EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

Vale a pena ser jornalista para acabar no banco dos réus?

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Pedro Almeida Vieira|01/12/2025

Vale a pena ser jornalista em Portugal? A pergunta, que tantas vezes ouvi colocada em surdina por colegas mais novos, hoje ecoa-me com uma intensidade que não esperava sentir. Talvez porque, nas próximas duas semanas, estarei de novo — já nem sei se quatro ou cinco vezes vezes — sentado no banco dos arguidos no Campus de Justiça de Lisboa. No Porto já estive três desde Setembro. Não por ter mentido, inventado, manipulado ou caluniado. Apenas por ter incomodado. E porque o Ministério Público preferiu achar que a liberdade de expressão e de imprensa são direitos de um ‘deus menor’. Ou então por dar demasiado trabalho e ‘chatice’ investigar com seriedade aquilo que revelei sobre as negociatas da vacinação em plena pandemia. Em vez de olhar para os factos, escolheu olhar para mim.

Pergunto-me, pois: vale a pena?

Valeu a pena investigar que, em Fevereiro e Março de 2021, em plena escassez de vacinas, foram desviadas cerca de oito mil doses para vacinar quatro mil médicos não-prioritários — de entre o universo de 64 mil —, violando normas que nunca foram alteradas (embora a IGAS tenha depois inventado uma alteração fantasma)?

Vale a pena expor que essa vacinação paralela tinha por detrás dinheiros de uma campanha de angariação de fundos patrocinada sobretudo pela indústria farmacêutica, e movimentados a partir de uma conta pessoal titulada por Miguel Guimarães (actual deputado do PSD), Ana Paula Martins (actual ministra da Saúde) e Eurico Castro Alves (amigo íntimo do primeiro-ministro)?

O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro.

Vale a pena mostrar que a task force, liderada por Gouveia e Melo, não tinha competência legal para criar excepções, e que tudo aquilo foi feito no silêncio conveniente das instituições? Até um político foi vacinado á socapa por “conveniência”.

Pelos vistos, para o Ministério Público, não vale.

E, no entanto, o MP até mantém processos de investigação em aberto sobre a gestão da campanha de angariação de fundos e sobre pagamentos ao Hospital das Forças Armadas. Porém, estão em banho-maria. E avançou com uma acusação contra mim porque Gouveia e Melo se queixou. E, num outro processo, também, porque aparentemente não se pode criticar a Ordem dos Médicos, e os médicos Miguel Guimarães, Filipe Froes e Luís Varandas por terem sido promíscuos com a indústria farmacêutica durante a pandemia.

a wooden judge's hammer sitting on top of a table

Pergunto outra vez: vale a pena?

Vale a pena passar horas num banco de arguidos por ter feito jornalismo? Vale a pena ver magistrados, como me sucedeu no Porto, a tratarem-me um jornalista como ignorante, insinuando que, apesar da minha formação académica, não tenho competência para analisar e interpretar dados epidemiológicos, como se o conhecimento científico fosse reserva espiritual de um grupo profissional (médicos)?

Vale a pena assistir a julgamentos onde não se discutem documentos, factos, evidências, mas apenas a forma como o jornalista “incomodou” pessoas com poder ou influencers sanitários ‘bonzinhos’?

Vale a pena, afinal?

Quando vejo o que se passa noutros países — ataques à imprensa, processos para intimidar, SLAPPs usados para silenciar — percebo que Portugal não é excepção. Aquilo que muda é apenas o decoro: entre nós, fazem-se as mesmas coisas, mas com uma cortesia cínica que tenta mascarar o propósito. E o propósito é sempre o mesmo: cansar o jornalista, desgastar o jornalista, empurrar o jornalista para um canto onde a exaustão suplante a convicção.

Sala de audiências do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. / Foto: D.R.

E é assim, confesso, que estou: exausto. Mas exausto sobretudo do país com 51 anos de uma democracia podre — de uma democracia que não censura, mas que asfixia pelo cansaço, o que é uma forma ainda mais hipócrita de condicionar a liberdade.

Pergunto-me: vale a pena revelar documentos que ninguém queria mostrar? Vale a pena ganhar processos administrativos que provam que o segredo era injustificado, mas depois ser processado por difamação por revelar aquilo que se escondia? Vale a a pena expor contratos, trocas de e-mails, relatórios escondidos, decisões opacas, contas paralelas, abusos de poder e omissões deliberadas? Vale a pena ser arguido e sentir que ali sou um criminoso que, na melhor das hipóteses, vai ‘safar-se’?

Por norma, diria que vale. Sempre valeu.

Valerá porque o jornalismo não existe para agradar, mas para incomodar.

Valerá porque os direitos não se defendem com silêncios convenientes.

Valerá porque, se o jornalista se cala, quem fala?

Hoje, em cansaço, não digo que vale — digo apenas que valerá, algures fora deste dia exausto. Amanhã, talvez o ânimo volte.

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