A (DERRADEIRA) DERIVA DOS CONTINENTES

Razões que a razão desconhece: memória selectiva de quando eu andei estúpida sem saber porquê


Acredito na Filosofia

Últimas palavras de Hipátia de Alexandria, pelo menos segundo a lenda.



Entrou Novembro e mudou a hora. O que tínhamos a fazer para que a sociedade não descambasse no pior dos caos era simples, certo? Somos todos pessoas crescidas e para nós estas coisas nem chegam a ser um pensamento, são um mero reflexo medular: andávamos com os relógios uma hora para trás e pronto. Até ganhávamos algum tempo extra de ronha boa pela manhã, a ouvir a chuva para lá da janela, entre o sonho e tudo o que a vida tem de bom, com a cabeça pousada no peito de alguém que nos é especialmente querido[1]. Isso eu percebi, também não sou assim tão burra. Mas o meu telemóvel está num estado tão periclitante que já nem sequer muda a hora sozinho – e, no entanto, eu acreditei nele. Podia ter visto as horas no PC, mas andava a padecer de uma hérnia e não conseguia sentar-me à secretária para trabalhar.  Fui a correr acertar o despertador, mas em vez de o pôr para trás pu-lo para a frente e depois deixei de usá-lo porque não confiava nele. Costumo estar a cinco horas de distância do Massachussets. Quando o Dick me disse “como nós ainda não mudámos a hora, ficamos com quatro horas de distância”, foi o baralhanço completo. Demorei uma semana a esclarecer esta completa perdição, ciente de que faria péssima figura se me abeirasse de qualquer das pessoas minhas amigas, por muito amigas que fossem, e, tipo, cinco dias depois de termos mudado a hora, lhes perguntasse num total desespero “eh pá, por favor, isto é um desatino, que horas são?”. E por que é que isto aconteceu? Porque tive um AVC no fim do Verão. E ninguém nos avisa desta consequência colateral, mas depois a pessoa anda estúpida durante muito tempo. Só que, como não nos dizem nada quando nos dão alta, não vamos dali preparados para vivermos com o cérebro a meio-gás. Eu, por exemplo, fui directamente do hospital para a praia com autorização médica[2]. E acreditava mesmo que aquelas duas semanas enevoadas se tinham esfumado completamente. Por que é que não havia de acreditar? Os AVCs não são a minha área de especialidade, e não houve uma única pessoa que me dissesse que, depois das crises agudas, deixam atrás de si um rasto que pode durar meses.



Estou em Estremoz há cinco anos, e nunca fiz férias. Acima de tudo, tinha um desespero de me atirar mar adentro e me deixar ficar lá durante imenso, imenso tempo, para depois me oferecer ao sol da praia como um lagarto, os dedos enfiados na areia e o pensamento inebriado de sal e iodo. Desta vez é que foi a grande desforra: duas grandes amigas, uma com casa no Burgau e outra na Meia-Praia, convidaram-me ao mesmo tempo. Aquilo, assim, dava para tirar mais de uma semana inteira. Que maravilha.

         Ou seja, teria dado, e teria sido uma maravilha, se não fosse o AVC.

         Assim, foram três dias de praia e cinco dias de hospital.

         Por sorte, tive o AVC mesmo em frente da minha amiga da Meia-Praia, que me arrancou da cama ao meio-dia estranhando tanto silêncio, tentou dar-me café e eu deixei logo cair a chávena que se partiu sonoramente no chão de azulejo e me manchou toda, e pronto. Tive a sorte de estar sozinha com uma mulher forte e determinada, que não se deixa impressionar facilmente e que não perde tempo a entrar em acção. Agarrou em mim e levou-me logo para Lagos, de onde me mandaram logo para Portimão, onde ainda demorei dois dias para recomeçar a falar[3] e conseguir andar, mas depois comecei a arrebitar[4] e não houve mais dramas. Hoje horroriza-me pensar que aquilo me podia ter dado sem ninguém notar. Este tipo de acidente é um assaltante extremamente dissimulado. Se me desse à noite em casa, o Sebastião pensaria que eu estava a dormir e não daria nenhum alarme. Quando desse já seria tarde demais. Até no expresso Estremoz-Lagos as pessoas pensariam que eu estava a dormir. Quando um condutor me abanasse no fim da linha também já era tarde demais.

         E, no entanto, este AVC deu imensos sinais. Eu é que não os conhecia, e, por conseguinte, não os li.

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         Fazem-se tantas campanhas para prevenir tantas doenças, e os AVCs tornam-se tão prováveis a partir de uma certa idade, era um mínimo de cautela básica educar também as populações sobre sintomas que podem ser sinais vermelhos.

