para famílias; uma para profissionais de educação; e outra, a mais completa, destinada a profissionais de saúde. Lá dentro, estão diferentes objectos relacionados com o tema e caixinhas de plástico transparente com substâncias variadas, entre outros materiais.
Já depois da visita ao Casal Ventoso com o PÁGINA UM, Luís Patrício levou a sua “Mala da Prevenção” a Cabo Verde, onde se deslocou para um conjunto de apresentações e palestras no âmbito de uma iniciativa da Fundação Menos Álcool Mais Vida.

Entretanto, em Portugal, foi anunciado o regresso da dispensa e administração de metadona nas farmácias, em 2026, para alargar o acesso ao tratamento de pessoas com dependência de opiáceos. A implementação operacional da medida fica formalizada com a assinatura, hoje, de um protocolo pelo ICAD, a Associação Nacional das Farmácias, a Associação de Farmácias de Portugal, a Ordem dos Farmacêuticos e o Infarmed, a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde.
Para Luís Patrício, esta medida concretiza “finalmente, o aproveitamento de recursos, que também é contributo para a quebra de estigmas”. Agora, defende que se deve ajudar os decisores a aceitar “o benefício da máquina de recolha de seringas”, bem como “a entrega de um kit de redução de riscos novo nas 24 horas do dia”.
Para já, nada mudará na realidade que o PÁGINA UM encontrou na zona do antigo Casal Ventoso, em Lisboa, onde o consumo e o tráfico de drogas ilícitas proliferam, bem como os frágeis abrigos construídos por toxicodependentes que ali irão procurar sobreviver ao vício e ao Inverno.