OPINIÃO DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

A Psicologia segundo Mauro Paulino, ou Portugal segundo os iluminados

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Pedro Almeida Vieira|07/12/2025

Há momentos na vida pública portuguesa que parecem escritos por um argumentista especializado em “tragicomédias institucionais”. O episódio dos testes psicológicos dos candidatos ao curso de magistrados no CEJ — e, sobretudo, a reacção de Mauro Paulino, o psicólogo responsável pela aplicação dos inquéritos — pertence a esse género raro em que a realidade ultrapassa a ficção. Se alguém me dissesse que um concurso para juízes e procuradores dependia de perguntas como “gostaria de estar morto” ou “tenho diarreia com frequência”, ou “ouço vozes”, eu diria que era exagero. Mau gosto, talvez. Mas verdade? Ora, estamos em Portugal: é sempre verdade.

Semanas depois, e no decurso das críticas da ministra Rita Alarcão Júdice sobre os absurdos inquéritos, veio Mauro Paulino, num registo que mistura zelo corporativo com paternalismo científico, declarar ao Nascer do SOL que qualquer crítica ao teste não passa de “achismos”. ou ainda “percepções pessoais”. Os leigos — incluindo ministros, jornalistas e, presume-se, candidatos a magistrados — não têm competência para questionar a ‘ferramenta’. A ciência, explica ele, pertence a um pequeno grupo de iniciados. O resto do país deve limitar-se a baixar a cabeça, preencher quadrículas e confiar na iluminação psicométrica dos doutos. É a velha lógica do não percebem nada disto: o argumento preferido de quem não quer discutir nada.

Mauro Paulino, comentador televisivo e psicólogo.

Convém recordar que, no seguimento das noticias do PÁGINA UM, a ministra da Justiça — usando um saudável senso comum que tem faltado a meio governo — disse, com todas as letras, que o inquérito não era adequado e que deveriam ser apuradas responsabilidades. E a resposta de Paulino foi essencialmente esta: “a ministra não percebe o que diz”.

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Mas a pergunta que se impõe é outra: haverá alguém, fora do círculo da vidinha de Mauro Paulino, que ache razoável avaliar magistrados perguntando-lhes se têm vontade de morrer ou se sofrem de distúrbios intestinais? Que relação científica existe entre diarreia frequente e capacidade para decidir casos de corrupção, homicídios ou violência doméstica? Falhou-me esse capítulo nos manuais.

O psicólogo veio com a ladainha de que o Personality Assessment Inventory (PAI) possui uma “extensa literatura científica, com mais de 14 mil publicações”. É verdade: também há milhares de artigos sobre o uso da aspirina em cardiologia e não é por isso que se prescreve aspirina para tratar miopia. A existência de literatura académica não legitima qualquer utilização, ainda mais porque o senhor doutor ainda não apontou nenhum sítio, nem que fosse em Ouagadougou, que aplique o PAI em avaliações de candidatos a ‘escolas de juízes’. A existência de um teste clínico — criado para identificar psicopatologia — jamais poderia ser usado como instrumento eliminatório num concurso de elevada responsabilidade institucional. A ciência, quando invocada de forma acrítica, corre o risco de se transformar em fetiche.

Mas Paulino vai mais longe: citou escalas de validade, argumentou que itens isolados não têm significado e sublinhou ainda que alguns itens “aparentemente absurdos” servem para detectar respostas ao acaso. Tudo verdade, tecnicamente. Mas falta o detalhe crucial: mesmo escalas de validade podem ser interpretadas de forma errada, sobretudo quando o contexto é high-stakes (testes usados em decisões de grande impacto) e os candidatos respondem sob pressão, sabendo que uma resposta mal calibrada pode ditar o fim de um percurso de meses. Paulino jamais poderia esquecer (e ignorou) que não estava a avaliar reclusos ou pessoas com problemas de índole psicógica, mas sim mais de duas centenas de licenciados em Direito que tinham ultrapassado exigentes provas escritas e orais. A psicometria não elimina a subjectividade; apenas a reorganiza.

E, claro, surge uma parte divertida: afinal, o PAI não foi o único instrumento culpado da razia psicológica dos candidatos. Foram oito! Oito instrumentos mágicos que, combinados, permitiram uma decisão “colegial e integrativa”. Ora, se o processo era tão robusto, porque razão dezenas de candidatos foram excluídos com uma taxa de “não favoráveis” anormalmente elevada? A culpa, apressa-se Paulino a esclarecer, não é dos psicólogos — nunca é. Nem atrasaram o concurso, nem reprovaram demasiados candidatos; tudo não passou de percepções erróneas, mal-entendidos, confusões, ignorância do público. O país não compreende, ponto final.

Mas eis o ponto que Paulino não explica — e é aqui que a tragicomédia atinge o seu auge: afinal, como é possível que um método tão “científico”, tão “validado”, tão “robusto”, tenha produzido um número tão absurdo de chumbos que, quando avaliados por outra equipa de psicólogos, nove em cada dez foram revertidos?

Sede do Centro de Estudos Judiciários. / Foto: D.R.

É uma estatística que desarma qualquer tentativa de retórica.
Se um cirurgião errasse 90% das operações, seria afastado.
Se um juiz se enganasse em 90% das sentenças, seria destituído.
Se um meteorologista falhasse 90% das previsões, tornava-se humorista. Mas um psicólogo que reprova candidatos em massa e vê 90% das suas decisões anuladas… esse, pelos vistos, considera-se vítima de incompreensão pública.

Para alguém que realiza avaliações forenses — usadas em tribunais, em processos de regulação parental, em perícias decisivas — convém reconhecer que uma taxa de falhanço tão monumental não é propriamente um selo de credibilidade. É um alarme.

Aqui, surge-me a tentação literária: o psicólogo Mauro Paulino faz-me lembrar Simão Bacamarte, o alienista de Machado de Assis, aquele que se julgava o supremo intérprete da sanidade e da loucura em Itaguaí. Mas esta comparação é ingrata e injusta — para Bacamarte. Na loucura do alienista da Casa Verde havia método, havia lógica interna, havia até uma doçura involuntária. Era uma loucura ingénua, quase nobre na sua obsessão. Já em Mauro Paulino não há doçura nem grandeza trágica. Há apenas duas coisas: petulância e uma gigantesca cara de pau, revestidas de jargão científico.

A convicção de infalibilidade de Mauro Paulino é tão firme que transforma qualquer contestação em ignorância. A ministra não sabe. Os jornalistas não sabem. Os candidatos não sabem. A segunda equipa de psicólogos não sabe. Só ele sabe. Só ele vê. Só ele compreende os mistérios do PAI e dos sete instrumentos suplementares. Só o Mauro Paulino acerta. Sempre.

A ciência, infelizmente para Paulino, não funciona assim. A ciência que importa — a verdadeira — aceita escrutínio. Admite falhas. Revê-se. Corrige-se. E, sobretudo, responde quando falha 90% das decisões. Não se esconde atrás de tecnicismos.

Mauro Paulino pede rigor no debate. Concordo inteiramente. Comecemos então com a única pergunta que realmente importa: “Quem avalia os avaliadores?” Se a resposta for “ninguém”, então o problema não é o PAI. O problema é o país — e pessoas como ele.

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