INFARMED NÃO RESPONDE SE CAMPANHA CUMPRE LEI DOS DISPOSITIVOS MÉDICOS

Multinacional já pode publicitar que ‘desinfecção’ das fossas nasais protege contra o SARS-CoV-2

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Pedro Almeida Vieira e Elisabete Tavares|10/12/2025

Durante a pandemia, falar de “limpeza das fossas nasais” era quase um acto de dissidência sanitária. Uma médica chegou mesmo a enfrentar processo disciplinar na Ordem dos Médicos por ter sugerido supostos métodos que poderiam interferir na detecção de casos positivos. A acusação: heterodoxia, potencial desinformação, quase crime contra a saúde pública. O nariz tornou-se zona sagrada, inacessível, onde apenas a zaragatoa tinha autorização moral para entrar.

Cinco anos depois, o cenário vira do avesso. Numa época em que a gripe está a alarmar as autoridades, por a vacina não ter eficácia comprovada sobre a nova mutação do H3N2 (o vírus influenza prevalecente), a multinacional Procter & Gamble está a apostar numa forte campanha de publicidade do dispositivo médico “Vicks Proteção”, alegando que previne gripes, constipações e até covid-19. De repente, a mesma ideia que teria provocado indignação institucional durante a pandemia — reduzir carga viral através de intervenção nasal — surge agora promovida em larga escala, sem um único sobressalto por parte do regulador. Aquilo que antes era charlatanice, hoje é marketing.

Campanha no Metro de Lisboa. / Foto: PÁGINA UM

Em todo o caso, existe alguma evidência clínica recente que confirma utilidade moderada na abordagem preventiva. Um estudo publicado no ano passado na revista The Lancet Respiratory Medicine, analisou quase 14 mil adultos e concluiu que sprays nasais de venda livre reduzem a duração e a gravidade das infecções respiratórias superiores em cerca de 20%, diminuindo igualmente dias de doença, absentismo laboral e até o uso de antibióticos.

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O ensaio, conduzido pelas universidades de Southampton e Bristol e financiado pelo NIHR, comparou três intervenções: o spray nasal Vicks First Defense, um spray salino e um programa online de gestão de stress e actividade física. Todos reduziram antibióticos em mais de 25% e encurtaram dias de sintomas; os sprays, usados correctamente, mostraram benefícios claros.

Os autores foram explícitos: ao primeiro sinal de tosse, dor de garganta ou gripe, usar um spray nasal pode travar o desenvolvimento completo da infecção. De acordo com Lucy Yardley e Paul Little, líderes do estudo, o efeito foi ainda maior entre os participantes que usaram o spray seis vezes ao dia — embora muitos não o tenham feito. Nada disto é miraculoso; apenas confirma um mecanismo simples: reduzir carga viral na nasofaringe, melhorar a função imunológica e mitigar sintomas. Curiosamente, exactamente aquilo que, durante os anos da pandemia, era retratado como desinformação.

Infarmed não revela se mensagem publicitária obedece aos critérios legais aplicados aos dispositivos médicos. / Foto: PÁGINA UM

Este tipo de sprays são considerados dispositivos médicos e não medicamentos, pelo que não necessitam de ter uma autorização prévia do regulador em matéria de anúncios publicitários. Contudo, o diploma que regula este tipo de produtos estabelece que a publicidade de dispositivos médicos “deve promover a utilização segura dos dispositivos médicos, fazendo-o de forma objectiva e sem exagerar as suas propriedades” e “não pode ser enganosa”.

O mesmo diploma estabelece ainda outras regras, designadamente a de que “a publicidade de dispositivos médicos junto do público não pode conter qualquer elemento” que “sugira que o estado normal de saúde da pessoa pode ser melhorado através da utilização do dispositivo médico” ou “prejudicado caso o dispositivo médico não seja utilizado”. Além disso, a publicidade a estes dispositivos médicos é abrangida pelo Código da Publicidade, designadamente no que toca a publicidade enganosa. É ao Infarmed que cabe a fiscalização e monitorização da publicidade de dispositivos médicos.

Diante da avalanche publicitária, o PÁGINA UM questionou o Infarmed sobre se, em termos concretos, houve alguma avaliação da alegação de protecção contra covid-19; se existe evidência clínica sólida validada pela Agência Europeia do Medicamento; se a expressão usada cumpre os diplomas legais portugueses e comunitários; e se seria feita alguma fiscalização da campanha à luz do regime de publicidade enganosa. Até agora, a resposta foi a habitual: silêncio absoluto.

Sede do Infarmed. / Foto: D.R.

Em todo o caso, o mais revelador nem é a eficácia do produto — que deve ser analisada com rigor —, mas sim a incoerência regulatória. Quando eram cidadãos, investigadores ou clínicos independentes a sugerir medidas deste tipo, a reacção institucional era feroz. Hoje, quando a mensagem vem de uma multinacional com orçamentos milionários, o Estado limita-se a observar em quietude contemplativa.

Há, portanto, duas ciências: a ciência do cidadão, vigiada e disciplinarmente suspeita; e a ciência corporativa, benevolamente publicitada. A protecção, afinal, não começa no nariz. Começa na origem da mensagem — e no silêncio cúmplice de quem deveria regular.

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