         Antes de ir para o Algarve, eu dormi tanto, tanto, tanto, que perdi duas das camionetas que queria apanhar. Finalmente, já com um dia de atraso, consegui chegar à estação com a minha mala grande cheia de coisas porreiras e com o PC lá dentro. Como o expresso só chegava daí a quatro horas fiz uma confusão de todo o tamanho, achei que estava a chegar a casa e não que ia partir, deixei a mala na estação e voltei para trás, e felizmente estava cá a minha amiga que ia tomar conta do Sebastião que ficou a olhar para mim de boca aberta, e imediatamente a perguntar pela mala. Diz ela que todo o meu discurso estava entaramelado, e que eu só repetia que queria dormir. Depois de muito esforço e muito café que eu entornava com frequência, levou-me de volta à estação e claro que a mala já não estava lá, o que quer dizer que o meu PC, e tudo o que escrevi desde que aqui vivo, também não. Fui para o Algarve com uma malinha de emergência, muito sono, e um grande sobressalto só de pensar na estranheza do meu comportamento. Mas achava, achava genuinamente, que aquilo era tudo o resultado de cinco anos de falta de praia, e agora o mar ia tratar de mim. Como dizem os surfistas,

         “A água do mar faz bem a tudo.

         Por isso mesmo, depois de longas horas de conversa à beira-mar com a minha amiga do Burgau, já o sol descia sobre as ondas e todo o mar estava dourado, fui a correr vestir o biquíni e atirei-me de cabeça para dentro do grande bálsamo universal que varre as costas do mundo inteiro. Nadei debaixo de água até já não ter fôlego, e quando voltei à superfície estava fora de pé. Estiquei-me toda a boiar por cima da água, a descansar do meu sprint submarino, a receber o mar e o sol num gozo imenso de regresso e saudade – e depois, quando a maré cheia começou a levar-me para cada vez mais perto da rebentação, virei-me de bruços e decidi ir a nadar à tona até chegar à areia.

         Em Portugal, praticamente toda a gente sabe nadar bruços.

         Eu aprendi sozinha na Baía de Luanda aí pelos meus quatro anos a imitar o que os outros faziam, e era muito pequenina e aquelas ondas eram bastante mais avultadas do que as do Burgau. Posso não ter nenhum estilo elegante, mas claro que sei nadar bruços.

         Pois. Mas naquele fim de tarde, no Burgau, com as ondas suaves da maré cheia a empurrarem-me para a areia, eu não conseguia nadar bruços de maneira nenhuma. Não conseguia coordenar os movimentos das pernas com os movimentos dos braços, nem sequer coordenava os braços um com o outro e as pernas também não, à superfície não tinha qualquer espécie de controlo sobre os meus movimentos. Vim até à rebentação a nadar debaixo de água, e deitei-me ao sol cada vez mais baixo a pensar qualquer coisa como,

         “Santo Deus, cinco anos sem ir à praia e estou completamente fora de forma. Tenho de nadar imenso enquanto cá estiver, até acertar outra vez os movimentos todos. Isto devia ser como eu nadava quando era pequenina e comecei a imitar os crescidos, na Baía de Luanda.

         Digo tudo isto porque não há, de facto, qualquer campanha como tantas outras que nos alerte para os sinais inequívocos de um AVC que vem a caminho. A avaliar por esta lista, eu tive uma data de sinais desses. Se soubesse, e se estivesse tranquilamente em Estremoz, iria imediatamente desinquietar o meu médico de família e passar-lhe a bola – ele leria estes sinais muito melhor do que eu e saberia o que devia fazer. Com tudo o que me aconteceu ainda antes de arrancar para o Algarve, teria caído em mim e já não arrancava – uma pessoa que deixa a mala abandonada na estação com o PC lá dentro[5] e confunde estar a partir com estar a chegar, tudo isto sempre presa de uma sonolência tão insistente que a faz falar com a voz cada vez mais entaramelada, não está obviamente em estado de viajar sozinha[6] para lado nenhum. Uma vez mais, é cancelar logo a viagem e passar a bola ao médico de família com o carácter da maior urgência.

         Depois há as sequelas. E, quando nos dão alta, também não nos dizem nada a esse respeito. Mas devia ser obrigatório dizerem, porque nós não nascemos ensinados. Antes de nos deixarem sair, alguém tem que ter uma conversa muito séria connosco e avisar-nos de qualquer coisa como,

         “Agora tenha muito cuidado com o que faz, e o que pensa, e a forma como se organiza, porque os AVCs não se curam logo, e por menor que o seu acidente lhe tenha parecido, para o seu cérebro foi de uma grande violência. Tenha cuidado sempre que se sentir confusa, que fizer mal as contas, que confundir os dias do mês com os dias da semana[7], que não conseguir encontrar as palavras que procura usar, e olhe… (Céus, quem me dera que alguém me tivesse dito isto a mim) … a senhora não escreve crónicas para um jornal online? Não se sinta frustrada se ao princípio se cansar imenso a escrever, e precisar de quinze dias para fazer o trabalho que costumava numa tarde. E, acima de tudo, não tenha confiança nenhuma em si própria, releia tudo quatro ou cinco vezes até estar certa de que fez tudo bem. E peça a alguém de confiança que vigie os seus escritos – porque senão, por muito boas que sejam as suas intenções, ainda se arrisca a contar as suas histórias de uma forma que magoa as pessoas que gostam de si.

