EM 216 CONTRATOS DESDE 2019, SÓ TRÊS TIVERAM CONCURSO PÚBLICO
Rapto de bebé revela negócio chorudo de pulseiras anti-rapto à margem da lei

O rapto de um recém-nascido ocorrido na semana passada no Hospital de Gaia expôs uma fragilidade que há muito se disfarça com tecnologia, relatórios de conformidade e contratos públicos assinados à porta fechada. A bebé de quatro meses desapareceu do serviço de pediatria, apesar de ostentar uma pulseira anti-rapto que deveria ser “praticamente impossível” de remover, segundo descreveu uma enfermeira de Coimbra ao Público, porque o sistema deveria fazer disparar um alarme “ensurdecedor”, bloquear portas e parar elevadores logo que a pulseira é cortada ou violada.
Só que, no quarto onde a criança estava internada, encontrou-se a pulseira intacta, deixada junto ao balde do lixo — e a mãe já ia longe, num episódio que decorreu precisamente na mudança de turno, num serviço com mais de 20 camas. Esta falha, inédita para a Unidade Local de Saúde de Gaia-Espinho, segundo o presidente do conselho de administração, revela, contudo, mais do que um deslize operacional: expôs um negócio milionário que tem florescido à margem da lei.

De acordo com um levantamento do PÁGINA UM na plataforma da contratação pública (Portal BASE), o mercado das pulseiras anti-rapto e dos seus acessórios ultrapassará os 3,3 milhões de euros apenas nos últimos sete anos, distribuídos por 216 contratos públicos envolvendo aquisição de pulseiras, software e serviços de manutenção. Este número deverá ser superior, uma vez que a descrição dos contratos não permitirá, em alguns casos, detectar o objecto do serviço ou equipamento. ↓
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Em todo o caso, existem evidências de ilegalidade. Uma parte substancial destes contratos foi celebrada por ajuste directo, apesar de terem valores acima dos 20 mil euros, invocando-se sistematicamente uma excepção prevista no Código dos Contratos Públicos para situações de “inexistência de concorrência por motivos técnicos”.
Ora, tal não é verdade. Em Portugal existem, na verdade, duas empresas neste ramo, mas que praticamente não competem uma contra a outra, dividindo quase em espelho os proveitos deste nicho altamente rentável: a João Lago – Sistemas de Engenharia e Segurança, que comercializa variantes do sistema HUGS, e a Infocontrol, representante do sistema BabyMatch. Desde 2019, a João Lago acumulou 1.450.663 euros (a que acresce IVA), por via de 93 contratos, enquanto a Infocontrol arrecadou 1.255.797 euros (a que acresce mais IVA), através de 123 contratos, valores notavelmente próximos.

A harmonia comercial é tanto mais estranha quanto ambas são reiteradamente escolhidas sem concurso, através de justificações idênticas apresentadas por hospitais distintos: “motivos técnicos” que impediriam a concorrência. Uma ficção burocrática que permite que cada uma mantenha o seu nicho enquanto aceita que a outra prospere no seu. Na análise realizada pelo PÁGINA UM, apenas se registam três contratos, entre um total de 216, em que se optou por concurso público: um na ULS de Santo António (Porto), este ano, ganho pela João Lago; outro na ULS do Alto Ave, também este ano; e outro na ULS da Póvoa do Varzim / Vila do Conde, ambos ganhos pela Infocontrol.
Em termos práticos, os hospitais portugueses utilizam hoje três sistemas principais: BabyMatch, HUGS e variantes integradas da SAFESIS — esta última ligada precisamente à João Lago, empresa com historial de adjudicações repetidas pelo SNS desde que se generalizou este sistema de segurança em Portugal no ano de 2009.
O funcionamento destes sistemas assenta em pulseiras electrónicas colocadas no tornozelo das crianças, comunicando continuamente com antenas instaladas no serviço. No caso do HUGS, funciona através de uma pulseira electrónica colocada no tornozelo do recém-nascido, que emite sinais regulares de integridade. A quebra, remoção ou tentativa de saída por portas monitorizadas acciona um alarme instantâneo, podendo bloquear acessos e alertar equipas de segurança. O sistema inclui ainda o módulo Kisses, que emparelha a pulseira do bebé com a da mãe, garantindo que apenas o par correspondente pode estar junto ou abandonar o serviço.

O alarme é descrito como tão violento que alguns profissionais optam por desligá-lo para evitar disparos constantes, nomeadamente quando os pais circulam em zonas para além do alcance do radar, como relatou uma enfermeira de Coimbra ao jornal Público. Além disso, se a criança se desloca para outro serviço — por exemplo, para realizar um exame — os alertas podem ser desactivados temporariamente, deixando margem para falhas humanas, distracções ou simples esquecimento.
Há ainda o problema técnico da cobertura: corredores com zonas de sombra podem provocar alarmes injustificados, incentivando equipas sobrecarregadas a desactivar sensores que, em teoria, deveriam permanecer sempre activos. As soluções SAFESIS criam ainda uma camada adicional de integração com controlo de acessos, CCTV e software de gestão centralizada.
O BabyMatch, utilizado antes e depois da obrigatoriedade legal, assenta igualmente no emparelhamento electrónico mãe–bebé. Cada pulseira possui um identificador activo que comunica com receptores instalados no serviço. A aproximação a zonas restritas, tentativas de corte da pulseira ou divergência entre bebé e acompanhante originam alertas automáticos, reforçando o controlo de identidade e perímetro.

Em todos os casos, o princípio é o mesmo: dispositivos electrónicos que, se tudo correr bem, impedem o rapto; se correr mal, apenas documentam que nada bloqueou a saída. E foi precisamente isso que aconteceu em Gaia, onde nenhum alarme soou — apesar de o sistema ter sido testado posteriormente e declarado funcional. A hipótese de falha de bateria foi descartada pela administração hospitalar. Resta, então, a possibilidade mais inquietante: o sistema pode ser ultrapassado, desactivado, manipulado ou contornado. E, se assim é, não estamos perante um incidente isolado, mas perante uma vulnerabilidade estrutural que exige escrutínio técnico, contratual e político.
As pulseiras anti-rapto tornaram-se obrigatórias em 2008, na sequência de dois raptos em Penafiel. Mas a obrigatoriedade legal não veio acompanhada de um modelo de contratação transparente. O resultado está à vista: um mercado concentrado, adjudicações sucessivas por via excepcional e ausência de avaliação independente da eficácia dos dispositivos — até ao momento em que um caso real expõe aquilo que os relatórios nunca dizem.