METADE DOS RECÉM-LICENCIADOS COM VONTADE DE EMIGRAR
Enfermeiros: estudo revela que o salário não é relevante na ‘hora de sair’ do SNS

Um dos mais abrangentes estudos realizados em Portugal nos últimos anos sobre o nível de satisfação dos enfermeiros no Serviço Nacional de Saúde revela que são sobretudo as condições organizacionais – e não tanto os incentivos financeiros – que fazem pender a balança na hora de decidir se ficam ou saem do sistema público.
A investigação, conduzida pelo Instituto de Higiene e Medicina Tropical e aceite esta semana para publicação na revista científica European Journal of Public Health, analisou uma amostra representativa de 1.494 enfermeiros, permitindo identificar sinais de alerta para decisores políticos, porque demonstra que os problemas estruturais do SNS não se resolvem apenas com tabelas salariais idênticas ou com a contratação pontual de enfermeiros, mas antes com reformas profundas na organização do trabalho, incluindo a questão dos turnos.

Em termos concretos, o estudo quantifica também o peso real de cada variável na intenção de permanecer no SNS. No conjunto, o modelo estatístico utilizado conseguiu explicar cerca de 28,5% dos factores que influenciam a decisão de ficar, um valor considerado robusto em investigações deste tipo. A satisfação global no trabalho destacou-se como o indicador mais forte: quanto maior o reconhecimento, a adequação das funções e a qualidade da liderança, maior a probabilidade de o enfermeiro querer manter-se no serviço. ↓
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Seguiu-se a idade — profissionais mais experientes revelam maior estabilidade —, bem como o equilíbrio entre vida pessoal e profissional e as oportunidades de progressão e formação contínua. Já a satisfação com o salário não atingiu sequer impacto estatístico suficiente para explicar a intenção de permanência, reforçando que, isoladamente, os incentivos financeiros não conseguem travar a saída de profissionais do SNS.
Outro ponto crítico identificado é a ausência de progressão na carreira e de oportunidades de formação contínua. Mais de um terço dos enfermeiros generalistas possui especialização, mas permanece sem mudança de categoria, o que revela um bloqueio estrutural e prolongado. Esta frustração, segundo o estudo, pesa mais do que as questões remuneratórias – aliás, a satisfação com o salário é muito baixa, mas não surge como preditor estatisticamente significativo da intenção de permanecer, algo que os autores explicam pela rigidez das grelhas salariais e pela percepção de que nada mudará em termos de valorização financeira no curto prazo.

O estudo desenvolvido por quatro investigadores (Mónica Morgado, André Beja, Rita Morais e Tiago Correia) mostra ainda que o equilíbrio entre vida pessoal e profissional é outro dos pilares decisivos. Os enfermeiros avaliam de forma relativamente positiva esta dimensão, mas atribuem-lhe grande importância quando ponderam permanecer na instituição. A idade surge igualmente como factor relevante: os profissionais mais velhos manifestam maior intenção de ficar, o que agrava a preocupação com a retenção das gerações mais jovens, que tendem a abandonar o SNS com maior facilidade.
Deste modo, o estudo contraria a narrativa política e sindical, frequentemente repetida, de que a crise de recursos humanos no SNS se resolve sobretudo com aumentos salariais ou contratações extraordinárias. Os autores são claros: a retenção exige previsibilidade, reconhecimento, carreiras funcionais e condições de trabalho que permitam estabilidade e equilíbrio familiar. Medidas exclusivamente financeiras, defendem, têm eficácia limitada quando aplicadas isoladamente.
As implicações políticas destas conclusões mostram-se relevantes. A permanência dos enfermeiros – essenciais ao funcionamento diário do SNS – depende sobretudo de reformas que o sistema tarda em concretizar: criação de carreiras transparentes, reorganização dos horários, reforço da autonomia profissional e melhoria das condições organizacionais. A ausência destas mudanças tem contribuído para uma saída contínua de enfermeiros para o sector privado e para outros países europeus.

De acordo com os mais recentes dados oficiais, em 2023 Portugal tinha registados 83.538 profissionais na Ordem dos Enfermeiros, sendo que 70,7% eram generalistas e os restantes especialistas. Mesmo estando a observar-se um ligeiro aumento no número de enfermeiros, dados revelados no mês passado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) colocavam Portugal entre os países que mais “exportam” enfermeiros. Só em 2020, mais de 15 mil enfermeiros portugueses trabalhavam no estrangeiro, um aumento de 568% face ao ano 2000.
Segundo uma entrevista ao jornal Público do actual bastonário, Luís Filipe Barreira, só entre Julho e Agosto deste ano esta ordem profissional atribuiu três mil títulos a novos enfermeiros recém-licenciados, com metade a pedir declarações para efeitos de emigração. Luís Filipe Barreira disse então que se estima que a actual carência do SNS é, pelo menos, de 14 mil enfermeiros.