         A simples experiência da parte da minha vida em que eu sou uma escritora marota que manda vir para o grande público fez-me começar a mandar as minhas crónicas para as minhas irmãs, porque, ainda por cima, peguei em temas tão extremamente delicados que até o nosso director ficou com medo das suas consequências. Fartei-me de levar na cabeça, e ainda bem: o esforço de apresentar o meu material de forma mais adequada puxou seriamente por mim, até me trazer para fora daquele túnel em que eu nem conseguia acertar os relógios. Com o meu esforço e o passar do tempo, estou bem.

         Mas continuo a achar imperdoável que nunca se faça uma única campanha de esclarecimento, a nível nacional, sobre um problema que afecta tanta gente. Aviso à Ordem dos Médicos e à Indústria Farmacêutica: se é por não terem ninguém que dê a cara, eu ofereço-me já. Para tudo o que quiserem. E não quero que me paguem nem um cêntimo, porque isso seria deveras vil. Quero é que a vida dos portugueses não acabe cedo demais porque nunca ninguém os ensinou a reconhecer o temível sinal de alarme que, de repente, se acende no meio de um nevoeiro cerrado.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora



[1] E eu, como sou uma zebra bizarra, fico a fazer festinhas atrás da orelha do Sebastião, enquanto saboreio o primeiro café e o primeiro cigarro da manhã. E o Sebastião ronrona. A sério. É um espectáculo desconcertante, um rafeiro alentejano colossal absolutamente podre de mimo a ronronar como se fosse um gato.

[2] “E pronto, faça esta medicação conforme está indicada e já pode voltar à sua vida normal.” – “Então posso ir para a praia?” – A minha amiga desmancha-se a rir. O médico abre os olhos de espanto. “Agora? Com todo este calor? Está maluca?” – “Não doutorzinho, lá mais para as quatro e meia, quando começa a soprar aquele ventinho… eu vim para Lagos para ir à praia e afinal passei o tempo todo no hospital… Vocês são muito queridos, mas eu preferia ainda aproveitar o resto da tarde de hoje,” – “Está bem… se isso é assim tão importante para si…” – “Doutorzinho, a água do mar faz bem a tudo.” – “Pois, os surfistas são os piores.” – “Eu não sou surfista, só gosto deste lema deles porque é absolutamente verdadeiro. Deixe-nos lá ir à praia a partir das quatro e meia, vá” – “Tudo bem, mas só se já houver vento e nunca antes das quatro e meia, ouviu, sua maluca?” – Vira-se para a minha amiga – “A senhora é composta e decente, e já me disseram que foi uma grande académica, acha que consegue conter os ímpetos aqui desta criancinha?” – A minha amiga, que é da minha idade, desmancha-se outra vez a rir. Satisfeito, o médico aperta-nos a mão e vai-se embora.

[3] Havia um paciente nortenho, do outro lado da enfermaria, que sempre que eu fazia uma tentativa nocturna berrava “Ó mulher cala-se que isso mete nervos só de ouvir!”. Eu tentava dizer “desculpe”, mas só agravava a situação.

[4] Recomecei a falar, antes de mais nada. Trapalhona, a precisar de terapeuta da fala, mas desse lá por onde desse estava a falar e as pessoas entendiam-me. Foi um dos maiores alívios que tive na vida. Estava a imaginar-me a fazer apresentações de livros, a participar em debates, só com aqueles fonemas bizarros a saírem-me pela boca fora. Estava a ver o fim da minha vida pública. Estava a ver imensas coisas que não queria ver. Raios me partam, mas é que já me basta o que basta.

[5] E várias outras coisas extremamente preciosas, incluindo um rosário de prata e turquesas herdado da minha avó que eu gostava muito de usar ao pescoço; e alguns fatos de banho daqueles que mais ninguém tem senão eu porque mais ninguém ousaria usar, que é o género de coisa que eu própria confecciono com desvelo, amor, e carinho. E livros muito preciosos para as minhas amigas, claro. E com toda a franqueza? Um saquinho com uma ervinha que há aqui que é muito leve e cheira a esteva, mas bate que não é brincadeira. Mas era pouca e era para partilhar, note-se. No domínio das vaidades, também tinha posto nessa mala as minhas roupas mais impressionantes com acessórios a condizer. Se calhar foi exactamente por causa do Pecado da Vaidade que Deus Nosso Senhor me castigou.

[6] E que fosse acompanhada. Aquela pessoa não está em estado de viajar, ponto final parágrafo.

[7] Ah, gaita, passo a vida agarrada à agenda para ter a certeza da semana em que estou – e ao princípio este esforço não adiantava de nada, porque não conseguia acertar com o mês em que tudo isto se passava.

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